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Sempre foi gorda. Não usa eufemismos para se descrever. Não diz forte, cheiinha, rechonchuda. Diz gorda mas o modo como o diz é desprovido de tristeza ou daquela amargura que muitos ex-gordos têm ao falar do período em que tinham peso a mais. Marta garante que não se sentia mal por ter um formato fora dos padrões ditos normais. Era uma miúda bem disposta, sociável, com uma auto-estima considerável, que corria, brincava, fazia ginástica, e tudo o que os outros faziam. "Claro que quando começaram as bocas não gostei. Baleia assassina, balofa, coisas assim. Mas passava-me depressa."
Marta Jordão era uma aluna razoável. Como adorava moda, decidiu fazer um curso profissional de Coordenação e Produção de Moda no Magestil. Ainda fez umas coisas mas a seguir achou que queria ser empresária na área da moda e foi então estudar à noite Gestão de Marketing no Instituto Português de Administração de Marketing (IPAM). Durante o dia trabalhava em telecomunicações, em retenção e fidelização de clientes. Sempre arranjou empregos facilmente, apesar de ser grande. Sempre teve namorados, "magros e giros". Nunca se sentiu discriminada ou preterida. No último ano do curso, engravidou (vivia há três anos com o José Maria, com quem ainda vive). Se já era gorda, mais gorda ficou depois da gravidez.
Chegou aos 136 quilos (na balança do médico eram 141). Continuava de bem com a vida mas a filha, que também começou a ter problemas de excesso de peso, já não estava a lidar tão bem com a situação. "Na primária batiam-lhe, chamavam-lhe os nomes do costume, baleia, badocha, gorda, e quando eu a ia buscar o gozo ainda era maior. Então, percebi que ela tinha de mudar a alimentação, para ficar com um corpo que não lhe trouxesse os problemas que, a mim, nunca me trouxe. Mas como podia mandá-la emagrecer e cortar-lhe a 'ração' se eu, a mãe, continuava a enfardar tudo e gorda como um texugo? Percebi que tinha de ser um exemplo e que ia ser uma missão para as duas."
Então, a 27 de Julho de 2016, Marta fez jum sleeve gástrico, ou seja, submeteu-se a uma cirurgia para lhe retirarem 80% do estômago, nomeadamente a parte onde é produzida a grelina, também conhecida como "hormona da fome". "Fui sozinha, de autocarro, estava um sol maravilhoso quando entrei no Pulido Valente." A operação correu bem e, no dia seguinte, teve guia de marcha para casa.
No dia 30 de Julho sentia dores nas costas. Parecia uma dor lombar. Tinha calor, muito calor. Mas, como era verão, desvalorizou. Levantou-se mais de 10 vezes para tomar duche. "Sentia-me a ferver. Sentia-me estranha, como se eu não fosse bem eu. Às tantas, tive um rasgo de lucidez, quando percebi que algo não estaria bem comigo porque estava a atirar água para cima de mim no sofá, encharcando tudo à volta, como uma louca." Ligou ao marido, que disse que dentro de uma hora estaria em casa, mas ela compreendeu que o assunto era emergente. "Tenho de ir para o hospital AGORA." Chamou os bombeiros e, já em Santa Maria, lembra-se de ver toda a gente em grande aflição à sua volta e... mais nada. Apagou-se. "Acordei dois dias depois, nos Cuidados Intensivos. Estive muito perto de bater a bota. Basicamente o que aconteceu foi que fiquei com duas fístulas no estômago (dois buraquinhos) que provocaram uma peritonite e uma septicemia, ou seja, uma infeccção generalizada. O médico que me operou para limpar tudo disse à minha família que eu estava por um fio."
Passados uns dias, foi mandada para casa mas com consulta marcada para breve, para ver os pontos. Quando chegou à consulta, no dia 9 de Agosto, a enfermeira estranhou-a: "Não a sinto bem. Sinto-a a respirar de forma estranha." Chamou o médico que a mandou para as urgências. Quando lhe retiraram três pontos da barriga começou a sair um líquido cor-de-laranja. "Comeu sopa?" Tinha comido. Já não saiu do Serviço de Observação (SO). A comida continuava a sair do estômago e alojar-se no espaço abdominal.
Marta ficou internada de 9 de Agosto a 24 de Novembro de 2016. Três longos meses. "Fiquei com a barriga aberta para ir saindo a porcaria toda. Tinha um grau de infecção enorme. Depois, como sou uma mulher de sorte, apanhei uma super bactéria hospitalar e tive de ficar em isolamento. Tudo isto com uma filha com 10 anos que tinha de gerir à distância: se já tomou banho, se cortou as unhas, se estudou, se foi à ginástica... já para não falar nas saudades... depois das visitas ficava sempre de rastos." Nesses três meses, aconteceu-lhe de tudo: "A seguir tive uma trombo-embolia pulmonar. Aí foi tramado porque não dá para nos mexermos, temos umas meias de bailarina... felizmente não foi necessário pôr um dreno para tirar líquido do pulmão porque era pouco e o médico não quis arriscar porque estava muito perto da pleura. Mas não me livrei de um dreno posto a sangue frio para sair pus por detrás do pâncreas, tal era a infecção que eu tinha... enfim. Quando me vêm falar mal das pessoas da saúde tenho vontade de partir para a violência. Comigo foram sempre impecáveis. Fui tão massacrada e eu bem via como lhes custava causar-me sofrimento. Além disso, que diabo! Têm uma vida tramada, sempre a limpar a porcaria de toda a gente. Às vezes estão mal dispostos? Pudera! Vão todos os dias trabalhar para o inferno!"
Durante o internamento, e quando não podia comer nem beber, ganhou o vício da água. "Tinha de ter umas 10 garrafas de água para estar sempre a bochechar. Se não as tinha entrava literalmente em pânico. A boca sabia-me a metal, da prótese que me tinham metido, de maneira que delirava com seven up ou ginger ale. E sonhava com enguias fritas, carapaus fritos, coisas crocantes." Os amigos foram fundamentais. Marta emociona-se sempre que pensa neles e em tudo o que fizeram por ela. "Tenho pessoas fantásticas na minha vida. Pessoas que me traziam tudo o que eu pedia, que estiveram sempre lá para mim, nunca se cansaram de mimar."
Em Novembro, quando saiu do hospital, Marta não dava um passo. Além dos 30 quilos que já tinham ido embora, tinha perdido muita massa muscular e, por isso, foi de ambulância para casa do irmão mais velho, que podia dar-lhe mais assistência. "Estive um mês em casa dele. Fazia fisioterapia todos os dias. O meu irmão puxava muito por mim mas eu estava de gatas. Ia de andarilho à casa de banho mas com imensa dificuldade. De tal maneira que, quando queria fazer xixi a meio da noite tinha de lhe ligar para ele vir comigo."
Nesse mês em casa do irmão, começou por comer apenas líquidos, depois uma fase de purés, e por fim comida come: arroz caldoso, maizenas, fruta madura. Já não tinha dreno, nessa fase, e há um dia em que Marta acordou com uma picada na barriga, na cicatriz do dreno, que foi começando a inchar. "Cocei e começou a sair papaia..." Tinha-se partido a prótese e ficou mais 27 dias internada. Isto já em Janeiro de 2017. Tudo isto podia ter sido evitado se, na altura do primeiro internamento, a prótese desenhada à medida pelo imagiologista Carlos Noronha e mandada fazer na Coreia, tivesse sido codificada pelo Infarmed em tempo útil. Mas levou seis meses a ser codificada e, por isso, só a 21 de Janeiro é que Marta a recebeu. Tudo foi ao sítio num instante, com essa prótese à medida. Dois meses depois, em Março, Marta foi ao bloco para tirar a prótese e respirar finalmente de alívio.
Depois disto, foi viver um dia atrás do outro, sempre colocando objectivos diante do nariz para ir conseguindo concretizá-los. "Primeiro ir ao café era um desafio, a seguir ir levar a miúda ao colégio era uma aventura ainda maior... passo a passo. O primeiro grande objectivo era ir ver o concerto do Bruno Mars em Abril de 2017. E fui." Começou a caminhar junto ao rio, a frequentar o ginásio, em Junho voltou ao trabalho (trabalha na área comercial da Rodoviária de Lisboa). Foi perdendo peso. Até chegar aos 85 quilos para o seu 1,78m. Ainda tem muita pele para remover cirurgicamente. Só em pele devem ser uns quilinhos. Pena não dar para casacos!
Sente-se uma outra pessoa. Se é verdade que antes não se sentia mal, não é menos verdade que hoje se sente mesmo muito bem. Mas, sobretudo, aprendeu muito com o mau bocado que passou para chegar até aqui: "Não aturo merdas. Não me chateio. Deixei de me preocupar com coisas menores. Estive quase a morrer, agora quero é aproveitar a vida ao máximo." Ah, e a filha também mudou a alimentação e já não tem vestígios de obesidade. Mede 1,70m aos 11 anos, melhorou a auto-estima e praticamente já não tem que aturar as bocas do costume - praticamente porque há sempre miúdos parvos que gostam de chatear. Missão cumprida. Foi tramado para a cumprir, mas está feito. E que bem feito! É por tudo o que atrás se contou que Marta Jordão se inclui nas duas rubricas ao mesmo tempo. "Mudar de Vida" porque a mudança de hábitos alimentares, e estilo de vida, e formato, e saúde foram brutais. "Mulheres do Caraças" por tudo o que passou, sempre de cara alegre e com a sua energia de sempre.
Mãe e filha, juntas numa missão de sucesso
Foto: Pau Storch
Talvez lhe esteja no sangue. Nas células. Inscrito no ADN. Marisa não sabe. Lembra-se, porém, de ser pequena, uns 5 ou 6 anos, e de pedir lanche à avó quando chegava a casa. A avó, que lhe tinha enviado lanche na mochila, estranhava o apetite voraz da pequena. Ali havia gato. Um dia descobriu. Marisa costumava dividir o lanche com colegas que, provavelmente, não tinham sequer almoçado. E então, a partir daí, a avó começou a levar outro lanche à escola. Compreendeu que a sua menina era feita de um material distinto. Talvez lhe estivesse no sangue. Nas células. Inscrito no ADN. A avó não sabia. Do que tinha a certeza era de que havia ali um coração grande. E não há como uma avó não se orgulhar disso.
A avó Bina. Que por acaso era bisavó. Cheirava a lavanda e fazia as melhores iscas do mundo. E dava-lhe amor. Marisa viveu com ela até aos 13 anos. Numa "ilha". Quem é do Porto sabe o que é uma "ilha" e não, não é um pedaço de terra rodeado de água por todos os lados. Era um tipo de construção clandestina, que consistia numa rua com pequenas casas de um lado e do outro e, ao fundo, uma casa de banho que dava serventia a todos os "ilhéus". Sem água quente. Marisa di-lo sem vergonha, pelo contrário. "Digo-o com orgulho. No outro dia contava à minha filha, que tem 10 anos, que foi assim que vivi a minha infância. E ela perguntou-me: 'E eras feliz?' Então não era! a jogar à bola no meio dos paus da roupa? Assim como não tenho vergonha de dizer que o meu pai, quando nasceu, dormia num gavetão alto da cómoda, que era para os ratos não lhe chegarem. Isso fez de nós quem somos. Só temos é de ter orgulho!"
Marisa sempre teve o tal coração grande que a avó descobriu por intermédio dos lanches mas foi quando conheceu o Paulo Sousa Costa que a sua vida mudou. Na altura, ela trabalhava no FCP, e aquele encontro com um pai que tinha perdido um filho com uma leucemia rara e galopante mexeu-lhe com o sistema inteiro, sangue, células, ADN. "Marcou-me muito aquele homem com uma tristeza funda no olhar e, ainda assim, com uma disponibilidade enorme para ajudar os outros."
Desde então, começou a ajudá-lo nessa tarefa de ajudar os outros. Começaram por organizar eventos onde se faziam recolhas de dadores de medula, mas depressa os pedidos se estenderam a outras áreas. A solidariedade foi um bicho que se lhe colou à pele, à alma, ao corpo todo. Nunca mais parou. "Ajudar os outros também me salvou a mim. Eu trabalho no Instituto Politécnico do Porto e tenho uma função que odeio. A minha formação é Acção Social mas o que eu faço é Cobrança Coerciva de Propinas. Sou uma espécie de "Cobrador do Fraque". Eu! Sabendo que há pessoas que não pagam porque não podem, porque não conseguem. Há injustiças medonhas. Odeio o que faço e toda a gente sabe. Por isso, tudo em que me meto para ajudar os outros salva-me da minha própria vida. Quando sinto que tive um dia mau, passa-me num instante quando chego a casa de uma mãe que pediu ajuda para pagar a luz e depois vejo no frigorífico que ela tem um pacote de leite aberto e absolutamente mais nada. Sempre fui pouco de me queixar mas desde que sei destas realidades deixei-me mesmo disso."
No Instituto, já ajudou alunos, famílias, colegas de trabalho. Sempre que percebe que há alguém em apuros, Marisa move céus e terra. Chateia meio mundo. Não descansa. Não dá tréguas. Insiste. Persiste. Teima. Acaba sempre por levar a água ao seu moinho. Ainda assim, há condições mínimas para que ela se ponha em acção. "Não ajudo quem recebe o RSI (Rendimento Social de Inserção). Odeio o RSI. Acho que promove a preguiça, a falta de vontade, de inciativa. É o típico dar o peixe em vez de ensinar a pescar! Eu ajudo pessoas que trabalham ou querem trabalhar. Pessoas que estão a passar por um momento difícil. Avós a quem o tribunal entregou, de um dia para o outro, os netos porque os pais foram presos. Uma mãe que se divorciou e cuja doença da filha a obriga a faltar constantemente ao trabalho. Claro que é despedida. E depois? Como estas casos, tantos! Tantos. Pobreza envergonhada. Pessoas que ganham o ordenado mínimo e que, de repente, são surpreendidas com uma despesa maior e não têm como pagar. Aquilo vai crescendo e, de repeente, já há penhoras e o diabo. E essas não têm subsídios do Estado. Têm de se safar. As pessoas nem imaginam."
Para tornar a ajuda mais consistente, Marisa criou em 2013 o Mercado dos Santos, uma Associação de Solidariedade Social. Não tem uma estrutura, os voluntários entram e saem, mas havia a preocupação de imprimir seriedade à ajuda. É importante ter um NIB (004601900060023364155) para quem quiser ajudar com transferências, uma página de facebook onde se dá conta dos eventos solidários ou campanhas em curso, e onde são publicadas as fotografias que provam que a ajuda é entregue.
Sempre que alguém lhe diz que não tem trabalho e começa a arranjar desculpas para não aceitar todas as sugestões que Marisa traz na manga, põe logo os pontos nos is, com aquele sotaque acirradamente portuese: "Não quer trabalhar? Santa paciência, não ajudo! Eu também trabalho e não gosto!" É o pior que lhe podem fazer. Isso e pedir ajuda mas ter telemóvel topo de gama e unhas de gel. "Há muita gente sem juízo. Tento explicar à minha filha que, às vezes, o coleguinha até pode ter umas sapatilhas de marca e ter a barriga vazia. Para muitas pessoas é preferível ter um iPhone mas comer atum toda a semana. Ou ir namorar e deixar o filho internado a semana inteira sozinho. Tento educar a Mi para estas realidades. Para que cresça consciente."
E está a fazer um belíssimo trabalho. Quando foi dos incêndios que assolaram o país, no dia 15 de Outubro, Marisa arregaçou as mangas e só parou no Natal. Angariou roupas, comida, produtos de higiene, brinquedos. Andou a levar tudo para Midões, num vai-e-vem desenfreado. Arranjou cabazes de Natal para dar uma consoada digna a quem, de um momento para o outro, perdeu tudo. Dormiu mal porque fica difícil dormir bem quando se está tão por dentro destas fatalidades. A filha Mi queria ir sempre com a mãe, mesmo quando era o fim-de-semana do pai. E distribuía abraços. "Tenho a certeza de que estou a torná-la uma pessoa melhor, preocupada com o outro, e não apenas com o seu umbigo. Gosto de lhe dizer que quero que ela tenha todas as coisas melhores do mundo: casa, carro, telemóvel, computador, tudo! Mas que se não tiver pode perfeitamente ser feliz na mesma. Às vezes até mais."
E porque o universo talvez se encarregue de compensar as pessoas boas (dava mesmo jeito acreditar nisto) Marisa, que se tinha separado do pai da Mi quando ela tinha 6 anos, refez a vida com o Álvaro, em Maio de 2014. E ganhou aquilo que sempre quis ter: uma família. Em 2016, por insistência da filha, casaram. Afinal, segundo a Mi, a mãe "já não tinha idade para namorar". Sempre que se referia ao Álvaro como "o namorado da mãe" soava esquisito. "Porque é que não casam?" E casaram mesmo, na véspera de São João. Um casamento seguido de sardinhada. Um casamento por amor, um daqueles amores que vêm para ficar. "Queria muito que a Mi tivesse uma família, ainda que ela tenha o melhor pai do mundo. Mas uma família assim no sentido côncavo, do aconchego, da felicidade e da partilha, de fazermos tanta coisa juntos... isso ela ainda não tinha tido. E agora tem. E eu sinto uma felicidade tão grande por isso. Tenho tanto a agradecer ao Álvaro, por ter vindo para a minha vida, por me dar os abraços que só dei à minha avó, por me aturar nesta loucura que é a minha vida, a juntar roupas e comidas e brinquedos. Por saber que é desta maneira que sou, e por gostar de mim tal como sou."
Marisa é assim. Dura (mas um coração mole). Bruta (mas com uma sensibilidade à flor da pele). Frontal (sem mas). Talvez lhe esteja no sangue. Nas células. Inscrito no ADN. Marisa não sabe. O que sabe é que precisava encontrar um sentido para a sua vida. E este, o de se dar aos outros, foi o melhor sentido que podia ter encontrado.
Fui ter com ela à Leitaria Quinta do Paço, no Mercado do Bom Sucesso (Porto), sem saber muito da sua história. Sabia que tinha tido um cancro, mas eu ia ao seu encontro pela justíssima petição que tinha criado e que, por ser justíssima e também pela sua perseverança e tenacidade, tinha chegado ao incrível número de 17 mil assinaturas (agora já vai em 18 mil), indo por isso a discussão na Assembleia da República, no próximo dia 31 de Janeiro.
Quando lhe pedi que começasse por onde se deve começar, ou seja, pelo princípio, ela cumpriu: "Em 2012, descobri que tinha um cancro de pulmão". E eu, que perdi há dois meses um grande amigo com esse tipo de cancro, e que tenho outro amigo na luta contra esse mesmíssimo cabrão, senti a mão falhar-me no caderno, a letra a ficar mais fraca, a respiração suspensa. Houve ali um momento de choque que tive de superar, confesso, agarrando-me ao facto de ela o ter descoberto há quase 6 anos e estar ali, viva e com excelente aspecto, a conversar comigo.
Cristina Coelho da Silva Alves tem 51 anos. Professora de Desenho e Geometria Descritiva A. Casada, mãe de três filhos.
Era Agosto e estava de férias quando, ao passar creme depois de mais um dia de praia, sentiu um nódulo grande no pescoço. Filha de um médico, cirurgião, soube logo que não vinha de lá coisa boa. Depois de consultar o "Dr. Google" disse ao marido: "Temos aqui um problema. Tenho um cancro. Ou é pulmão, ou é um linfoma ou é estômago." Como em 2009 tinha tido uma hemorragia pulmonar e tinha andado a ser seguida no hospital até Novembro do ano anterior, descartou de imediato o pulmão. Por outro lado, como a avó paterna tinha morrido de cancro de estômago, achou logo que era por aí.
Faltavam 10 dias para acabarem as férias. Era Agosto, mês de pausa para a maioria dos médicos. Apesar de nuvem negra que lhe pairava por cima, e com o pragmatismo que a caracteriza, decidiu continuar no Algarve, a aproveitar o tempo de sossego que lhe restava. No dia 3 de Setembro, uma segunda-feira, entrou no IPO do Porto de onde saiu com um diagnóstico mauzinho: tinha um adenocarcinoma pulmonar no estadio III B. Foi sozinha de táxi para casa. Ou melhor, não foi sozinha. Foi com a sua sentença, que tinha peso e corpo e dimensão praticamente palpável. "Sentia uma pena profunda de mim própria. Cheguei a casa, naquele processo de auto-comiseração, e precisei de ruído. Liguei a televisão, estavam a dar notícias, e a primeira coisa que ouvi foi que um camião se tinha despistado, em Lisboa, e colhido numa esplanada mãe e filha. Uma tinha morrido e a outra estava em estado crítico no hospital. E foi aí que pensei: 'com que direito é que eu estou aqui a sentir-me miserável? Aquela pessoa estava numa esplanada e morreu sem poder dizer aos que ama que os ama, sem poder dizer que odeia aqueles que odeia, sem poder “arrumar a casa", sem poder rasgar os seus diários (coisa que eu tive a oportunidade de fazer), sem sequer poder lutar? Eu posso fazer isso tudo!' E a partir desse momento não voltei a sentir mais pena de mim. Arregacei as mangas e fui à luta."
Quinze dias depois começava a fazer quimio e radioterapia, além de uma alteração radical na alimentação que implicou cortar todos os açúcares, inclusive os alimentos que, ao entrarem no nosso corpo, se transformam em açúcar (massa, arroz, pão branco, etc). Cortou o cabelo como a Christine Lagarde, ela que até então sempre o tinha usado comprido, e pediu ajuda ao marido para dar a notícia aos filhos. Estaria presente mas a palavra "cancro" seria dita por ele. Pelo menos esse primeiro embate, porque ela sentia que não era capaz. E assim foi. O marido disse aos três filhos, então com 15, 16 e 19 anos: "A mãe está com um cancro no pulmão" e a seguir, passada a primeira colisão, ela tomou as rédeas do tema sublinhando: "Mas isto é para curar. Quando virem a mãe em mau estado lembrem-se que é dos tratamentos e o cancro vai estar muito pior. Não é a mãe que tem um cancro! Nós temos cancro e vamos ficar bons!"
Também aos pais foi o marido, na presença de Cristina, que iniciou a conversa. "Eu sou filha única e nenhum pai merece ouvir que um filho tem um cancro. Foram uns heróis, aguentaram-se e nunca me mostraram dúvidas ou incertezas na minha recuperação."
Cristina não poupa nos adjectivos para se referir ao marido. Que foi incrível, que nunca a deixou sentir-se sozinha, ou feia, ou alvo de pena. Que sempre lhe disse que estava linda mesmo quando chegou a vestir o 32 e tinha aquela cor amarelo-esverdeado: "Eu estava um lixo mas ele fazia-me sentir a mulher mais linda da vida." Mas também elogia a atitude dos filhos, que se organizaram para dar um pouco de descanso à mãe (considerada lá em casa como um verdadeiro general), que nunca baixaram as notas, que entraram todos na universidade durante este terramoto que abalou a família, com médias de 19,7, 19,6 e 17 valores. E, claro, os pais, que passaram por aquilo que nenhum pai ou mãe devia passar: o medo, o absoluto pavor de poder ver um filho partir antes de si, essa violentíssima quebra naquilo que é a ordem natural das coisas.
Durante as sete semanas em que fez ao todo 35 sessões de radioterapia e sete de quimio nunca foi à cama. Houve uma pausa de 2 semanas, e foi-lhe administrada uma dose plena de quimio. Nessa noite caiu na cama e durante três dias não conseguiu levantar-se sem auxílio. Os vómitos, as tonturas, a fraqueza. Em três ou quatro dias perdeu cinco quilos. Depois conseguiu estabilizar e após mais duas semanas de pausa foi-lhe administrada a última dose plena de quimio. "Aí o corpo já conseguiu aguentar pois tinha sido previamente medicado para o efeito."
Mas durante as sete semanas de rádio e quimio concomitantes (5 sessões de radio e uma de quimio) chegava a casa e obrigava-se a fazer pão ou um bolo especial. Sempre se arranjou, sempre se pôs bonita, sempre se maquilhou. Manteve sempre o espírito positivo, não com esforço, mas naturalmente. "Sempre que conseguia ia aos Salesianos do Porto, a casa onde lecciono há mais de 23 anos. Para os alunos não me verem careca e tal, ia durante a hora das aulas directamente para a sala dos professores. Levava uns bolinhos ou salgadinhos e conversava um bocado, até para mostrar que talvez o desfecho pudesse ser diferente do de uma colega nossa - e das minhas melhores amigas -, que tinha falecido há pouco tempo com cancro do pâncreas."
O desfecho foi diferente. É claro que um doente de cancro sente sempre a sua finitude mais próxima do que alguém que simplesmente sabe que é finito mas não pensa muito no assunto. Um doente oncológico fala de "sobrevida". Não de vida, propriamente. Cristina teve o seu diagnóstico há 5 anos e meio. Tinha 7% de chances de sobreviver. E ei-la ali, na Leitaria Quinta do Paço, a desfilar beleza e confiança e garra para levar à frente uma petição que criou e que todos deviam assinar.
E então que petição é esta, que já conta com mais de 18 mil assinaturas?
"Uma das coisas que sempre me meteu confusão foi esta coisa de termos alguém a dizer: 'então agora vai voltar ao trabalho'. Eu nunca precisei disso. Ao fim de 9 meses estava a trabalhar, mal senti que tinha condições mínimas. Porque amo o que faço, porque é essencial para a minha sanidade e realização. Comecei a trabalhar pouco antes do mês de Julho, altura em que as aulas já tinham terminado, e achei que podia ir-me ambientando devagarinho, preparando o ano lectivo seguinte. Depois fui de férias e em Setembro, quando as aulas começam, é que eu percebo que aquilo era dose. Quem faz doses maciças de quimio e rádio sabe o estado em que fica a memória, a lentidão com que ficamos a processar as coisas. Durante algum tempo esperei que os efeitos colaterais passassem. Mas não passam. Alguns atenuam, outros não."
Cristina podia dar-se ao luxo de não trabalhar, se quisesse. Com uns cortes aqui e ali, a família havia de sobreviver. Mas... e quem não pode? E quem tem de voltar às 40h semanais, por vezes em trabalhos que não se coadunam com a nova condição do trabalhador, seja porque são muitas horas de pé e há um cansaço que não passa, seja porque é uma actividade que implica movimentos que afectam o corpo que já não é o mesmo?
Num impulso, decidiu então criar uma petição que diz:
"Os tratamentos no combate ao cancro são por norma agressivos e deixam lesões que mais tarde se vêm a declarar, estas variam do tipo de cancro, tratamento e condição física do sujeito. Assim esta petição pede que:
I- Seja concedida a todo o sobrevivente oncológico, que tenha sido submetido a tratamentos de quimioterapia e ou radioterapia, uma redução no tempo de serviço, seja este trabalhador do sector público ou privado, para as 30 horas semanais no máximo, sem qualquer penalização no salário do trabalhador e sem penalização para a entidade empregadora, ficando a cargo do Estado cobrir a parte do salário em causa.
II- Seja concedida a todo o sobrevivente oncológico que tenha sido submetido a tratamentos de quimioterapia e ou radioterapia a possibilidade de se reformar com 30 anos de serviço ou 60 anos de idade no máximo, sem penalização."
Mas não se limitou a criá-la. Procurou nas redes sociais todo o tipo de insitutição, associação, organização, agrupamento, colectividade que tivesse muitas pessoas. E enviou. Para grupos de mães, motards, religiosos, políticos, desportistas, leitores, ranchos folclóricos. Queria chegar ao maior número possível de pessoas para que a petição pudesse ser discutida na Assembleia da República. E conseguiu. No dia 31 de Janeiro, Cristina vai à Assembleia da República, a uma audição na Comissão de Trabalho e Seguranca Social, com a Deputada Sofia Araújo, relatora da Petição, e onde estarão deputados representantes de todos os partidos, explicar a razão que a levou a criar este pedido. Vai lembrar que a lei está desadequada. Que há cada vez mais sobreviventes de cancro (felizmente) e que querem voltar a trabalhar. Que é útil que voltem. Mas que é importante também protegê-los. Porque um doente oncológico deixa de ter uma vida e passa a ter uma sobrevida. E, dependendo evidentemente dos casos, pode ter uma sobrevida muito bem vivida mas também pode ter uma sobrevida com sequelas que não são despiciendas.
Quando lá estiver, na audição, Cristina vai explicar que, entretanto, com o amadurecimento e em reuniões com vários médicos e representantes de doentes, crê que o certo será que a redução do tempo de serviço esteja em linha com a especificidade de cada caso. E vai ainda tentar alertar para o importantíssimo (e tão descurado) papel do cuidador.
Ela tem a porta aberta. Agora é aproveitar para fazer mudanças na casa. E, do que conheci, creio que não podia estar em melhores mãos esta tentativa de fazer justiça por aqueles - tantos (e cada vez mais) - que sobrevivem a um cancro, com tudo o que isso tem de bom, mas de duro também.
Vamos assinar esta petição? Quantos mais... mais força tem.
Deixo ainda a nota da Cristina: "Neste momento todos podemos abraçar esta causa, que é de todos nós, assinando e divulgando a petição, mas também escrevendo o seu testemunho na qualidade de sobrevivente oncológico, podendo assim também ter uma voz ativa neste processo. Bastará escrever o nome, número de cartão de cidadão, idade e profissão. Situação profissional. Tipo de cancro, data de diagnóstico e tratamentos realizados. Efeitos colaterais e sequelas que afetam o seu rendimento e produtividade num dia de trabalho , ou se teve de se reformar antecipadamente. Quais as adequações no posto de trabalho que usufruiu. Não mencionar nome da empresa. Enviar esse testemunho para kikaalves@sapo.pt. Este será enviado para a Comissão de TSS XIII com o autor do testemunho em CC."
ASSINAR A PETIÇÃO AQUI
Diana tem 36 anos e está grávida de seis meses.
Martim, 12 anos, é o seu primeiro filho. Diana sempre quis ser mãe, antes de querer ser outra coisa qualquer. Quando engravidou de Martim, aos 23 anos, foi olhada de lado na vila pequena onde vivia. Não estava casada, ninguém esperava, foi um diz-que-disse. Quando o par se separou, ainda antes de Martim nascer, o falatório cresceu ainda mais. Diana não quis nem saber. A relação tinha chegado ao fim pacificamente e o pai do filho sempre foi - e continua - a ser um pai presente. Nem tudo pode ser sempre como nos contos de fadas. De resto, raramente é.
Os anos foram passando e Diana sempre a sonhar ser mãe novamente. "Nunca quis ter só um filho". Mas sem relações sérias ou estáveis ou importantes, o sonho foi sendo adiado. Porém, a ideia de ser mãe sozinha começou a ganhar cada vez mais terreno. E, no ano passado, ao fazer 36 anos, sentiu que ou era agora ou já não era mais.
Avisou a família que ia ser mãe sozinha. Ninguém se chocou, até porque o tema já não era novo. A mãe, a avó e a irmã apoiaram sempre, mesmo que talvez até tenham pensado que aquilo era estranho. Ou talvez nem sequer tenham pensado isso, a julgar pelo comentário da avó, com 80 anos: "Ó filha, fazes muito bem! Não é preciso cá homens! Se consegues ter um filho assim, melhor!"
A lei da Procriação Medicamente Assistida para todas as mulheres ainda não tinha sido aprovada em Portugal e, por isso, Diana foi a Vigo (Espanha). Em Abril de 2016 teve a primeira consulta. Depois das análises feitas, fez a primeira inseminação artificial no mês seguinte. Não deu certo.
Em Junho, voltou. E no início de Julho fez a segunda inseminação, que acabou por também não resultar.
Entretanto, foi aprovada a lei em Portugal, mas faltava ainda a regulamentação. Diana ficou na dúvida se havia de fazer por cá ou voltar a Espanha mas, pelo sim pelo não, tentou uma consulta no Porto. "Foi completamente diferente. Fui recebida como uma ave rara. Perguntaram o meu estado civil, disse que era solteira. A seguir perguntaram o nome do meu marido. 'Acabei de lhe dizer que sou solteira'. A funcionária ficou baralhada: 'Então e o que ponho aqui no campo do nome do marido?'. Ponha o que quiser. Não tenho marido, logo não tenho um nome para lhe dar."
O médico não foi melhor. Que era preciso repetir todos os exames, todas as análises, como se tudo o que tinha sido feito em Vigo não tivesse valor. Que, de qualquer modo, era preciso esperar pela regulamentação. E que era a primeira vez. E que. E que. E que. "Não! Nunca mais cá volto! Telefonei para Vigo e tive consulta no final de Outubro. No dia 12 de Novembro foi feita a 3ª inseminação." Correu bem. E no final de Novembro, Diana soube que estava grávida.
Para a pequena vila foi um bicho de sete cabeças. Como assim grávida? E o pai? Como assim, não há pai? Como assim, Espanha? Como assim, inseminação artificial? O que é que deu na cabeça da rapariga? Este mundo está do avesso.
Diana encolheu os ombros, indiferente. A vida é sua, as decisões também. O filho Martim estava feliz com a vinda de um bebé, absolutamente tranquilo, sem confusões, feitas muito mais pelas cabeças dos adultos do que pela dos miúdos.
Depois do rastreio bioquímico do primeiro trimestre, fez a ecografia. O médico, com a sensibilidade de um tractor
Ouvi de tudo, mais uma vez. Agora com mais segurança e maior indiferença aos comentários dos outros. A idade também traz coisas boas.
No rastreio bioquímico do 1º trimestre, sozinha no hospital, depois de uma ecografia demorada e silenciosa, chegou o primeiro veredicto. "Probabilidade de 1 para 6 de o bebé ter trissomia 21. Confesso que não foi um choque. O médico que me acompanhava disse para me preparar porque, por vezes, a idade dava aso a resultados elevados que depois acabavam por não se confirmar. E eu fui-me preparando sim, mas para a confirmação em si. Acho que há coisas que se sentem e já tinha falado dessa possibilidade com a família e os amigos mais próximos. E comecei a ler blogs de pais de crianças com trissomia 21 e a trocar mensagens com alguns. O que me diziam era sempre que não era o fim do mundo. Era difícil, claro, mas não o fim do mundo. E diziam-no sempre com leveza, com alegria."
Francisca Prieto tem 4 filhos de carne e osso e um quinto feito de papel, palavras e histórias. O último, este de que aqui se vai falar, fez agora dois anos e chama-se Déjà Lu. É uma livraria solidária, ou seja, 100% das suas receitas revertem para instituições que apoiam crianças com trissomia 21. Mas é também um espaço de uma beleza rara. Uma livraria onde os objectos contam - também eles - as suas histórias. Onde tudo está disposto com um carinho e uma graça que gritam amor por todos os lados. Amor como o que se tem aos filhos, pois então. Esta livraria-filho não é por ser solidária que é pobrezinha, feita de restinhos oferecidos, compostos assim às três pancadas. Não. Este filho feito de papel, palavras e histórias é isso mesmo, um filho, e é por isso que está tão bem cuidado e tão brioso, porque é de amor que se trata.
Tudo começou há 11 anos quando Francisca Prieto, grávida do terceiro filho (uma filha) recebeu um teste pré-natal assustador: a filha tinha trissomia 21. E agora? Como ia ser a sua vida? A vida de todos lá em casa? Mexeu-se para procurar saber e consultou Miguel Palha, no Centro Diferenças. A Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21 (APPT21) também tem lá o seu poiso e, assim, Francisca teve logo contacto directo com o mundo novo em que estava prestes a entrar: "Percebi que o Miguel Palha sabia imenso do assunto e que a APPT21 era de técnicos e não de pais. Passei a ir lá de 15 em 15 dias e, quando a Francisca nasceu, ia todas as semanas para fazer o acompanhamento da minha filha. E foi então que percebi que eles eram amadores a fazerem angariação de fundos. Não fazia sentido uma pessoa como o Miguel Palha andar a perder uma tarde inteira para ganhar 200 euros, ele que devia estar apenas concentrado naquilo que fazia - e faz - tão bem."
Francisca, que tinha trabalhado toda a vida em publicidade e que tem alguma dificuldade em estar quieta, aproveitou os conhecimentos profissionais e a sua network para ajudar. "Durante muitos anos fizemos uma então uma ferocíssima concorrência aos cartões de Natal da UNICEF, com aqueles cartões com desenhos dos miúdos" - conta a rir - "Foi bom porque, sendo persistentes, conseguimos devagarinho entrar no top of mind das empresas quando era altura de fazer donativos."
Por outro lado, ajudou a fundar a Pais 21, no sentido de ajudar pais que, como ela, se viam confrontados com um diagnóstico de trissomia 21 e não sabiam o que fazer. Organizavam-se reuniões, trocavam-se emails, e hoje a Pais 21 já é uma associação jurídica aceite, que vai às maternidades, entrega kits de boas vindas a bebés com cromossomas a mais, faz pressão na mudança da legislação, forma professores, ajuda a mudar mentalidades.
Treze meses depois de ter sido mãe de uma menina-21, Francisca teve a quarta filha, Rita. Tudo de rajada, quatro filhos em seis anos. E o quinto? E o filho feito de poesia e prosa? A história do seu nascimento reza então assim:
Um dia, ao fazer arrumações em casa, pôs centenas de livros de lado. "E lembrei-me de fazer um blogue onde se leiloassem os livros. E comecei a fazer lotes, mas sempre o fazia dava-lhe um nome engraçado ou fazia junções improváveis, ou encontrava uma curiosidade qualquer. Por exemplo, fiz uma vez um lote só com livros de Agatha Christie, e para isso contava uma curiosidade: sabem porque é que ela sabia tanto de venenos? Porque foi voluntária num hospital militar na 1ª guerra mundial e era assim que ela sabia matar tão bem as suas personagens. Outra vez fiz: "Hoje: Gabriel Garcia Marquez contra Isabel Allende. Quem ganhará?"
Foi em 2011. O blogue, chamado Dejà Lu, cresceu. Cresceu tanto que Francisca precisou de ajuda: "Odiava a parte administrativa e uma amiga [Maria Faria de Carvalho] estava desempregada na altura e adorava essa parte. Trabalhávamos no sótão da minha casa e num ano vendemos 500 livros. Criámos uma série de pontos de entrega e começaram a chegar cada vez mais livros. Muitos livros." Francisca e Maria faziam vendas em empresas, aproveitando as horas do almoço, que eram excelentes formas de escoarem stock. Mas entretanto, Maria arranjou trabalho, e o blogue parou. Só que os livros doados continuavam a chegar, numa onda constante.
Um ano depois de o Cidadela de Cascais abrir o Art District, Francisca foi falar com a direcção da pousada. Achava que fazia sentido haver uma boa livraria. "A directora disse que isso não se coadunava com o projecto mas gostou tanto da ideia da livraria solidária que perguntou o que achávamos de ficar com o primeiro andar do restaurante. A primeira conversa foi no final de 2014 e em 2 ou 3 meses montámos a livraria com a ajuda de muita gente. Móveis, sofás, objectos de decoração, tudo oferecido, e as estantes dos livros eram caixas de vinho que nos foram doadas pelos fornecedores da pousada. Sempre tudo feito com um cuidado muito grande de não ter o ar pobrezinho que muitas vezes as pessoas associam a projectos solidários. Queríamos que a livraria tivesse personalidade muito própria e que fosse visualmente uma expressão da personalidade do blogue, que deu origem a tudo."
E foi assim que nasceu o quinto filho de Francisca Prieto, um filho de papel, palavras e histórias. A Déjà Lu funciona apenas com voluntários, que dão o seu tempo a esta causa. Uma pessoa que vem, uma vez por mês, para ficar ao balcão durante o fim-de-semana. Outra que vem 4 horas por semanas só para inserir livros no compurador. Outra que vem apenas à 6ª feira, durante duas horas e meia, para que Francisca e Maria (que como um bom filho a casa tornou) possam ir ao armazém. A paixão dos voluntários é intensa. Há casais de voluntários, há mães e filhos, há irmãos. Já houve voluntários que se casaram e, no casamento, os presentes que ofereceram aos convidados foram livros da Déjà Lu.
A Déjà Lu tem clubes de leitura, promove alguns eventos, organiza lanches e festas: "Ontem tivemos aqui o lanche de uma senhora que fez 80 anos e quis festejar com as amigas aqui na livraria, rodeadas por livros e chás." Também se reune ali o Orange Poets Society, umas senhoras inglesas que organizam sessões de poesia. No Natal, os hóspedes da pousada recebem todos um livro, escrito na língua original de cada um. Enfim. Ideias não faltam, que já se sabe que a mãe do projecto tem alguma dificuldade em sossegar (e ainda bem).
No primeiro ano, esta livraria solidária que grita amor por todas as prateleiras (ou melhor, sussurra, que toda a gente sabe que nas livrarias não se anda para aí aos gritos) conseguiu doar 22 mil euros (20 mil à APPT21 e 2 mil à Pais 21). No segundo ano, o valor doado subiu para os 30 mil euros (27 mil para a APPT21 e 3 mil para a Pais 21).
Neste momento, além da felicidade pelos 30 mil euros doados, Francisca Prieto está a explodir de orgulho porque foi convidada para ir à Feira do Livro de Madrid apresentar a sua livraria tão excepcional.
Para o futuro? "Queremos continuar a fazer acontecer. A fazer deste espaço um lugar bonito, de partilha, não só de livros mas de histórias e de vidas. Queremos continuar a doar dinheiro para ajudar aquelas duas associações a continuarem o seu óptimo trabalho. E agradecemos muito todos os livros que nos doam - eles são sem dúvida muito importantes para que possamos continuar a ter uma oferta rica e interessante - mas queremos convidar todas as pessoas a virem cá conhecer-nos. A virem comprar livros. A levarem um pouco de nós para casa."
Aceitem o convite. A sério. Vão ver que vale a pena a visita.
A Déjà Lu é, claro está, o resultado da vontade de muita gente. Mas, à cabeça, é o fruto da garra, criatividade e dinamismo de Francisca Prieto, uma mulher do caraças.
Livraria Déjà Lu
Fotos de: Raquel Brinca, HUG (excepto estas últimas três, que fui eu, com o iPhone - estão baças e manhosas e não lhe quero estragar a reputação)
Tamara Milagre é alemã, tem 48 anos, e vive há quase 20 em Portugal. Aos 41 anos fez uma mastectomia bilateral. No ano seguinte, removeu também o útero e os ovários. Não, não tinha cancro. Mas tinha uma gigantesca probabilidade de vir a ter, comprovada por exames genéticos. Como descobriu? Foi Sandra, doente terminal com cancro que conheceu por acaso (terá sido por acaso?) que a fez tomar consciência da realidade. Sandra não sobreviveu mas salvou-lhe a vida. Mudou-lhe, aliás, a vida por completo. Mas esta é uma longa história que se conta já a seguir.
Aos vinte e tal anos, Tamara decidiu ir estudar Arquitectura. Era enfermeira e os pais acharam que não estava boa da cabeça. A razão não era assim tão louca. "Trabalhava então nos cuidados intensivos de neurocirurgia. Tinha visto muita coisa terrível: crianças acidentadas e com sequelas permanentes, tumores, pais de crianças pequenas a morrer... Além disso, tinha acumulado muitas horas de trabalho e, quando pedi para usufruir desses dias de férias, queriam dar-me o valor correspondente mas não o tempo de folga. Estava muito sobrecarregada emocionalmente. Precisava de fazer qualquer coisa diferente, que me distraísse. Sempre tinha gostado de desenhar e pensei 'por que não Arquitectura?'"
Começou então a fazer a urgência de noite e a estudar durante o dia. Não queria largar a Enfermagem, até porque era o que lhe permitia pagar o curso. Voltar a depender dos pais estava fora de questão. Na frequência do curso, fez um intercâmbio em Barcelona e, daí, uma excursão até Lisboa. "Quando me vi no autocarro em cima da Ponte 25 de Abril, olhei para um lado e vi o Cristo, o rio, do outro lado o mar, o casario e a luz de Lisboa em frente... olhei para as minhas colegas e disse: 'meninas, eu vou viver aqui!"
E assim foi. Chegou à Alemanha, largou a casa onde estava, vendeu o carro, a mota, tudo, e veio para Portugal. "Foi mesmo amor à primeira vista." Não falava português e, por isso, foi o primeiro assunto de que tratou, ao chegar. Inscreveu-se numa escola de línguas. Pouco tempo depois, ofereceu-se numa clínica de saúde e foi aceite. Paralelamente, prosseguiu os estudos de Arquitectura na Universidade Moderna.
A vida seguiu o seu curso. Conheceu o actual marido, namoraram, casaram em 2000. Nasceram as filhas. A Sara em 2000, a Joana em 2006. Da clínica saltou para o Hospital Dona Estefânia, onde continuou o seu trabalho como enfermeira.
Foi em 2008 que conheceu Sandra. "A Sandra entra na Estefânia grávida de 29 semanas, com 27 anos de idade, e um tumor enorme na mama. Ela já tinha referido a saliência na mama nas consultas mas o médico tinha dito que era da gravidez. Só que não era. Era um cancro e quando nos chegou já tinha muito mau prognóstico porque já tinha muitos gânglios afectados. Foi mastectomizada ainda grávida. E eu só pensava: 'O que é que se passa aqui?'"
Aproximou-se de Sandra, tentou perceber o seu histórico, tentou encontrar respostas para as suas dúvidas, e foi então que percebeu que havia uma história familiar de cancro da mama, umas tias paternas que tinham passado pelo mesmo. "Ora, eu também tinha umas tias paternas com histórico de cancro da mama, também tinha duas filhas pequenas, e fui falar com a geneticista. Queria fazer o exame. E fiz. E o resultado veio positivo para a mutação BRCA1."
Tamara tinha 41 anos e uma espada em cima da cabeça. Não estava doente mas era apenas uma questão de tempo. O que devia fazer? Esperar para ver (e talvez não resistir) ou cortar o mal pela raiz? Decidiu-se pela segunda opção. "Comecei a fazer um levantamento mais incisivo e descobri que muitos familiares tinham tido cancro. Nomeadamente o meu pai que morreu em 2004 de uma embolia, mas hoje estou certa de que o que lhe provocou a embolia foi, na verdade, um cancro na próstata. A minha avó paterna tinha morrido com um cancro nos ovários, duas tias paternas com a mesma doença, uma outra tia com cancro de mama, como também uma prima. Pensei muito, o meu marido foi absolutamente notável, sempre ao meu lado para o que quer que decidisse, e concluí que não queria esperar para ver. Um cancro, quando não é mortal, é uma doença muito dura. A quimioterapia, a radioterapia, todo o processo... não. Eu não queria esperar para ver. Eu não tinha tempo para ter um cancro."
E, assim, Tamara Milagre optou pela mastectomia bilateral. Ou seja, removeu integralmente as duas mamas. Cinco anos antes de Angelina Jolie ter decidido fazer o mesmo. "As mamas são peças que alimentam os filhos e alegram os maridos. São símbolos de feminilidade, sim. Mas entre a feminilidade e a vida, a escolha era clara. Naquele momento, as minhas mamas eram duas bombas-relógio de que tinha de me livrar."
Entre a mastectomia e a histerectomia, Tamara quis ir conhecer pessoas na mesma situação. Queria perceber o que lhe tinha acontecido, que raio de coisa é esta de ter o cancro inscrito nos genes, que tipo de mutantes somos nós. Mas tinha um problema. Não podia ir à Laço nem a outra associação porque não era o público-alvo. Com efeito, Tamara não tinha cancro. Tinha-o fintado mas, para as pessoas que o fintavam, não havia associação. "Marquei então uma consulta de Risco Familiar, no IPO (Instituto Português de Oncologia). Cheguei lá e disse: 'Eu tenho história familiar, tenho a mutação BRCA e já fiz a mastectomia. A médica olhou para mim e perguntou: 'Então o que veio cá fazer?" Não hesitei: vim porque preciso de encontrar pessoas como eu. E até estou a pensar criar uma associação!" Ela deu um pulo! 'Isso é óptimo! Uma excelente ideia! Quer ir a uma conferência nos EUA só sobre este assunto?'"
Tamara não pensou duas vezes. Fez as malas e foi para o congresso nos Estados Unidos. Tinha passado por tudo como uma heroína, sempre a fazer-se de forte, e foi lá que lhe caiu a ficha. "Em plena conferência larguei num pranto. Houve uma senhora que se levantou, abraçou-me, deu-me um beijo na testa e disse: 'Já não estás sozinha.' Foi aí que tive a certeza: ia criar uma associação para que ninguém mais tivesse de se sentir sozinho."
A Evita nasceu em 2011 e tem feito o possível e o impossível para alertar as pessoas para o risco genético do cancro. A primeira iniciativa foi traduzir o primeiro livro que fala sobre mastectomia preventiva, "Topless". Em 2015 organizou um congresso em que vieram representantes de todos os hospitais e institutos especializados em oncologia e investigação em BRCA, e que teve como convidado Steven Narod, um dos maiores investigadores do mundo em cancro da mama.
À Evita chegam todos os dias emails de pessoas preocupadas com o seu risco. Outras, depois de alertadas, descobrem que são portadoras da mutação genética que lhes deixa a espada suspensa em cima da cabeça. Uma coisa é certa: não têm de o viver sozinhas. Há encontros de entreajuda, há partilha de experiências, há abraços e respostas para as perguntas.
Tamara Milagre sabe que tomou a decisão certa de cada vez que consegue que uma pessoa finte o cancro que lhe estava geneticamente destinado. De cada vez que ajuda alguém a passar por uma cirurgia preventiva, com todas as angústias que lhe são inerentes. De cada vez que não deixa alguém sozinho a passar por tantas dúvidas e medos e revoltas. De cada vez que se lembra da promessa que fez a Sandra, de não deixar que as suas filhas passassem pelo mesmo, por pura falta de informação. Tamara Milagre fez o seu próprio milagre: salvou-se e ajuda todos os dias outras pessoas a salvarem-se. Uma mulher de garra. Uma mulher do caraças.
Fotos: Raquel Brinca, HUG
Neste momento, a Evita tem em mãos uma campanha de sensibilização para o cancro da mama no homem. Porque os homens são menos cuidadosos com a sua saúde. Mais fechados, mais embaraçados com as questões do seu corpo. Vale a pena ver a campanha.
Mais informações em http://www.evitacancro.org
A rubrica "Mulheres do Caraças" nasce da quantidade de sugestões de mulheres inspiradoras que me enviaram, quando pedi nomes para a campanha da Activia. Tantas boas histórias não podiam ficar esquecidas no meu email.
Muito obrigada a todos os que enviaram sugestões. Obrigada especialmente à Sónia Fernandes, que me sugeriu a Tamara, gostei tanto de conhecer.