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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Brasilino Godinho: na universidade aos 77 anos, doutorado aos 85

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Tem um olhar vivo e perspicaz, de quem está sempre pronto a aprender qualquer coisa que a vida ainda tenha para lhe ensinar. Brasilino Godinho faz este mês 86 anos e concluiu em Julho o doutoramento em Estudos Culturais, contrariando o batido provérbio que garante que "burro velho não aprende línguas". Talvez por não ser burro nem por não se considerar suficientemente velho, o que é certo é que cumpriu um sonho, deu uma lição a quem arruma prematuramente as botas e, de caminho, arrumou com ditados tolos.

"Na minha adolescência tomei logo o propósito de entrar na universidade, mas os meus pais não dispunham de recursos financeiros", explica Brasilino, com um português tão antigo quanto correcto. Nessa altura, desconsolado por ser o dinheiro a cortar-lhe as pernas, procurou o avô paterno, "um industrial com recursos que podia perfeitamente custear os estudos". Brasilino disse ao que ia. "E ele, depois de uma pausa que pareceu uma eternidade, disse que era muito caro." Que podia comprar-lhe uma bicicleta para ele ir trabalhar lá para a fábrica. O neto agradeceu mas recusou. "Andei muitos anos a censurar-lhe o procedimento. Mas hoje até lhe estou agradecido. Sabe, às vezes há males que vêm por bem. Se tivesse ido para Lisboa fazer Engenharia, no Técnico, não teria adquirido a experiência de vida que tenho. Seria protegido pelo meu avô. E assim posso dizer que tudo o que construí a mim devo."

Brasilino nasceu em Tomar e sempre gostou da escola. Lia muito. Com os seus 16 anos já tinha lido Kant, Platão, Bertrand Russell, entre outros. Como não pôde fazer a universidade, fez o Curso Industrial de Serralharia Mecânica, na escola Jacome Ratton, em Tomar. "Detestei o curso. Frequentar as aulas práticas para mim era como ter um martelo a bater-me na cabeça. No primeiro trabalho da aula de oficina deram-me um quadrado de chapa com um palmo de lado. O objectivo era pôr todos os ângulos a 90º. Fui limando, limando, até ficar com um quadradinho minúsculo e, mesmo assim, ainda não estava bem. Passei a detestar trabalhos manuais. Mais tarde a minha mulher brincava comigo: 'nem para pregar um prego tu serves!' E tinha razão." De qualquer modo, o curso foi muito exigente. Tão exigente e profundo que passados 30 anos Brasilino ainda conseguia deduzir as fórmulas da Cinemática, capítulo da Mecânica (disciplina da Física), ministrada no referido curso. 

Quando terminou o curso industrial, Brasilino esteve dois anos e meio a trabalhar na secção de engenharia da Câmara Municipal de Tomar sem receber um tostão. "Foi muito importante. Queria aprofundar a prática e agarrei-me a isso. Sem dúvida que foi um grande investimento de natureza profissional de experiência de vida e de apreensão das práticas político-administrativas do poder autárquico. Tornei-me um desenhador de construção civil razoável. Quando abriu o concurso para a Direcção Geral de Serviços de Urbanização, para desenhador de 3ª classe, candidatei-me. Eram 50 e tal concorrentes e, surpreendentemente, fiquei em 6º lugar. Chamaram-me para exercer a função na Direcção de Urbanização dos Açores e lá fui eu, em Maio de 1954, para Ponta Delgada."

Em Ponta Delgada, tentou de novo voltar aos estudos. Comprou livros, procurou uma explicadora e quando estava tudo bem encaminhado, surgiu a oportunidade de colaborar na elaboração de vários projectos de estradas. "Aconteceu sempre, na minha vida. Sempre que encetava os passos direccionados para a universidade surgiam outras coisas que se punham à frente dos estudos". Entre elas, Luísa Maria Albernaz Tapia, que conheceu nos Açores e com quem casou e teve dois filhos (duas novas alegrias que se interpuseram à escola). Os filhos, de resto, tiveram a oportunidade que ele não teve. Curiosamente, formaram-se ambos em Engenharia Civil, na Universidade do Porto e com todos os encargos financeiros suportados pelo pai.

Depois de quase três anos em Ponta Delgada, voltou para o continente, mais concretamente para a Direcção de Urbanização de Leiria, ; tendo mais tarde, em Fevereiro de 1963, mudado para Aveiro onde, nos Serviços Técnicos da Junta Distrital de Aveiro, acabou a fazer uma longa carreira como topógrafo, apesar de muitas contrariedades profissionais, que o desgastaram mas nunca o vergaram. 

Quando, em 2008, a mulher faleceu aos 74 anos, Brasilino Godinho ficou profundamente abalado. Afinal, tinham vivido 51 anos juntos. Não é fácil suportar uma perda tão grande. Brasilino permitiu-se fazer o luto e, um dia, respirou fundo e sentiu que tinha chegado o momento de seguir em frente. E seguir em frente significava, agora que os filhos já tinham a sua vida e que a mulher partira, voltar aos estudos oficiais, tanto tempo adiados. Entao, com 77 anos, concorreu à Universidade de Aveiro, ao abrigo do processo de Bolonha, no sentido de frequentar o curso de Línguas, Literaturas e Culturas. Teve 17 valores na prova de admissão. "A primeira aula? Não há palavras para a descrever. Foi uma emoção adiada 60 anos, o que a tornou inexprimível. No final da aula, solicitei à professora o uso da palavra. E pedi aos meus colegas para não me darem tratamento especial. Queria que soubessem que não me achava nem mais nem menos do que qualquer um deles."

Ainda assim, não foi praxado, nem andou nas noitadas como quase todos. Por outro lado, estudou muito. Sobretudo porque começou o ano atrasado (teve de esperar pelo despacho que o autorizava a iniciar o curso ainda nesse ano lectivo) e depois de 3 aulas de Latim teve logo um teste. "Quando veio a nota - 7 valores - pensei: 'Brasilino, para quem nunca teve um sete, começas mesmo mal.' Mas também reflecti de que nem tivera tempo de estudo suficiente para aprofundar matéria de tanta exigência. No final do período tive 16."

Brasilino Godinho terminou o curso a 14 de Dezembro de 2012, com a média de 15 valores. Logo em Janeiro foi pedir para se inscrever no Doutoramento. Disseram-lhe que tinha de fazer o Mestrado primeiro. "Expliquei que atendendo à provecta idade de 81 anos seria de admitir não haver espaço de tempo de vida para cursar Mestrado e Doutoramento. Além de que não queria perder o ritmo de trabalho que tinha conquistado. Foi feito um requerimento dirigido ao presidente do Conselho Científico da Universidade de Aveiro a solicitar permissão para frequentar o Doutoramento que, dois meses depois, chegou aprovado pelos 17 membros do conselho, por unanimidade.” 

E foi assim que, aos 85 anos, Brasilino se tornou doutor. No dia 5 de Julho defendeu, durante duas horas, a tese com quase 500 páginas, "Antero de Quental: um patriotismo prospectivo no porvir de Portugal". Porquê, Quental? "Porque foi um poeta de muito valor, tão brilhante como Camões e um pensador extraordinário. Tão extraordinário que, no final do acto doutoral, apresentei uma proposta para que a Universidade dos Açores fosse designada por Universidade Antero de Quental. Entretanto já recebi a resposta do reitor da dita universidade a agradecer a proposta mas afirmando que não estava no horizonte alterar a designação de Universidade dos Açores".

Agora, com quase 86 anos, uma vida inteira de experiência, dois livros de poesia e um volume de ensaio publicados, uma licenciatura (com 15 valores) e um doutoramento (aprovado por unanimidade do júri), Brasilino Godinho pretende arranjar emprego: "Se estive 8 anos a fazer dois cursos universitários (licenciatura e doutoramento) e manifestei capacidade para os frequentar e concluir com boas avaliações, com certeza que estou habilitado a trabalhar! Ou como assessor numa instituição oficial ou particular relacionada com Urbanismo e Construção Civil, ou como professor de Cultura Portuguesa ou Cultura Espanhola. Se não arranjar emprego, vou continuar estudos na área das Humanidades, dedicar-me mais à escrita e publicar dois livros que tenho em carteira”.  

Um exemplo de perseverança e vontade de viver, sem dúvida. E se é verdade que esvaziou o sentido ao provérbio que diz que "burro velho não aprende línguas", não é menos verdade que deu todo o sentido a um outro: "Parar é morrer". É que Brasilino está mais vivo que nunca.

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Fotografias: Filipe Andrade