Vítor de Sousa
O meu querido sogro continua a trazer-me pastas com os meus trabalhos para o DNA. Cada sexta-feira que nos encontramos, lá vem mais uma, com a reunião de todos os trabalhos desse ano. Cada sexta-feira é um novo momento de reencontro com coisas que fiz e que trazem memórias desse tempo incrível, que infelizmente não volta.
Na semana passada trouxe-me o ano de 2003, um ano muito produtivo profissionalmente. Foi um ano tramado da minha vida, mas talvez um daqueles que me trouxe maior crescimento pessoal.
Entre os vários trabalhos desta nova pasta, estava esta entrevista ao actor Vítor de Sousa, que aqui transcrevo.
Entrevista de Sónia Morais Santos
Fotografias de Augusto Brázio
Encontrámo-nos no Teatro da Trindade, em Lisboa. Se fosse uma peça de teatro, a nossa conversa seria uma peça em dois actos. No primeiro dia sentámo-nos numas conversadeiras deliciosas, cadeiras feitas com o propósito da cavaqueira, uma virada para a outra, numa proximidade a pedir a partilha de segredos e histórias. No segundo dia, o actor falou mais sobre si e sobre a sua vida, desta vez no camarim onde se despe de si e se veste de outro.
Vítor de Sousa tem 56 anos, quase 40 dedicados à arte de representar. Para trás, uma história de solidão, de abandono e de reencontro. Um pai perdido no tempo, reencontrado numa estação de correios da baixa lisboeta, um pai a querer pedir desculpa, um filho a procurar apaziguar 56 anos de perguntas sem resposta.
Conte-me a história da sua vida.
- Nasci em Lisboa, no dia 18 de Novembro de 1946, filho de pais divorciados (divorciaram-se um ano depois de terem casado, a minha mãe tinha 18 anos e o meu pai 19, creio). Tive uma infância complicada. Sozinho, muito sozinho.
Infeliz?
- Não. Fui feliz no meio dessa solidão da minha infância. Fui um aluno aplicado, muito dedicado...
É essa a imagem que tem de si na infância? A de um aluno aplicado?
- A de um menino bem comportado, sim.
Diz-se que os meninos muito bem comportados são muitas vezes meninos tristes.
- Mas eu fiz muitos disparates! Uma vez (andava na instrução primária), saí de casa, deixei a porta entreaberta e fui para o Jardim Zoológico sozinho. O difícil foi depois ter chegado a casa e não poder falar de todos os animais que tinha visto à minha frente! Uma outra vez fui também sozinho para qualquer outro sítio e a porta fechou-se. Para não enfrentar a minha mãe, para que ela não desse pela minha falta, saltei do 3º andar esquerdo para o 3º direito, pela varanda. Não morri porque não calhou!
A sua mãe era severa?
- Não. Era até muito benevolente. Quando nos zangávamos, a pior coisa que ela fazia era tratar-me por voê. Aquilo magoava-me muito. Tratarmo-nos por você era um castigo muito grande para mim.
Fale-me da solidão da sua infância.
- A questão é que eu saía da escola ao meio-dia e passava a tarde sozinho em casa. Não queria ir para a rua jogar à bola e ao berlinde. Não gostava de andar à pancada. Preferia de longe ficar em casa, quieto. Sozinho.
A que é que brincava?
- Às missas. Disse muitas missas sozinho.
Missas?
- Achava muita graça. Tive uma educação católica, andava na catequese. Lembro-me perfeitamente de acabar as aulas da catequese e de ficar em casa da catequista à espera que a minha mãe me fosse buscar. Ainda hoje mantenho contacto com a catequista. A menina Lurdinhas.
E gostava da catequese e da missa ou eram aborrecimentos a que se sujeitava como menino obediente que era?
- Gostava, sentia que estava a aprender coisas. As histórias da Bíblia eram fascinantes! Cheguei a ser sacristão. Fiz casamentos, baptizados e funerais.
Palavra?
- E levava tudo aquilo muito a sério. Quis ser padre e tudo! Lembro-me de faltar às aulas para ir aos cemitérios tirar flores das campas que tinham muitas para pôr nas campas que não tinham nenhumas.
Isso é tão bonito!
- Fiz isto muitas vezes. Fazia-me impressão o esquecimento a que alguns mortos pareciam estar votados.
No fundo, a solidão.
- Talvez. E sobretudo o facto de uns terem muito e outros nada.
Teve então um contacto prematuro com a morte, quer nas celebrações de funerais, quer nessas idas ao cemitério. Que idade tinha?
- Uns doze anos.
Lembra-se se pensava na morte?
- Pensava na morte. Vi muitos mortos ao vivo. Houve um padre que morreu agarrado à minha mão, e eu percebi que ele se extinguiu naquele momento. Todo esse contacto com a morte fazia-me sentir que nada valia a pena porque tudo tinha um fim. Mas não era uma visão aterradora, pelo contrário. Apredi a encarar a morte com muita serenidade.
Há pouco dizia-me que quis ser padre mas não percebi se foi um daqueles sonhos inconsequentes da infância ou se chegou a ser uma intenção determinada.
- Foi um desejo intenso, uma certeza. Julgava ter encontrado a minha vocação. De resto, o arcebispo que me deu o crisma chegou a dizer-me que iriam mexer uns cordelinhos para que eu entrasse para o seminário. A verdade é que os cordelinhos eram mais uns cordelões, uma vez que só o Vaticano podia autorizar que um filho de pais divorciados ingressasse no seminário.
Não sentiu raiva que fosse algo exterior a si - neste caso, o divórcio dos seus pais - que lhe barrasse o caminho que tinha escolhido?
- Não, julgo que não senti raiva. O facto é que aquela contrariedade foi-me adormecendo. E a dada altura percebi que estaria talvez mais atraído pela encenação da liturgia, pelo espectáculo das homilias.
Percebeu isso na altura?
- Mais tarde. Pode ter sido apenas uma forma de me defender da impossibilidade de ir por ali, por aquele caminho que tinha escolhido. Mas estou convencido de que a encenação era efectivamente o que me deslumbrava mais. Estou convencido de que não teria sido um bom padre.
Viveu sempre sozinho com a sua mãe.
- SIm. E a partir de determinada altura também com a minha avó.
Fale-me da sua mãe, essa figura tão central na sua vida.
- É uma figura muito central porque foi pai, foi mãe, foi irmã, foi tudo. Tenho uma família muito reduzida, duas tias, quatro primas, e se calhar já estou a exagerar.
Isso é triste para si, essa árvore com poucos ramos?
- Habituei-me. E habituei-me até a não fazer perguntas em relação ao que não correu bem no casamento da minha mãe. Só muito mais tarde é que fui fazendo perguntas. Achei que não tinha o direito de tentar entrar nesse mundo ou de fazer a minha mãe viajar para esse mundo.
Por perceber uqe isso lhe causava dor. E o seu pai?
- Conheci-o muito mais tarde, já tinha 30 anos. Um dia ligou lá para casa um homem com uma conversa muito estranha. Quando desliguei disse à minha mãe: "Que disparate! Era um cidadão a dizer que eu tinha assistido a um acidente e que queria que me desse como testemunha... uma coisa sem pés nem cabeça, deve ser um doido que apanhou este número." A minha mãe deixou-me acabar e disse: "Se calhar foi o teu pai".
E era.
- Era o meu pai. Inventou aquela história toda porque estava a ganhar coragem para me conhecer e para me pedir desculpa por me ter abandonado.
Com a separação da sua mãe ele cortou totalmente a ligação convosco?
- Sim, foi para África, refez a vida, tornou a casar e voltou 30 ou 40 anos depois. Há até uma coisa muito engraçada (se quiser eu vendo-lhe os direitos e faz uma telenovela): ele chegou a ver-me em teatro sem saber que eu era o filho dele. Eu sou Sousa mas o meu pai era Araújo. De modo que chegou a ver-me representar sem saber.
Então e como é que se conheceram?
- Marcámos encontro à porta da estação dos correios dos Restauradores, que é um sítio muito bom para conhecer pessoas, principalmente pais. Fui com um amigo e pedi-lhe para ir à minha frente ver qual era o aspecto do meu pai: "Se for um gajo giro eu vou. Se for um borra-botas, um maltrapilho, viro costas." Mas não. O meu pai tinha muito bom ar, parecia um embaixador. E lá fui.
O que é que lhe disse? "Olá pai"?
- É estranho, não é? Não, não caímos nos braços um do outro a chorar. Cheguei e disse-lhe "Olá!"
Não está a pintar o quadro demasiado friamente?
- É claro que na altura tudo isto me emocionou muito. Passei noites sem dormir. E depois não era só o facto de eu ir conhecer o meu pai, era também o perceber que teria que contar à minha mãe. E eu temia por ela, por saber que teria com certeza um lado doloroso.
Por ser a tal viagem.
- A tal viagem que eu nunca me permiti obrigá-la a fazer. E sabia que iriam surgir as tais perguntas que até então nunca me atrevera a colocar.
Nem em menino lhe fez perguntas? Porque é natural que as crianças ponham questões. E estou a imaginar que, quando percebeu que todos os meninos têm pai e mãe, terá ficado com dúvidas sobre a sua vida. A sua mãe nunca lhe contou a história, ainda que resumidamente?
- Não. A minha mãe não falava do meu pai. Eu às vezes tentava obter mais informações pela minha avó Emília, mãe da minha mãe, mas soube pouquíssimas coisas. E a verdade é que nunca quis desenterrar esse passado.
Pela sua mãe ou por si?
- Pela minha mãe. Eu acho que, no fundo, tinha muita curiosidade em saber. Imagine que ainda hoje não faço ideia de como é que eles se conheceram.
Então e depois desse encontro na estação dos correios?
- Acompanhei-o até ao fim da vida. Não é que não tivesse amor por ele, por ele ser o meu pai. Mas o que é certo é que nunca o vi como pai. Era um indíviduo que conheci. E que depois, por ter sido a grande paixão da vida da minha mãe, por esse respeito, por essa admiração que tenho por ela, achei que o devia acompanhar até ao fim dos dias dele.
E a sua mãe, chegou a reencontrá-lo?
- Sim. Ao fim de 40 anos consegui que ela encontrasse uma vez mais o amor da vida dela. Iam-se cumprimentar de aperto de mão à porta da estação dos correios dos Restauradores. Eu estava nervosíssimo (não tanto como a minha mãe mas estava muito nervoso) e quando eles iam apertar a mão exclamei: "Porra! Beijem-se! Não se conhecem?" E lá se beijaram.
Ainda era o amor da vida dela?
- Acho que a minha mãe só teve aquela paixão. Que, lamentavelmente, não lhe correu bem. Deepois acompanhámo-lo até ao fim, até ao cemitério do Alto de São João. Ele desistiu de nós mas nós não o abandonámos. E isto não é uma condenação. Ele era um miúdo! Um puto de 19 anos que tinha a vida toda à frente dele, e que fez o que tinha de fazer, acabou-se!
É uma história extraordinária.
- É uma tragédia shakespeariana. Mas, sabe, pelo menos fiquei com a satisfação de a minha mãe e eu termos estado ao pé dele até ao último momento. E tudo acabou ali. O assunto ficou encerrado.
Como é que lidou com a morte dele?
- Não morreu o meu pai. O meu pai tinha morrido há muitos anos.
Não tinha vontade de o amar?
- Não aconteceu.
Mas dentro de si não sentia esse desejo?
- Não... não. Era uma pessoa que me apresentaram. Era o meu pai, pois com certeza, mas faltava-me a experiência, faltava-me a prática.
Faltavam-lhe os laços.
- Exactamente.
E ele como é que o tratava? Também lhe faltava isso?
- Não, não. Tratava-me com um carinho muito grande e sempre com uma grande mágoa. Uma grande mágoa da maldade que tinha feito. Chorava de arrependimento. Não teve mais filhos e sentia que tinha falhado como pai. E o que ele queria era pedir-me desculpa. Mais nada.
Desculpou-o?
- Acho que sim. Desculpei.
Viveu sempre num matriarcado, entre a sua mãe e a sua avó, sem o elemento masculino. Estava agora a pensar se a sua ligação à igreja - que é claramente um patriarcado - não seria uma forma que encontrou de colmatar essa falta.
- Nunca pensei nisso. Acho que não. Há um homem de uma extraordinária importância no meu crecimento que foi colaborador do Diário de Notícias, o José Blanc de Portugal. A primeira forografia minha que saiu numa revista, na revista Flama, tinha uma legenda que dizia: "José Blanc de Portugal, sua mulher e um amigo cujo sonho é ser actor". Foi a surpresa que ele me fez e eu não esqueço. Ensinou-me a ver espectáculos. Fui a muitos concertos, a muitas óperas.
Como é que o conheceu?
- Em Benfica, onde morávamos ambos. Os meus primeiros teatros foram na casa dele, na Estrada de Benfica. Ele tem quatro filhos e eu tinha um acordo de fazer uma peça de teatro por cada festa de aniversário de cada filho. Tinha portanto quatro espectáculos garantidos por ano.
Tomara muitos actores!
- É verdade. Quando acabar esta peça não sei o que vou fazer a seguir. Mas foi aí, na casa do José Blanc de Portugal, que comecei a representar.
Foi então ele quem fez as vezes de pai?
- Não, não. Fez as vezes de um extraordinário amigo. Como era crítico, tinha bilhetes para os concertos e convidava-me. E isso foi muito importante. Além disso, via nele a sabedoria, via nele a pessoa que eu gostava de ouvir falar, que eu sabia que tinha muitos conhecimentos. Era alguém a quem eu fazia perguntas e sabia responder.
Um pai.
- Não o via assim.
Fale-me então da sua mãe. Há pouco não chegámos a falar dela.
- A minha mãe foi sempre uma lutadora. Foi funcionária pública, trabalhou muitos anos na Caixa Geral de Depósitos, e lutou muito. Não tivemos uma vida fácil. Vivemos em quartos alugados.
Sempre em Benfica?
- Não. Lembro-me de um quarto na Pascoal de Melo, por exemplo. Depois fomos viver para esta casa em Benfica (onde ela ainda vive), com uma renda acessível, mas foi um esforço muito grande. A minha mãe levava trabalho para casa para ganhar mais dinheiro. Foi uma mulher que viveu para o seu filho, para o seu menino.
Isso nunca foi um peso para si?
- Nunca. Tenho a maior das admirações pela minha mãe. Sou muito grato. Sou muito amigo dela. Tenho tentado ser um bom filho.
Falam todos os dias?
- Todos os dias, duas vezes. Um telefonema à hora do almoço e outro à hora do jantar.
A sua mãe nunca mais refez a vida com outra pessoa?
- Teve um companheiro durante alguns anos mas nada com a importância da primeira paixão.
Esse companheiro foi importante para si?
- Não. Acho que senti que ele estava a roubar o amor da minha mãe por mim. Foi uma coisa complicada, difícil. "O que é que este gajo está aqui a fazer?" No fundo foi isso. Passados estes anos todos sei dizer que foi isso o que eu senti.
O teatro entra na sua vida pela mão da sua avó Emília. Era ela que o levava ao teatro em menino. Lembra-se de peças que tenha visto nessa altura?
- Nomes de peças não, mas lembro-me que era teatro ligeiro, nomeadamente com a Laura Alves que tinha peças em cena um ano ou mais. E que trabalhou durante muitos anos com dois excelentes actores: o Paulo Renato e o Ruy de Carvalho. Já era muito bom ver representar esses três monstros.
E já se imaginava do outro lado?
- Já, já. Comecei a sonhar com isso a ouvir telefonia. Adorava as vozes. Da Eunice Muñoz, do Raul de Carvalho, do Ruy de Carvalho, da Carmen Dolores, do D. João da Câmara, do Pedro Moutinho, do Álvaro Benamor...
O que é que o estimulava?
- A fantasia. O contar da história.
Viver outras vidas? Fazer de outro?
- Também. É muito bom poder viver outras existências. Ser outras pessoas.
Não será que esse fascínio por fazer de outro tem também que ver com a vida que teve? Não seria uma forma de fugir à sua própria realidade?
- É curioso. Nunca tinha pensado nisso assim. Mas de facto a minha infância e a minha juventude não foram fáceis. E, sim, talvez a representação seja de certa forma uma vingança desse passado. Além disso, viver outras vidas possivelmente libertou-me de me questionar. Ocupou-me. Talvez seja uma fuga, faz sentido.
E como é que se deu o salto para esse mundo de fingimento?
- Conheci a Eunice Muñoz em casa do José Blanc de Portugal e ela percebeu que o meu sonho era ser actor. Um dia, no camarim dela, apresentou-me ao Ribeirinho que estava a precisar de gente nova para uma peça de Gil Vicente. Fiz logo ali um casting no camarim e fiquei. Depois a Eunice foi pedir à minha mãe para me deixar ir para o Conservatório. Para a minha mãe era complicado porque ela sabia da vida insegura que o teatro proporcionava e portanto ela gostaria que eu fosse outra coisa qualquer.
A sua mãe assistiu à estreia?
- Assistiu.
Ainda renitente?
- Não, já estava um bocadinho mais resignada.
Como é que o Vítor se prepara para a transformação do Eu num Outro?
- Com concentração. Muita concentração. Estudo muito, sempre sozinho e depois, dependendo da peça, recolho-me mais ou menos.
Como é que vive esses momentos de maior intensidade na interpretação de uma personagem?
- Tento que não me façam mossa.
Mas é possível que façam?
- É. Cansa muito e pode ser violento. Tento não me deixar arrastar emocionalmente pela espessura de um papel.
Alguma vez lhe aconteceu?
- Aconteceu. Estava a viver um período complicado da minha vida pessoal e, ao mesmo tempo, a fazer a "Tragédia da Rua das Flores". Aquele texto fez-me mossa. Foi tudo muito confuso. Tive um esgotamento, achei que ia morrer, fui-me muito abaixo. E como não conseguia resolver a minha situação, e era tudo tão violento à minha volta, achei que o mais normal era acabar comigo. Suicidar-me. Foi uma fase terrível. É esquisito falar nisto... Mas cheguei a perseguir comboios. Ir para pontes. Saía de casa com a ideia fixa de morrer. Um dia achei que tomando meia dúzia de comprimidos morria. Não morri. Dei um grande desgosto à minha mãe e à minha avó, que deram comigo nos cuidados intensivos de um hospital. Foi terrível. Mas passou. Já lá vão 30 anos.
Mas aí não foi só a densidade do papel que o levou a essa espiral de loucura. Havia também um problema pessoal. O que pergunto é se só a interpretação de um determinado papel pode conduzir um actor a essa vertigem, a esse precipício?
- Pode, perfeitamente. Há papéis muito violentos. Por que é que acha que a maior parte dos actores já atravessou uma fase complicada de vício: cocaína, álcool, etc? Eu próprio tenho fases em que me apetece beber muito. Não para me embebedar mas para me sentir ligeiro, mais solto. Porque há momentos em que nos sentimos muito carregados. Há personagens que mexem cá dentro, fazem insónias, e obrigam-nos a questionar a nossa própria maneira de pensar e de ser.
É também por isso que gosta de poesia? Por causa dessa força?
- Com vinte e poucos anos fui para o Conservatório e conheci um colega que era o Diogo Ary dos Santos, irmão do José Carlos. O Diogo pregou-nos uma partida e suicidou-se por amor. E eu conheci o José Carlos Ary nessas circustâncias, perdendo um irmão. Fiz amizade com ele e passei a integrar as tertúlias poéticas que contavam com o próprio Zé Carlos, a Natália Correia, o David Mourão-Ferreira, o Alexandre O'Neil... Não pode imaginar o que é para um adolescente viver esta experiência.
Como é?
- É maravilhoso, um privilégio imenso. Ninguém estava ali a exibir-se, havia o culto da palavra e os poemas vinham como uma conversa. É por isso que eu não gosto nada do termo recitar o declamar. É dizer. Dizer poesia. Essas tertúlias eram magníficas! Acabavam muitas vezes a fazermos jogos da verdade, que eram terríveis. Tínhamos que prometer dizer verdades às perguntas que nos faziam.
E porque é que era terrível? Pela exposição?
- Porque tínhamos mesmo que dizer a verdade. Lembro-me que num desses jogos uma das senhoras presentes levantou-se, foi para casa e tentou matar-se.
Que verdade terrível é que ela confessou, lembra-se?
- Sei que o José Carlos lhe perguntou sobre um amor. Ela levantou-se, indignada, e disse-lhe que ele não tinha o direito de fazer aquela pergunta: "Tens que perceber o que é estar-se apaixonado! Lembra-te que o Diogo se matou por amor!" O que ela foi dizer ao José Carlos! Tocar assim no nome do irmão! Aquele boi com coração de passarinho levantou-se com as bochechas a abanar, vociferando: "Então, minha puta, mata-te! Então, minha vaca, desaparece!" Tudo aquilo em grande. E ela levantou-se e desapareceu. Esteve em coma 15 dias, felizmente não morreu. As tertúlias podiam ganhar essa violência. Outras vezes acabavam em ceias magníficas e acabavam no Cacau da Ribeira. Eram momentos mágicos.
Voltando ao teatro e à tal densidade de algumas personagens de que falávamos, alguma vez se assustou com a dimensão de um papel que lhe tivesse sido dado? E aqui dimensão pode ser no que respeita à extensão ou à responsabildiade ou à dimensão psicológica.
- Aqui há uns anos - era miúdo - assustei-me quando fiz um texto de Arrabal. Era um texto forte, com a Eunice. Houve vários que me assustaram. Mas fico sempre muito feliz por ter sido escolhido e isso dá-me força e faz passar o medo. Esta última peça, "A Educação de Rita", também me assustou pela extensão.
É preciso ter uma memória extraordinária!
- Eu fico surpreendido comigo. Estudo muito mas depois fico inseguro. Sei o texto e penso que não sei. Tenho períodos em que massacro a minha cabeça a ler em voz alta e a trabalhar o texto porque me convenço de que não o sei. Ultimamente largar o papel é um acto doloroso para mim. Sinto uma insegurança terrível.
Acorda de noite?
- Acordo. Deixo o texto à cabeceira, acendo a luz e, meio a dormir, lá volto eu a massacrar-me. E às vezes basta uma palavra para emperrar tudo o resto. Acontece-me imenso.
Depois de se ter estreado em 1965 na peça de Gil Vicente com o Ribeirinho, fez muito teatro dramático.
- Tinha, aliás, na carteira profissional, a designação de "Artista Dramático".
É curiosa esta tendência para rotular. Porque a seguir começa a trabalhar com o Herman e o rótulo muda de dramático para humorista.
- A fase Herman faz-me sair um pouco dessa carga dramática. Mas seria injusto se eu não me lembrasse que tinha feito comédia com a Laura Alves, com o Nicolau Breyner, com o Camilo de Oliveira, o Octávio de Matos...
Bom, mas com o Herman trabalhou mutios anos e ficou muito tempo conotado com aquela "família". Como é trabalhar naquela casta?
- É muito bom. Muitas pessoas acham que aquilo é tudo uma anarquia. Cada um chega ali e diz o que quer, o que lhe passa pela cabeça. É justamente o contrário. O Herman, como director, é das pessoas mais disciplinadas que conheci. Só que depois as coisas ficam tão bem preparadas que realmente parece que não se trabalhou nada e que cada um está a fazer aquilo que lhe apetece. Conseguimos momentos de humor muito bons, muito fortes. Alguns de antologia.
Imagino que tenha um lado muitíssimo estimulante trabalhar com aquele grupo tão bom, mas às tantas não é um bocadinho estar na casta de, ser filho de? O Herman e os acólitos?
- Lembro-me de o Paulo Renato dizer isso. Sempre que ia para o teatro representar com a Laura Alves, dizia: "Vou dar as deixas à patroa". Com o Herman nunca o senti. Nunca senti que fosse dar as deixas ao patrão. Ele sempre foi muito cuidadoso em distribuir o trabalho pela sua equipa. E depois sabe tirar partido dos defeitos e das qualidades dos actores que trabalham com ele. Formámos sempre uma equipa muito boa. E que aligeirou a tal carga pesada, dramática que a minha carreira tem. Aliás, o Herman dizia muitas vezes: "Tu eras cinzento, eras um chato antes de termos começado a trabalhar juntos!"
E é verdade?
- Talvez fosse um bocadinho mais sisudo, sim.
Não gostava de terminar esta nossa conversa sem voltar à história do seu pai. Sabe porquê? Porque senti que, sempre que falamos nele, se agita na cadeira e fica mais tenso sem nunca, no entanto, o confessar.
- Se calhar, sem querer, incomoda-me. Sabe, foram 56 anos sem fazer perguntas.
Em que é que acha que essa história e o peso dessa história o transformou no homem que é hoje? Ou seja, que traços seus são o reflexo desse abandono e desse reencontro?
- ... Não sei. Sinceramente, não sei dizer. Estou confuso. É-me complicado desvendar e responder à sua questão.
Deixo-lhe este trabalho para casa.
- Vou pensar nisso, a sério. É um processo inquietante.
E costuma fugir das coisas que o inquietam?
- Tento fugir, tento. Se percebo que é uma coisa que me perturba, que é uma coisa que me vai aborrecer, fujo. Nem sempre fui assim, mas hoje evito incomodar-me.