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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mudar de vida #23: Nuno Lanhoso

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Se tivesse de escolher um título para este texto, que resulta da entrevista com Nuno Lanhoso, seria qualquer coisa como: "O homem que não queria deixar fugir o tempo". Ou então apenas "Tempo". Este é um homem com uma muito clara noção da voragem dos dias, com uma lucidez precoce de que o tempo é como um pedaço de terra, que se esboroa entre os nossos dedos, se não o tratarmos como se fosse uma preciosidade. Porque é.

Nuno Lanhoso tem 30 anos, nasceu no Porto, e sempre quis ser médico. Garante que nunca sentiu pressão familiar nesse sentido, apesar de ser filho de médicos, neto de médicos, sobrinho de médicos. Talvez a pressão tenha sido apenas subliminar, ou então foi apenas um movimento lógico, quase óbvio, natural. 

Começou por entrar para Medicina Dentária (as médias para Medicina são o que se sabe) mas preferiu sair e ir estudar espanhol para se candidatar a fazer o curso em Barcelona. E assim foi. Saiu de casa da mãe aos 18 anos, rumo à capital da Catalunha, onde ficou até aos 26 anos. "Foi a melhor experiência da minha vida. Partilhei casa com dois colegas, que se tornaram dos meus melhores amigos, um que conheci na matrícula, o outro no metro. O curso foi extraordinariamente difícil, a coisa mais difícil que já fiz, mas não me entreguei a ele do modo missionário de que se fala. Estudei muito mas também me diverti muito."

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Nuno não estava particularmente feliz nos dois primeiros anos do curso. Muito teóricos, densos, a deixarem pouca margem para fazer mais do que só estudar. Até que descobriu o Bar Mediterrâneo, onde ia ouvir música ao vivo. E, um dia, talvez embalado por uma cerveja a mais, perguntou como podia fazer parte do leque de músicos. Sabia tocar guitarra, aprendeu sozinho aos 14 anos, como tantos, para ficar bem aos olhos (e ouvidos) de uma miúda: "Tinha visto a maneira como a rapariga de quem eu gostava na altura olhou para o meu amigo, que sacou de uma guitarra e começou a tocar, na minha festa de aniversário. Escusado será dizer que nunca mais o convidei. E fui aprender a tocar."

No Bar Mediterrâneo, marcaram-lhe então um teste e ele, no dia marcado, entrou no bar, deu meia volta, e tornou a sair. Tímido, faltou-lhe a coragem que a cerveja lhe tinha dado, dias antes. Ou isso ou talvez ele soubesse, lá no fundo, que entrar por aquela porta significava entrar num caminho sem volta (mas isto, claro, poderão ser floreados literários). Certo é que os responsáveis compreenderam o momento de fraqueza, e deram-lhe uma segunda oportunidade. Nuno tocou e cantou e acabou por ficar como um dos músicos do bar. Tinha 20 anos e estava a estudar para ser médico.

A vida ganhou, então, outro colorido. Os colegas de casa diziam que Nuno estudava nos intervalos da música. Era mais ou menos isso. "Eu estudava ao mesmo tempo que eles, para que, quando eles fizessem uma pausa, eu pudesse tocar e cantar, sem os incomodar. À noite, sempre que possível, ia ao bar. Ou para ouvir ou - melhor ainda - para tocar. E o meu percurso académico até melhorou, porque eu retirava dali um prazer que o curso não me dava."

Quando acabou o curso, aos 26 anos, Nuno foi fazer o ano comum no Algarve. "A minha média de fim de curso não me permitia concorrer ao Porto, e como tínhamos casa no Algarve, achei que era uma boa solução. O meu plano era estudar também alemão, no Algarve, e depois ir para a Alemanha fazer a especialidade em Medicina Estética. Só que a vida tem a mania de se meter nos nossos planos e aconteceram duas coisas: por um lado apaixonei-me pelo estilo de vida algarvio - uma vida com imensa qualidade de vida, praia, natureza, bom tempo; por outro lado, descobri o circuito de bares e hotéis com música ao vivo."

Nuno começou então por tocar nos bares mais duvidosos de Portimão, evoluindo para outros menos dúbios. Acabou a tocar num afamado hotel de 5 estrelas e ganhava mais em duas horas e meia por noite, todas as noites, do que no trabalho no hospital. A páginas tantas, acabou mesmo a ganhar o dobro, por vezes mais. "Sentia que aquilo era estranho. Eu era tão feliz a tocar e a cantar, que quase não parecia justo que me pagassem. Ou seja: eu sempre toquei, em casa, sem que ninguém me pagasse, e continuaria a fazê-lo, de borla. E, de repente, ali estava eu, a fazer aquilo de que gostava e a ganhar mais do que no hospital. E isto é muito revelador daquilo que nos incutem a vida inteira: a mensagem é que temos de trabalhar para ganhar dinheiro para nos divertirmos, se tivermos tempo! Eu estava a fazer as duas coisas em simultâneo (a ganhar dinheiro e a divertir-me) e ainda me sobrava tempo!"

Por essa altura, deu-se outro acontecimento que se juntou ao que parecia ser uma teia do destino para o fazer mudar de vida: "Estava a trabalhar no hospital quando conheci um médico de 30 anos que, de aspecto, estava totalmente acabado. Falámos um bocado sobre a vida dele e o retrato não podia ser mais angustiante: trabalhava 70 horas por semana, ganhava menos do que eu a tocar, e como tinha sido pai há pouco tempo ainda trabalhava ao domingo por fora, para que a soma fosse suficientemente digna. Ao sábado, único dia livre de que dispunha, acabava a dormitar no sofá, extenuado, sem força nem vontade para fazer mais nada. Quando ele acabou de falar, pensei: 'eu não quero isto para mim.'"

Aliás, aquele cenário não era novo. Nuno cresceu a ver a falta de tempo dos pais, ambos médicos. Não será despiciendo, de resto, esse seu contacto próximo com a falta de vagar na construção da sua vida, neste tomar de consciência daquilo que queria para si mas, sobretudo, daquilo que, definitivamente, não queria.

Seja como for, ainda que a vida sacerdotal dos médicos não lhe fosse de todo estranha, foi aquela conversa com aquele cirurgião que espoletou a granada que já estava na sua mão. " Tive a conversa com ele em Maio, despedi-me em Junho.

Na véspera avisou os pais. Ambos fizeram o que haviam feito toda a vida: se é o que queres, é porque deve estar certo. O pai talvez tenha mostrado uma maior renitência. Tanto assim que, em Setembro, foi visitá-lo ao Algarve, aproveitando para o ir ouvir tocar. "O meu pai nunca me tinha ouvido. E quando me reencontrou, no final da noite, disse que percebia. Que o meu olhar se modificava completamente quando estava ali. E mesmo a questão do tempo, da vida que eu tinha. Disse mais: 'no teu lugar fazia o mesmo'."

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Depois de um ano a tocar e a cantar no Algarve, amealhou dinheiro para fazer o mestrado em Medicina Estética, em Barcelona. Ia à universidade de 15 em 15 dias, no primeiro semestre. No segundo semestre ia uma vez por mês. Cansativo, mas exequível. E depois disso trabalhou, no inverno, numa clínica de implantes capilares no Porto: "Nessa altura costumava dizer, meio a sério meio a brincar, que era médico no inverno e músico no verão." Uma espécie de formiga e cigarra.

Uma parte da conversa que teve com o pai, porém, ficou a bailar-lhe na memória. Quanto tempo tencionava tocar covers em bares de hotel? Mais 5 anos? Mais 10? Até à reforma? Foi então que percebeu que estava na hora de dar o próximo passo. Pegou em todos os seus originais (escreve canções desde os 16 anos) e pagou do seu bolso a gravação num estúdio. A seguir, enviou para várias agências e ficou à espera. A maior parte não se dignou sequer a responder, outras disseram apenas que não estavam interessadas.

"Foi duro. Achava que aquilo era bom. Tinha posto de lado a Medicina para me dedicar à música e agora ninguém reconhecia valor àquilo? Não foi fácil e fiquei ali uns dias a bater mal. Mas depois... pensei que tinha duas opções: ou voltava para a Medicina ou tentava outra vez. Porque não saía da minha cabeça esta ideia: se já é um prazer tão grande tocar e cantar músicas que não são minhas para outras pessoas ouvirem, o que será ter uma plateia cheia de gente que está ali especificamente para ouvir o que eu escrevi, o que tenho para dizer? A adrenalina que isso deve ser... até me estou a arrepiar!"

E então sentou-se a escrever de novo. E sentiu que o fazia muito melhor. E usa, até, uma boa analogia, para descrever esta espécie de depuramento: "É assim como uma torneira de uma casa antiga. Quando a abrimos, a água que sai é amarela e não se deve beber. É preciso deixar correr um bom bocado, até aparecer água límpida. Acho que foi isso. Espero um dia olhar para trás e achar que esta água ainda era amarelada. Será bom sinal. Mas, para já, foi considerada suficientemente potável para ser bebida. Ainda não sei se será engarrafada mas... já se bebe. E isso já me deixa muito contente."

Nuno Lanhoso refere-se ao contrato assinado com a agência Sons em Trânsito, em Setembro de 2020, depois de ter enviado a segunda leva de originais, assim como ao single que acaba de lançar há duas semanas. Chama-se "Nem Desgosto de Amor" e é o prelúdio de um álbum que sairá no final do ano. Até lá, está previsto o lançamento de um segundo single. O músico-médico está nas nuvens e nem sabe como reagirá quando escutar a sua canção na rádio. "Até podes ter um acidente. O que vale é que és médico", brinco eu. Ele ri-se. "Preparei-me a vida toda para esse momento."

Para o que não estava preparado era para a avalanche de emoções que estão ligadas ao seu agenciamento e ao lançamento de um single para o mercado. Uma delas foi conhecer um dos seus grandes ídolos nacionais: "Ouvir o Pedro Abrunhosa dizer bem da minha canção foi avassalador." Não deixa de ser curioso que um dos ídolos deste homem que corre atrás do tempo tenha um álbum (o segundo, de 1996) justamente com o título "Tempo". Talvez não haja - mesmo - coincidências.

Esta foi a primeira entrevista do músico, a dar os primeiros passos na vida artística de forma oficial. Aproveito para o tranquilizar: não há-de ser mau prenúncio isto de dar a primeira entrevista a um blogue com o nome "Cocó". Afinal, sempre ouvi dizer que se deseja muita m*rda aos artistas quando se quer que tenham sorte. Por isso, Nuno, só pode ser bom sinal.  

Mudar de vida #22: Vera Galamba

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Sempre a fascinou o jornalismo de causas. Ser a voz dos que não têm voz, falar pelos que não podem, gritar o que não pode ser calado. Ainda durante a licenciatura no ISCSP, em 1999, Vera Galamba trabalhou na imprensa regional (no Notícias de Alverca e no Vida Ribatejana). Depois, saltou para a Agência Financeira da Media Capital e foi editora de Economia do Jornal Metro. Seguiram-se 8 anos como freelancer, onde fez sobretudo cadernos especiais da Controlinveste (DN, JN, 24 Horas) e assistência à produção do programa Sociedade Civil, na altura apresentado por Fernanda Freitas. Com ela viria a trabalhar mais tarde, na sua empresa, Eixo Norte Sul.

Paralelamente - porque na vida as coisas não acontecem todas de forma sequencial, como se fossem estanques - Vera andava a pesquisar formas de salvar animais. A culpa foi de um cartaz do PAN (Partido Pessoas, Animais, Natureza), estrategicamente colocado na 2ª Circular, à entrada de Lisboa, corria o ano de 2014. No cartaz lia-se que mais de 100 mil animais eram eutanasiados por ano, nos canis municipais. "Sempre que vinha na A1 deparava-me com aquela frase e aquilo mexia comigo. Pensava sempre para comigo: tem de haver uma forma de os salvar, tem de haver! Comecei a pesquisar e acabei por descobrir as terapias assistidas por animais, que hoje já é algo que se ouve falar em Portugal, mas em 2014... era completamente novo. Em dezembro desse ano estive de férias nos EUA e marquei uma série de visitas a associações que fazem terapias assistidas. E quando voltei fui fazer uma pós-graduação no ISPA em terapias assistidas por animais."

Este amor pelos bichos não foi um surto súbito, convém que se diga. "Desde pequena que me fazia confusão ver cães e gatos abandonados e o meu sonho, a certa altura, era ter uma quinta onde pudesse albergar todos esses animais. Entretanto, o tempo passou. Sempre quis ter animais e os meus pais nunca me deixaram. Só consegui convencê-los a adoptar a primeira cadela já eu tinha 20 anos. Era a Pantufa. Quatro anos depois veio a Luna, a única sobrevivente de uma ninhada encontrada num contentor do lixo. E dois anos passados, a minha mãe fazia voluntariado numa associação com péssimas condições, que foi fechada, entretanto, e foi ela quem trouxe a Estrela. Lembro-me de a minha mãe dizer ao meu pai que ela vinha só por 15 dias, apenas para fortalecer porque não comia e ia morrer de fome. Ficou connosco até há umas semanas, altura em que morreu. Viveu uma vida feliz, tirando o facto de nunca ter sido aceite pela Pantufa."

Feito este parêntesis, e recuperando o fio da meada, tínhamos então uma Vera com este amor latente pelos bichos, jornalista, e a fazer uma pós-graduação em terapias assistidas por animais por causa de um cartaz do PAN. Depois, vieram várias formações intensivas: uma de intervenções assistidas por animais com uma associação espanhola, um curso de treino. "Desenvolvi dois projectos, todos virados para a reabilitação de animais abandonados. Um tem a ver com o combate à depressão em idosos que vivem sozinhos ou isolados, utilizando animais abandonados. O outro, que tem por base dois projectos que existem nos EUA (Courthouse Dogs e Buddys Behind Bars), visava o apoio a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica e sexual."

Relembre-se que tudo isto acontecia ao mesmo tempo que Vera Galamba seguia com o seu trabalho como jornalista. Quando o projecto com a Fernanda Freitas terminou, a 30 de Janeiro de 2017, Vera tinha uma conferência de 4 dias em Inglaterra (Woof!) e pensou: "Vou à conferência e fico lá a viver. Sempre quis ir para Inglaterra, sempre quis ter uma experiência internacional, não tenho emprego... é agora." Vera tinha o curso do British Council, tinha um certificado internacional de tradutora, tinha a vontade de ir. Juntou tudo e, em Fevereiro, foi. 

Na conferência Woof! conheceu a CEO da Battersea Dogs & Cats Home e houve logo ali uma espécie de empatia. Vera concorreu para uma das vagas, fez entrevista, passou à segunda fase. Acabou por não ficar na posição para a qual se tinha candidatado mas numa abaixo. Simultaneamente, foi a uma entrevista para um serviço de apoio ao cliente, com um salário bem mais elevado, sem trabalho ao fins-de-semana ou aos feriados. Mas o amor pelos bichos falou mais alto. Aceitou a posição na Battersea. Foi para tratadora, o que significava basicamente fazer a limpeza dos canis, tratar da alimentação, da medicação, levar à rua, ajudar nos testes de avaliação dos animais.

A Battersea Dogs & Cats Home é um centro de resgate de animais abandonados, que podem chegar através de 3 vias diferentes: ou entregues directamente pelos donos, que deixam de poder ter os animais por qualquer razão (e a lista de espera é longa), ou através de outras associações, ou através de wardens - pessoas contratadas pelas autarquias para recolherem os animais que andam a vaguear na rua. O que a empresa faz é recuperar esses animais com o objectivo de serem adoptados. Muitos têm comportamentos agressivos ou simplesmente complicados para serem compatíveis com a vida dos humanos. O que se pretende é que não haja devoluções e, sobretudo, que não haja problemas comportamentais que resultem em agressão. E, por isso, há uma série de testes que são feitos aos animais, para perceber o nível de treino que será preciso e o tipo de família de que necessitam, até que sejam considerados aptos para irem viver com uma.

Vera está nas sete quintas. Faz agora 1 ano em Outubro que foi promovida a Coordenadora e compete-lhe avaliar os cães, ajudar a desenvolver o plano de treino específico para cada cão, cada protocolo. O passo seguinte será ser comportamentalista, o que não está assim tão distante dos seus horizontes, uma vez que continua a fazer formação contínua: "Estou neste momento inscrita num curso de comportamento canino, que é um curso de nível 5, o equivalemente a um curso técnico-profissional (o nível 6 seria licenciatura). É um curso bastante intensivo."

Neste momento, uma das coisas que aprendeu foi que, até ter ido para Inglaterra, não sabia nada sobre cães. E mesmo que continue por lá mais uns anos, e mesmo que se mantenha sempre a estudar, vai saber sempre pouco. "Quem teve sempre cães acha que, por essa razão, sabe como lidar com eles. A verdade é que não. Pode-se fazer uma função durante 20 ou 30 anos, mas se ela é mal feita desde o início, e ninguém corrige, nunca chegará a ser bem feita. Hoje olho para trás e vejo que as minhas cadelas, coitadas, bem se exprimiam, eu é que não as entendia. Cada cão é um cão, e ainda que existam traços gerais de raça, a verdade é que depois o indivíduo vai ter outros traços que são seus." Talvez hoje conseguisse que a sua cadela Pantufa tivesse olhado a Estrela com outros olhos. Ou então não. Porque há cães que nunca se dão, do mesmo modo que há pessoas que jamais serão amigas. É a vida a acontecer.

Quanto aos traços gerais de cada raça, Vera esmiúça: "Acho graça às pessoas que querem ter, por exemplo, um Border Collie e depois não compreendem porque é que, sempre que há uma festa com crianças o cão corre atrás delas e pode até mordiscar-lhes os tornozelos. É preciso perceber que o Border Collie é um cão de pastoreio. E o que faz um cão de pastoreio? Reúne as ovelhas. Ou seja, quando as ovelhas começam a dispersar, o Border Collie anda em círculo atrás delas para as concentrar. Ora, se há crianças a correr de um lado para o outro, o cão faz o que está inscrito no seu ADN: reúne as ovelhas (ainda que as ovelhas sejam humanas). Quem diz esta situação com um Border Collie, diz outras. Como aquele Beagle que nos foi entregue porque, quando passeava na rua estava sempre de nariz no chão, a farejar, e não ligava nenhuma à família. É preciso que se diga que a função original do Beagle é ser cão de caça e farejar para encontrar a presa. Por isso, é natural que tenha sempre o nariz colado ao chão quando anda na rua. As pessoas querem que os cães se adaptem a elas, e muitas vezes são incapazes de fazer um esforço para serem elas a adaptar-se à natureza dos cães."

Vera mudou de vida aos 36 anos (agora tem 40). Deixou o jornalismo para se dedicar ao comportamento animal e à recuperação de cães abandonados. Está a desenvolver o projecto The Dogmother Academy e, em breve vai lançar três vídeos gratuitos sobre como escolher o cão ideal. "A ideia é tentar reduzir a taxa de abandono. Fazer com que as pessoas pensem antes de adoptar."

A sua mudança de vida não foi fácil para a mãe: "Para ela foi difícil engolir o facto de ter uma filha, a única filha, a deixar uma profissão como a de jornalista para... limpar canis. Era assim que ela se referia ao meu trabalho: 'andaste a estudar tanto tempo para agora ires limpar canis. Tinhas uma casa tão boa e agora partilhas casa, lá em Inglaterra!' Não é fácil para ela, e eu compreendo. O meu pai acho que se conformou. Mas estou em crer que ninguém entende bem isto."

Porém, é bom que se acostumem. Porque ela tenciona continuar a viver em Inglaterra por mais dois anos, altura em que pode pedir o Settle Status, que lhe permite estar fora do Reino Unido durante 5 anos sem perder o direito a residência. E mesmo quando puder vir para Portugal, o seu sonho maior é ter um canil seu. Pensado de raiz, ecológico, tendo em conta o bem-estar animal. Tem até uma ideia brilhante, de fazer um concurso para estudantes de arquitectura, que pensem num projecto original e sustentável, onde os cães possam viver felizes até encontrarem uma família que os adopte, e no entretanto dar-lhes o treino de que precisam para não criarem problemas às famílias adoptantes.

Em jeito de conclusão, vale a pena voltar ao início deste texto. "Sempre a fascinou ser a voz dos que não têm voz, falar pelos que não podem, gritar o que não pode ser calado." Tem graça porque é exactamente o que faz hoje. Não no jornalismo, mas com os animais. Há pessoas destinadas a cumprir os seus desígnios, de uma forma ou de outra. A Vera é uma dessas pessoas. 

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Mudar de vida #21: Ana Saramago

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Se começasse este texto a dizer que ela é uma gaja do car@lho , estaria tudo certo. Ana Saramago tem 55 anos e tem uma marca em que não há cá pruridos com a linguagem nem tento na língua. Os bois são chamados pelos nomes e o que não presta não é descrito como uma porcaria ou um cocó. É mesmo uma merda, que se o calão existe é para ser usado, e ela nunca foi de meias palavras. Mas já lá vamos, a esta nova vida de vocábulos rudes promovidos a arte. Primeiro, a vida anterior.

Ana nasceu no Crato (Portalegre) mas veio viver com a família para a Amadora com apenas 2 anos. É uma das filhas do meio. Tem duas irmãs mais velhas e uma mais nova, e talvez por isso seja a mais fora da caixa da família. Pelo menos é o que dizem dos irmãos "entalados". Em miúda era atinada e gostava de letras. Aos 18 anos tirou um curso de dactilografia e foi trabalhar para um escritório de contabilidade. Quando chegou a altura de ir para a universidade, tentou entrar para Filosofia mas não conseguiu vaga. Como ficou desocupada durante 1 ano, foi estudar informática. Um curso financiado, em que ia ganhar mais do que ganhava no escritório. "Os nossos professores eram todos do INESC, do Técnico... aprendemos imenso." 

Ana Saramago trabalhou nos CTT, onde operacionalizou toda a transformação dos correios para um sistema informatizado ("foi um privilégio gigante"), e a seguir foi para a PT, onde trabalhou durante 30 anos (em vários departamentos e empresas dependentes da empresa-mãe). 

Se imaginarmos o esterótipo de um informático, Ana não cabe nele. Aliás, não podia estar mais distante da imagem preconcebida de um nerd, todo ele enfiado dentro do seu monitor e pouco dado à vida em geral. Óbvio que um estereótipo não é mais do que isso mesmo, uma imagem ou conceito preconcebido, padronizado e generalizado, mas não deixa de ter graça imaginar aquela mulher com ar de rockeira e muita noite bem vivida, a fazer programação informática durante mais de 30 anos. 

Em 2010, Ana criou a Hardcore Fofo. Estávamos em plena crise e o dinheiro escasseava. Ela, que sempre gostou de manualidades e cresceu a ver a avó e a mãe fazerem colchas e mantas e tapeçarias e macramés, tropeçou nuns esquemas vintage na net e descobriu que havia um movimento de bordados subversivos. Gostou. Pesquisou em sites porno quais as expressões mais usadas e fez uma página no Facebook. O "Fuck me hard" foi um dos primeiros bordados. As amigas mais próximas duvidaram do projecto: "Mas quem é que vai querer isso?, perguntavam. Até a minha filha me dizia: 'O mãe!!!'"

Afinal, a ideia pegou, cresceu, e tornou-se a única fonte de rendimento da sua criadora que, em 2018, saiu da PT para se dedicar em exclusivo aos bordados hardcore... mas fofos. "A PT estava a ficar um embrulhanço e eu estava desanimada, desmotivada, farta. Em 2018 consegui sair com algum dinheiro que deu para limpar a minha vida e recomeçar num trabalho muito diferente. Passei a gerir o meu tempo, o que é uma responsabilidade gigante. Podes ter preguiça mas se não fazes não ganhas. De maneira que tens de ir gerindo, com inteligência, para não seres escravo mas também não ficares nas lonas." 

Nos primeiros tempos trabalhava em casa mas em Julho de 2019 surgiu a possibilidade de alugar uma mesa. Assim mesmo: uma mesa. Um espaço na Rua da Bempostinha, ao Campo Mártires da Pátria (Lisboa), com várias mesas para alugar. Ana não pensou duas vezes. "Estava cansada de estar no meu sofá. Durante os primeiros 7 ou 8 anos tinha feito o Hardcore Fofo num cestinho de fios e bordados. Ter um espaço onde as pessoas pudessem vir levantar as suas encomendas ou ver algumas peças feitas era um upgrade e, além disso, o espaço tinha um carisma muito fixe. E assim fiquei."

Ana quer ir além das camisolas, t-shirts, quadros, leques, cerâmicas. Quer fazer bilhas de Nisa, por exemplo, e não deixar morrer certas tradições, dando-lhes aquele twist ousado que lhes dão toda outra graça. Quando tem muitas encomendas, como no Natal, organiza uma comunidade de hardcore fofas, artesãs que ajudam a bordar os muitos pedidos. No Natal passado foram 22 hardcore fofas a dar aos dedos.

A sua mudança de vida, do departamento informático para os bordados subversivos, foi tudo. "Mudou tudo, até a cor do cabelo. Mudou o meu ânimo. Estou muito mais feliz. Respiro. Tenho o meu tempo. Antes, sentia que trabalhava para os outros ganharem dinheiro. Era um macaquinho, condicionado a comprar, a ter, a pedir empréstimos para casa, carro, uma vidinha à qual ficas presa e da qual ficas escrava. Se pudesse saía do sistema. Sair da PT foi um primeiro passo. Na crise aprende-se a viver com pouco e, com esta mudança de vida, senti de facto uma liberdade que talvez nunca tenha sentido. Oiço a minha música, organizo o meu tempo, e depois divirto-me muito. Se tivesse 1 euro por cada gargalhada que já dei por reacções de pessoas a peças da Hardcore Fofo... estava milionária."

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Mudar de Vida #20: Inês Saldanha e a sua Wind Family

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Há quem lhes chame loucos. Irresponsáveis. Sonhadores. Visionários. Aventureiros. Empreendedores. Destemidos. Corajosos. Inconscientes. Há quem saiba da história e pense "eu nunca". Há quem engula em seco e suspire um "quem me dera". Há quem se sinta inspirado, e quem jamais tivesse a ousadia ou até a vontade. Difícil mesmo é ficar indiferente a esta aventura.

Inês Saldanha, 37 anos e João Pisco, 44, são o casal que decidiu deixar tudo e ir com os 4 filhos (Alice, 10 anos; Manuel, 8 anos; Francisco, 5 anos; Teresa, 2 anos) numa viagem de veleiro pelo mundo fora, sem tempo definido (mas com a estimativa inicial de irem por uns 4 anos, altura em que a Alice terá 14 e os pais não querem privá-la de uma adolescência normal). Partiram hoje. E, com eles, vai o sonho e a vontade de viver uma vida que valha mesmo a pena. Num país de viajantes como o nosso, de marinheiros e descobridores, é curioso que se contem pelos dedos de uma mão as famílias que se fizeram ao mar. Talvez nos tenhamos tornado menos intrépidos, menos bravos, talvez tenhamos passado a pesar e a medir demasiado os prós e os contras e a preferir jogar pelo seguro. A verdade é que decisões como a da Wind Family (como baptizaram o projecto) são relativamente comuns em outros países da Europa, mas aqui não. 

Tudo começou há 17 anos, quando Inês e João ainda nem namoravam. "Estávamos num bar e ele às tantas diz: 'O meu sonho é ter uma família grande, com muitos filhos, ter um barco, e irmos todos a navegar mundo fora.' Aquilo atingiu-me como uma seta. Uau! É isto! É ele! Eu, que queria ter 4 filhos, fiquei logo com uma paixão assolapada que me fez terminar um namoro de 2 anos. Aparentemente fiz bem. Começámos a namorar em 2004, casámos em 2009, temos 4 filhos, e vamos agora realizar o sonho da vida do João, que passou a ser também o meu."

A conversa sobre a viagem ao mundo vinha frequentemente à baila, mas tão distante como quando sonhamos com o Euromilhões. Era um sonho longínquo mas permanecia presente. Inês, assistente social de formação, criou uma empresa de eventos com uma sócia. João, licenciado em Filosofia, foi sempre professor de fotografia (e sempre velejou, desde os 18 anos). Até que, há 7 anos, estavam de férias no Algarve, e Inês, que estava numa fase profissional de grande intensidade ("estava a bombar, com eventos a toda a hora, a achar que era a dona disto tudo, a ganhar bem, a sentir-me a maior") disse, quase irritada com a sua própria falta de iniciativa no que àquele sonho dizia respeito: "Então mas eu faço acontecer tudo e não faço acontecer este projecto? Vamos lá para a frente com isto!" E pronto. Estava dado o pontapé de saída. Ou, para usar terminologia náutica, estava o ferro levantado. "Quando eu meto alguma coisa na cabeça é um problema para ma tirar de lá."

Começaram a juntar dinheiro e a fazer listas: escolas, necessidades, destinos, barcos, procedimentos médicos. "Estou há anos a ver vídeos de como coser feridas, como agir em caso de queimadura, em caso de queda, em caso de qualquer coisa. Neste momento sinto-me uma médica, sinto-me uma enfermeira, sinto-me capaz de tudo! A verdade é que tenho de me sentir segura, mesmo que seja a fingir...", ri-se Inês Saldanha. Os preparativos foram sendo feitos, com altos e baixos, mas cada vez mais certo. De qualque modo, Inês não queria perder de vista a realização do seu próprio sonho, antes de embarcar no sonho do marido: ter 4 filhos. Já tinha a Alice e o Manel. Ainda lhe faltavam dois. 

Quando a poupança começou a ficar com um volume interessante, João começou a ver barcos e, em Maio do ano passado, houve um dia em que declarou: é este. Estava no Panamá e ia buscá-lo. "É um processo demorado e difícil. O João pediu imensa informação, vídeos, pediu para não omitirem nada porque ele ia de longe, e lá foi ao Panamá ver o barco. No dia em que me ligou a dizer para transferir uma parte do valor do barco, fiquei em pânico. Inês Saldanha, o que é que estás a fazer à tua vida? Em vez de estares a dar entrada para algo seguro, que fique, como uma casa, estás a gastar num barco? Estás a comprar um sonho? E se isto corre mal? Mas pronto, é aquele medo de dar um passo gigante, que nos vai realmente mudar a vida toda. Se não tivesse receios era completamente louca. E eu acho que sou louca mas não completamente!"

A escolha do barco teve como factor determinante o facto de ser de aço. "O maior perigo do mar nem é tanto as tempestades, que se tentam evitar, é mesmo o embate contra contentores no fundo do mar, que rasgam um barco ao meio em três tempos, ou o choque com outros barcos maiores. E o João queria um barco em aço, com monocasco e algumas especificações técnicas que não sei elencar." Quando a embarcação chegou, a família foi então fazer a primeira prova de fogo: partiram para o Algarve todos juntos, em Junho, e viveram dois meses no barco. E não podia ter corrido pior. "Foi um pesadelo. Discutimos o tempo todo. A Teresinha tinha um ano e meio e queria saltar para o mar, os rapazes trepavam os mastros, eu estava sempre aos gritos a achar que se iam matar, consciencializei que tinha de estar sempre a lavar loiça e roupa à mão, era tudo apertado, batia com a cabeça, não tinha as minhas coisas na cozinha... foi mesmo muito difícil. Foi uma passagem abrupta do sonho à realidade. No sonho é tudo romântico, idealizado, perfeito. Na vida, não. Há coisas boas mas também há coisas más. Foi isso que precisei de digerir."

Quando chegaram, em Setembro, Inês nem podia ouvir falar do barco e da viagem e do sonho. João percebeu que o melhor era deixar a poeira assentar e não proferiu nem um pio. Inês entrou em processo de reflexão. "Quando tinha 19 anos enfiei-me um ano na Amazónia, num projecto de ajuda Humanitária. Foi o ano mais duro da minha vida mas também o mais extraordinário. Foi um ano de terapia. Aprendi a conhecer-me, arrumei gavetas do passado, a relação com o meu pai, que teve as suas questões, melhorou para sempre... foi mesmo muito importante. E quando tive a crise do barco pensei muito na Amazónia e no que tinha sofrido e chorado lá, mas o quão revelador tinha sido. E concluí que tudo o que é transformador, tudo o que mexe connosco, tem de ser difícil. É preciso é saber lidar com as adversidades e retirar o melhor das coisas. E, no final Outubro, estava pronta para avançar com a fase final do projecto."

Os últimos três meses foram exigentes. Muito exigentes. Imaginem-se a fechar uma vida inteira para recomeçar outra, a bordo de um barco. Imaginem a quantidade de tarefas, de procedimentos a tratar, de coisas que não podem ficar esquecidas. O casal arrendou ambas as suas casas: uma em Lisboa e a casa onde viviam, no Estoril, e é desses rendimentos que contam viver (além das suas poupanças). Foi preciso fechar contas de bancos, vender o carro, fazer despedidas, organizar tudo o que é para levar a bordo. Em conversas com quem já fez o mesmo, franceses, holandeses, Inês ficou a saber que há quem desista nestes três meses finais. É avassalador. "Às vezes perco o fio à meada de tudo o que é preciso, e eu sou muito organizada!"

Uma das questões que faz sempre muita confusão a quem tem filhos é a escola. Talvez seja daquelas a que Inês dá menos relevância: "Matriculei os miúdos numa escola americana, com um excelente ensino off campus, com conselheiras muito disponíveis para ajudar sempre que me deparar com uma matéria mais complicada. Não admitirei que eles cheguem cá com menos de três línguas aprendidas. Vão ler muito, para que o Português seja bem trabalhado, na Matemática vão poder contar com a ajuda do pai. Acho que o que vão aprender sobre o mundo, sobre culturas, sobre tradições, sobre empatia, sobre abertura ao outro é tanto e tão extraordinário que supera todo o currículo escolar, que vão ter na mesma."

A Wind Family saiu de Cascais rumo ao Porto Santo, depois parte para as Canárias, Cabo Verde, Caraíbas, Canal do Panamá e, para Inês, é aí que verdadeiramente começa a viagem: "Quem define a rota é o João, porque ele é que sabe tudo sobre ventos, sobre o barco, sobre marés. Havia sítios onde eu queria ir e ele disse que não, por causa dos ventos. A ideia é ir seguindo a linha do Equador, sem tempo definido para ficar em cada novo destino. Quero viver em Kiribati, por exemplo. Estou com esta na cabeça. Mas posso chegar lá e achar que afinal ficamos só uma semana, assim como posso chegar a um sítio, apaixonar-me pela comunidade, envolver-me na construção de qualquer coisa que estejam a construir, uma casa de banho de uma escola, uma biblioteca, seja o que for. Imagino que isso vá acontecer muitas vezes: pensarmos que em determinado local ficaríamos pouco tempo mas, ou porque os miúdos arranjaram um grupo giro de amigos, ou porque conhecemos um casal de um barco vizinho que é porreiro e com quem bebemos um copo ao final da tarde, irmos estendendo o tempo nesse sítio até nos fazer sentido. Não temos pressa, não temos nada marcado, não temos que chegar a determinado ponto em determinado dia. É tudo ao sabor do que for acontecendo."

Quando os visitei, o barco já tinha todo o recheio essencial: copos, pratos, tachos, talheres, comida, televisões, roupa, medicamentos. Caixas de ferramentas e peças para substituir o que se avariar. Um dessalinizador para converter a água salgada do mar em água potável. Painéis solares para terem energia renovável. E um nervoso miudinho estampado no rosto dos dois, porque o grande dia estava mesmo a aproximar-se: "Claro que tenho momentos de medo. Noites passadas em claro a pensar que podemos morrer todos. Ou um de nós. Pensamentos negros que rapidamente afasto. Percebo que existam, porque sei a dimensão do que vamos fazer. Mas não vou deixar que me tolham, porque estou certa de que isto vai ser absolutamente extraordinário."

Há quem lhes chame loucos. Irresponsáveis. Sonhadores. Visionários. Aventureiros. Empreendedores. Destemidos. Corajosos. Inconscientes. Eles só querem viver a vida em liberdade, sem amarras, ao sabor do vento, ao sabor da vontade. Eu cá chamo-lhes audazes. E como se diz que a sorte protege os audazes, tenho para mim que esta viagem tem tudo para dar certo. Boa viagem, Wind Family!

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Podem acompanhar esta família de navegantes AQUI.

Mudar de Vida #19: Cristina Vidigal

Durante 25 anos foi técnica de informática no Ministério das Finanças. Entrou aos 19 anos e foi ficando. Apanhou a explosão da Internet em Portugal, fez o site das Finanças, foi fazendo uma série de cursos de programação e cresceu na área à medida que a própria área crescia. Pelo meio, parecia ter encontrado finalmente alguém que fazia sentido no seu intrincado puzzle amoroso (um filho aos 18 anos de uma relação adolescente; uma filha aos 34 anos de uma relação que também falhou). O Vítor parecia a tampa da panela, a sua outra metade, todos os clichés costumeiros. Viviam juntos havia 7 anos. Tinham um filho juntos, o Martim. Em princípio, era desta que Cristina Vidigal tinha acertado dando razão ao ditado popular que não há uma sem duas, nem duas sem três, e que à terceira é de vez. 

Mas. Há sempre um "mas" quando a história parece bem encaminhada. Mas um dia veio um diagnóstico e deu cabo de tudo. Do acerto, do cliché, do ditado popular. Da felicidade. De uma família. Aos 41 anos, o Vítor tinha um cancro no intestino e, quando foi detectado, era já tarde demais. "Disseram-me que tinha 3 meses de vida. Ele não sabia. Estava optimista e acreditou até ao fim." Não foram 3 meses. Foram 9. Morreu em 2012, no dia do 4º aniversário do filho de ambos. 

Cristina, que tinha deixado de trabalhar para acompanhar o companheiro, ficou dois anos a tentar organizar-se. Aproveitou uma vaga de rescisões amigáveis e saiu do Ministério. Pensou trabalhar numa loja, qualquer coisa que não a obrigasse a pensar muito, algo que desse apenas para sobreviver e pouco mais, que tinha um luto para fazer, e três filhos para acompanhar. Até que, um dia, uma amiga lhe perguntou se não queria ir fazer um curso para uma companhia aérea. Achou que a outra estava doida. Mas aquela frase ficou ali a pairar. Afinal, a mãe tinha sido piloto. O pai tinha sido instrutor de voo. "Eu própria tinha querido ser piloto. Mas tinha baixa visão e não me foi permitido continuar."  Mas... seria possível, aos 45 anos, fazer uma tamanha inversão na carreira profissional e na vida, em geral? Só experimentando.

Dois dias depois de se ter inscrito, entrou no curso para comissária de bordo. A formação durou 6 semanas e foi uma aventura. À excepção de Cristina e de um colega, todas as outras pessoas tinham 18, 19 anos, por isso foi como se o tempo tivesse recuado e a vida estivesse mesmo a recomeçar. Uma espécie de reset. Nos intervalos, Cristina aproveitava para ir até ao simulador de voo, que era mesmo uma paixão antiga. E foi lá que conheceu o Mário, instrutor de voo. Foram almoçar algumas vezes, apaixonaram-se. E a paixão teve a ignição daquelas coincidências que nem sequer parecem coincidências: Mário tinha sido casado com uma Cristina que morreu de cancro. Cristina Vidigal, por sua vez, tinha também perdido o companheiro para um cancro. Mais: a mãe dele tinha trabalhado nas Finanças, juntamente com os tios de Cristina (vieram a saber mais tarde), pelo que havia várias pontes de contacto entre eles. Uma espécie de destino. Uma espécie de compensação por perdas e danos. Um novo ditado, quem sabe: à quarta é amor que não mais se aparta. 

Quando terminou o curso, Cristina entrou para a White e o Mário também acabou a entrar para a mesma companhia, como piloto. E, assim, começaram a trabalhar juntos. Foi então que começaram a pensar ter filhos. Ele tinha uma filha pequena, ela também já tinha três, mas sentiam ambos o apelo para compor aquele ramalhete novo, nascido de dois ramalhetes desfeitos. Tentaram durante 4 ou 5 meses mas o tempo não estava a favor de um casal com quarenta e muitos. Recorreram à doação de óvulos e à inseminação artificial e conseguiram à primeira tentativa. O Manel nasceu já Cristina tinha 50 anos. Hoje, ela tem 51, o Manel tem 1 ano, o Martim tem 11, a Maria 17 e o Tiago 33. Cristina é uma mãe recente e uma avó recente, também. Do João, com 5 meses. Uma vida que são várias vidas. Pessoal, profissional e emocionalmente. Muitas vidas dentro da mesma vida. Porque nunca é tarde para nos reiventarmos. Porque nunca é tarde para se (voltar a) ser feliz.

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Mudar de Vida #18: Bárbara Alves da Costa

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Foto: Paulo Miguel Martins 

 

Não seria estranho se a víssemos chegar montada num cavalo bravo, sem sela ou arreios, domando o bicho apenas com a força da sua natureza. Vendo-a ali, no campo, a conversar com a dona Gertrudes, a caminhar pelas ervas altas, apontando para os limites do terreno, fica difícil acreditar que nasceu em Lisboa, que foi jornalista, que teve outra vida antes desta, que lhe parece colada ao corpo, à alma, à existência inteira. 

Bárbara Alves da Costa tem 44 anos e é a prova de que todos podemos ser muitas coisas, muito mais do que uma só. Ela é cidade e informação e festas e amigos e viagens, mas também é campo e silêncio e contemplação e sossego. Talvez seja uma mistura de mãe, pai e avó. A mãe, nascida e criada na Avenida de Roma, sonhava com a vida no campo. O pai, nascido e criado no Areeiro, era urbano e "alucinado", baterista da banda "Jets", jornalista de investigação. A avó Corina (mãe do pai) era toda fantasia, amor e viagens pelo mundo inteiro. Lia histórias sentada no chão, acreditava que o mundo era mágico e garantia aos netos que tudo era possível, bastava acreditar. Acreditar e dar: "Quanto mais dás, mais recebes", era um dos seus lemas.

É neste caldo que Bárbara cresce, entre a realidade e a imaginação, entre Lisboa, Cascais e o mundo. Talvez por influência do pai (cresceu a vê-lo investigar temas como a droga ou a prostituição), estuda Comunicação e Marketing no ISCEM e, em 1995, vai para Nova Iorque fazer um ano (Marymount Manhattan College). Chegou em Setembro e em Dezembro levou o seu currículo à MTV da Broadway. Em Janeiro começava um estágio na MTV Latino News. "Se acreditares, tudo é possível", dizia-lhe a avó desde sempre. E mesmo longe, com um oceano entre elas, Bárbara conseguia ouvir aquela frase, tantas vezes repetida, como um mantra. Foi assim que, sem pensar duas vezes, foi entregar o currículo à ABC mal terminou o estágio na MTV. E, como se fosse uma das magias de que a avó lhe falava, começou a trabalhar no Good Morning America. 

Foi um ano do caraças. Não há adjectivo melhor. Foi do caraças mesmo. "Fui com três amigas da universidade e vivemos um ano em Nova Iorque. Dá para imaginar?" No final do ano, Bárbara recebeu uma proposta para ficar a trabalhar na MTV e não aceitou: "Sou Caranguejo e a família e os amigos são muito importantes. Não quis ficar. Voltei para Lisboa, terminei o ISCEM, fiz o Cenjor. Estagiei na LUSA, no Público e na TVI. Entretanto, uma das minhas melhores amigas manda o meu currículo para o CNL (Canal de Notícias de Lisboa) e eu vou abrir o CNL e fico lá até ao fim. Nessa altura, éramos um grupo de amigos todos a viver no mesmo prédio, em Xabregas. Foi épico. Quando aquilo acaba, o Nuno Santos vai-me lá buscar para o arranque da SIC Notícias."

Namorou com um jornalista da SIC e, depois de 3 anos a viverem juntos, casaram durante uma reportagem em Las Vegas. Estavam juntos havia 5 anos quando nasceu a Maria do Mar. Separaram-se pouco depois. Ficaram amigos mas a convivência já não era possível. Esteve três anos sozinha, viveu com a irmã, não quis envolvimentos apressados para colmatar algum vazio, até porque, com ela, há poucas hipóteses de nascer qualquer vazio. Entretanto, reencontrou um ex-namorado (de quando tinha 17 anos). O Pedro. Ele com um filho de três anos, ela com uma filha de três anos (tinham apenas 1 mês de diferença). "Durante um tempo íamos a casa um do outro sem que os miúdos nos vissem. Aproveitávamos quando eles já estavam a dormir. Não queríamos precipitar nada. Quando decidimos viver juntos foi o caos. Fomos para casa dele, que tinha dois quartos. Os miúdos começaram a dar-se como cão e gato. Dividiam o quarto como se fossem territórios inimigos. "Não passas em cima do tapete porque este lado é meu!" Foi um início muito duro. Quis acabar com aquilo, sugeri que vivesse cada um na sua casa mas o Pedro protestou. Dizia que isso não era uma família. Lutámos imenso para que os miúdos ultrapassassem o facto de terem deixado de ser filhos únicos. Estamos juntos há 10 anos mas os primeiros 4 foram mesmo uma prova de fogo. Quando íamos de férias todos juntos era um tormento. Só pensava: porquê?? Porque é que insistimos nisto? Depois íamos de férias os dois, para compensar."

Há 8 anos, Bárbara e Pedro compraram um monte no Alentejo. Tinha uma casa e umas ruínas e a ideia era terem ali um refúgio para os fins-de-semana e as férias. Sempre que iam para lá, a filha de Bárbara e o filho de Pedro davam-se bem. Havia espaço, muito espaço, e a liberdade tinha em ambos um efeito apaziguador. Era o lugar onde tudo corria bem, a uma hora e picos de Lisboa. Entretanto, Bárbara engravidou da Alice. Nesse ano, a sogra tinha um cancro, o sogro morreu com um cancro. A vida tornou-se mais triste e pesada, com tanta doença. Bárbara entrava todos os dias na SIC, em Carnaxide, às 8.30 da manhã. Saía cedíssimo de Cascais e levava a miúda ao colégio no Restelo. Não gostava de ser aquela mãe, o tipo de mãe que passa o dia inteiro longe da família. E estava grávida. Na SIC era feliz, claro, felicíssima a fazer reportagem. Mas sentiu que tinha de escolher. Um dia, ligou ao Pedro e disse: lhe: "Vou-me despedir." Ele, que a conhece de ginjeira e sabe que ela era mulher para isso, perguntou: "Hoje?" Ela gargalhou. "Hoje não. Mas prepara-te. Vamos fazer um Turismo Rural no monte. Vamos largar tudo e vamos viver para lá."

BAC.jpgFotos: Rita Ferro Alvim

 

Pedro, arquitecto de formação, começou a fazer contas sem ela saber. Um plano com pés e cabeça. Três meses depois do  telefonema em que ela o avisou de que se iria despedir, Bárbara pediu a demissão. Era Dezembro. Ainda tentaram candidatar-se aos fundos da União Europeia mas já era tarde. Então, meteram-se numa formação de jovens agricultores para se poderem candidatar ao processo todo. Ela grávida de 8 meses, a subir e a descer de tractores. Entretanto, houve uma reabertura do fundo ao qual se tinham tentado candidatar. "Tinham sobrado uns dinheiros e tínhamos um mês para apresentar uma candidatura detalhada. Era preciso descrever tudo ao mais ínfimo detalhe: uma memória descritiva desde que o cliente entrasse até que saísse. Um dossier com três produtos para cada item de cada assoalhada. Ou seja: tínhamos de apresentar 3 orçamentos para candeeiros, 3 orçamentos para camas, para sofás, para mesas de cabeceira, três orçamentos para tudo! Tivemos uma conversa com os miúdos em que lhes explicámos que eles iam ter de se orientar muito sozinhos naquele mês. E falei com as minhas melhores amigas para nos ajudarem. Entregámos o dossier no último dia, nos CTT de Cabo Ruivo, que eram os correios que fechavam mais tarde. Dois meses depois recebemos uma carta a dizer que o projecto estava aprovado."

E agora? A palavra aprovado trouxe consigo o susto. Quase como se só perante a palavra "aprovado" tivesse acordado os dois sonhadores para o passo que estavam efectivamente a dar. As escolas. A filha dela num colégio, o filho dele noutro. E o resto? O mobiliário para o turismo, as obras, tudo. "Fui às arrecadações da minha mãe e das avós, minhas e do Pedro. Comprámos camas, algumas cadeiras, lençóis, toalhas, essas coisas de hotelaria, alguns candeeiros. Tudo o resto é das avós e bisavós. Ligámos para os amigos para nos ajudarem a montar tudo. Estivemos a trabalhar de manhã à noite sem electricidade, sem água quente. A Terra do Sempre existe com os amigos. Fizemos sempre tudo com os nossos melhores amigos."

Em Junho abriu com um quarto. Depois foi abrindo mais outro. E outro. Em Outubro

 

Mudar de Vida #17: Raquel Ruiva

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"Senhoras e senhores... a miss Portugal é..." E Raquel Ruiva sonhava - acordada - que recebia, com os olhos a tremer de emoção, a coroa, o manto e o ceptro que lhe confirmavam a beleza. Sempre que a RTP emitia mais uma edição do concurso que elegia a mulher mais bela do país, Raquel não descolava o olhar e a atenção do ecrã e suspirava pelo dia em que seria ela a escolhida. 

Os anos foram passando e as ideias de viver da beleza foram ficando guardadas no baú das memórias que se contam aos filhos e netos e em entrevistas como a que deu origem a este texto. Raquel era boa aluna e decidiu seguir Gestão. Entrou no ISEG com média de 17,8 e a sua praxe foi andar com o notabilíssimo número escrito na testa. A maior parte dos colegas tinha dificuldade em entender que aquela rapariga, que tinha média para entrar na Universidade Nova (sempre tão desejada), tivesse optado pelo ISEG por questões ideológicas: "Como muitos jovens tinha ideologias mais à esquerda e por isso meti na cabeça que a Nova não era para mim. E como sou de vestir a camisola, passei a sentir que o ISEG era a minha casa e defendia-a com unhas e dentes. O meu desporto preferido da altura era picar-me com pessoas da Nova."

Depois do curso de Gestão, especializou-se em Marketing porque sempre se sentiu mais comercial do que financeira. E em 2002 entrou para a Deloitte, onde ficou 8 anos. Em 2008 foi para Angola, pela Deloitte: "Gostei muito de estar na Deloitte. Não se tem vida, é verdade, mas eu sabia que se temos de dar à perna é nesta fase da vida. Sempre tive essa consciência. E a Deloitte é uma daquelas empresas em que até podemos começar por não ganhar muito mas se fizermos a nossa parte podemos ter a devida compensação."

Em 2009, Raquel recebeu um aliciante convite para ser Directora Financeira da Toyota em Angola. E foi também nesse ano que conheceu o Afonso, que viria a ser o seu marido, e que era administrador de uma empresa também em Angola. Foram dois anos e meio de pura loucura. "Éramos como dois putos a fazer Erasmus, mas com dinheiro. Ganhávamos muito bem, divertíamo-nos muito, tínhamos muitos amigos. Era uma vida de sonho. Tínhamos uma casa com duas empregadas. Era um luxo."

Em 2012 vieram para Portugal porque já não aguentavam as saudades de casa. Queriam ter filhos e sentiam que só fazia sentido constituir família por cá. A diversão tinha sido boa mas agora era tempo de falar a sério. De assentar. "Quando voltámos eu não tinha emprego. As pessoas achavam que éramos malucos por voltarmos para um país em crise, logo nós que estávamos tão bem. Mas ainda bem que o fizemos. Foi na altura certa. Muitos amigos não vieram nessa altura e depois já não conseguiram fazer a transição. Além disso, antes de voltarmos, fizemos um plano a 5 anos prevendo os piores cenários. Até os filhos que ainda não tínhamos estavam naquela folha de Excel!"

Depois de regressar e responder a alguns anúncios, ela arranjou emprego como responsável financeira de uma pequena empresa de restauração mas entretanto engravidou e o ambiente tornou-se tóxico: "Os sócios contradiziam-se e ir trabalhar num ambiente de guerra era tudo o que eu não queria, ainda para mais grávida. Deixei de trabalhar e dediquei-me a ser grávida. Depois, o Vicente nasceu e dediquei-me a ser mãe."

Entretanto, juntou-se com um grupo de amigas que tinham o ideal de se juntarem a trabalhar em projectos em part-time ao mesmo tempo que tinham os filhos consigo. Era uma espécie de cooperativa de mães. Elas trabalhavam e as crianças estavam por ali, a brincar, a dormir a sesta, todos juntos. Uma dessas mulheres estava ligada à alimentação e nutrição, até escreveu um livro sobre a alimentação paleo e todas se surpreendiam com as caixas que a Raquel tinha para guardar os alimentos. Façamos então uma paragem aqui, para introduzir outro tema.

Raquel Ruiva sempre viveu rodeada pela Tupperware. A mãe quando se viu desempregada começou a vender cremes, primeiro, Bimbys depois, e por fim Tupperware. Passado um mês, a mãe era chefe de grupo e passado um ano era coordenadora. Em casa da mãe sempre houve Tupperware, nunca fakeware. "O meu irmão vivia em Inglaterra e, quando veio com a minha cunhada para cá, sem emprego, ela ficou a trabalhar com a minha mãe e o meu irmão posteriormente também se juntou, apesar de ser financeiro de uma empresa. Por isso, sim, a Tupperware sempre fez parte da minha vida. Mas nunca profissionalmente." Até ao dia.

Foi quando as amigas lhe perguntavam que caixa era aquela ou onde é que tinha comprado aquela caixa tão boa que Raquel pensou "e se?" E de tanto pensar "e se?" avançou mesmo e criou a Caixa Mágica, no Facebook, para vender Tupperware. E a partir desse dia, vestiu a camisola, tal como quando se picava com os alunos da Nova, para defender o "seu" ISEG. Algumas pessoas próximas e até amigas ficaram chocadas. Primeiro acharam que era uma situação temporária, uma espécie de gracinha, de part-time. Mas quando perceberam que Raquel estava empenhada e que a sua vida nova era realmente esta afastaram-se. "Há um certo preconceito. Eu era financeira, fui quadro de grandes empresas, e em vez de retomar esse caminho (e tinha convites), optei por tornar-me vendedora de Tupperware. Foi como se, para alguns, me tivesse tornado noutra pessoa. Mas não. Eu sou a mesma. E gosto realmente disto. Porque não é só vender. Há marketing, há todo o trabalho de formação da minha equipa, há o contacto com os clientes."

Raquel começou por ser vendedora mas depressa se tornou chefe de grupo e agora é team leader. Faz gestão dos grupos e dá formação contínua. Neste momento tem mais de 90 pessoas a quem dá formação:  "Estes são artigos de qualidade superior que requerem explicação porque uns têm uma especificidade, outros têm outra. Uns são para guardar alimentos cozinhados, outros são para guardar alimentos crus. E podem revolucionar a forma de armazenar alimentos, podem ajudar a que durem incomparavelmente mais, preservando as suas propriedades. E é preciso adequar a formação ao tipo de pessoa que recruto para o vender."

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O brilho do seu olhar, enquanto fala da Tupperware, é indesmentível. Por muito que por vezes seja estranho dizer que é vendedora da Tupperware quando lhe perguntam a profissão durante um jantar, por muito que não seja propriamente o que sonhou escrever no item "Profissão" nos boletins de matrícula da escola dos filhos, por mais que ainda perdurem olhares de "mas-como-é-que-esta-mulher-se-meteu-nisto", Raquel gosta genuinamente do que faz. "E tenho tempo para mim, para os meus filhos, não tenho de sair às tantas e sacrificar todos ou quase todos os momentos em família por conta de uma carreira numa empresa de topo." Além disso, é bem paga. "Sim, estou neste momento a ganhar o mesmo que ganharia na área financeira", acrescenta. O que, pensando bem, não é despiciendo para se acrescentar. Raquel termina a frase dizendo: "Não trocava a Tupperware, não. Nem pensar."

Em 2018 conquistou um patamar importante nesta nova carreira. "Fui a rainha-chefe de 2018, ou seja, significa que fui a primeira do país no que diz respeito ao recrutamento de novos vendedores, à retenção de vendedores e ao crescimento." E sabem o que implicou ser a rainha-chefe de 2018? Ser chamada ao palco, numa cerimónia com pompa e circunstância, e receber uma coroa, um manto e um ceptro. Lembram-se do primeiro parágrafo? Pois bem. Raquel conseguiu até cumprir aquele sonho infantil. Não foi Miss Portugal. Mas foi a rainha da Tupperware. Dito assim pode dar vontade de rir ("o meu marido gozou um bocadinho") mas dentro do contexto foi realmente um momento que fez sentido. E que pode repetir-se por vários anos, que ela nunca achará demais. Afinal, quem não gosta de ser premiado pelo seu bom trabalho? Ainda para mais quando esse trabalho representa uma nova escolha, um novo caminho, uma nova vida.

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Mudar de Vida #16: Ricardo Teixeira

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Andar de mota e fazer surf eram as únicas coisas que queria da vida. Tinha 17 anos e os dias corriam leves e felizes. Para Ricardo Teixeira a praia só fazia sentido se fosse para aquele confronto com o mar, aquela dança solitária que o fazia sentir-se livre, temerário, vivo. Nunca o viam deitado na toalha ou em convívio com os amigos. Praia era surf, ponto final parágrafo. Para lá chegar, claro, ia de mota. E não devia andar devagar porque todos vaticinavam que ainda ia morrer num acidente. Ricardo ria-se, não ligava. Queria adrenalina, queria desafiar-se, tinha 17 anos e aos 17 anos não se pensa cá em morte.

Um dia, quando ia experimentar uma prancha nova, encontrou os amigos das motas e decidiram ir todos juntos para a praia. Na brincadeira, um atirou-lhe areia. Ele foi a correr atrás. O outro atirou-se à água. Ele seguiu-o. Estava longe de imaginar o que aconteceria depois. "Dei o chamado 'golpe de coelho' na cervical. Senti logo que tinha sido grave. Não deixa de ser irónico. Sempre tive medo de mergulhos porque o meu pai tinha-me contado, uns dez anos antes, que um amigo tinha dado um mergulho que tinha corrido mal. Fiquei de tal modo impressionado com aquilo que deixei de andar na ginástica onde já fazia mortais e piruetas. Ganhei medo. E depois - ironia das ironias - num mergulho absolutamente banal para o mar, aconteceu aquilo."

Aquilo foi uma tetraplagia. Ricardo recebeu a notícia da pior forma possível. "Estava no hospital e apareceu uma psicóloga que me acordou a dizer que precisava de falar comigo. Depois perguntou-me se os meus pais tinham possibilidades financeiras. Quando quis saber porquê respondeu: 'Porque o Ricardo nunca mais vai andar e vai precisar de uma cadeira eléctrica porque nem força nos braços vai ter para fazer a cadeira andar.' Foi uma forma simpática de dar a notícia a alguém que tinha 17 anos e só pensava em motas, surf e skate."

Mas Ricardo é feito de uma fibra diferente. Talvez seja da fibra das pranchas, que resistem à violência da ondulação. E nunca precisou de cadeira eléctrica. Durante estes 20 anos (que já passaram desde o acidente) andou sempre de cadeira manual. Só há três anos passou para a cadeira eléctrica porque comprou uma carrinha adaptada onde a cadeira entra (e serve de lugar para o condutor) e sai, tornando-o completamente autónomo. Mas voltemos atrás, para continuar a demonstrar por que razão a fibra deste homem é especial.

Desde os 13 anos que Ricardo tinha uma skate/surf shop em Alverca. Bom, não era propriamente uma loja, que nem seria legalmente possível por se tratar de um menor, mas era um canto na loja da mãe que ele geria, sozinho. Os pais não interferiam e ele fazia negócio. Ia fazer compras a grandes marcas sozinho e levava o cheque assinado pelos pais que tinham nele toda a confiança. Não se enganaram. Sempre soube fazer dinheiro do dinheiro, como no milagre da multiplicação (só que nunca foi milagre, mas sim jeito para o negócio e muito trabalho).

Depois do acidente, largou a loja e dedicou-se à compra e venda de acções. Não sabia nada sobre a Bolsa ou sobre mercados mas rapidamente aprendeu e garante que ganhou muito dinheiro. Quando apareceu a internet, meteu-se por aí com a facilidade com que sempre se meteu em tudo. Começou a desenvolver páginas para empresas (na altura os sites chamavam-se assim) e voltou a ter sucesso. "Aos 20 anos tinha a minha casa e vivia sozinho. O acidente não me impediu de nada. Era na minha casa que desenvolvia os sites."

Fez o 12º ano e entrou no ISCTE. Mas, ao mesmo tempo, foi a uma entrevista na Microsoft e ficou logo lá a dar assistência técnica a clientes. Como tinha um emprego durante o dia na Microsoft e tinha a sua empresa a carborar nas horas que sobravam, não chegou a ir para a faculdade. Na Microsoft fez um projecto sobre novas formas de teletrabalho, que deu nas vistas: New ways of Working. O Bill Gates teve conhecimento do projecto e ganhou um prémio a nível europeu e vários prémios nos Estados Unidos. 

Passado um ano, despediu-se da Microsoft, arranjou um escritório em Lisboa e chegou a ter 15 funcionários a trabalharem consigo, na construção de sites. Foi abrindo várias empresas dentro do mesmo ramo, vendeu uma delas ficando accionista e, em 2010, achou que as agências de publicidade precisavam de um grande apoio a nível digital e criou uma produtora chamada Digital Works (que abriu também um polo no Reino Unido).

Em 2007 Ricardo abriu também a Jump Master, uma empresa de investimentos imobiliários. "Aproveitei a crise e comprei apartamentos, prédios, escritórios. Uns vendia, outros ficavam." Continua a ter essa empresa e no ano passado vendeu a Digital Works (que teve durante 7 anos). "Estava farto de estar na mesma área. Vendi e pensei: e agora? Não quero ficar a viver dos rendimentos... Fui ler o meu ficheiro das ideias. Tenho um sócio noutra empresa de investimentos imobiliários e fomos almoçar. Considero-o como um filho mais velho. Estávamos a bater bolas e, às tantas, contei-lhe a minha ideia. Ele deu um pulo na cadeira: 'Vamos avançar! Sou teu sócio nessa!'"

A ideia era totalmente diferente de tudo o que já tinha feito: uma casa de... frangos assados. Mas uma casa de frangos diferente: bonita, moderna, com pinta. E com preocupações ambientais. Onde se pudesse comer mas que também tivesse serviço de entregas. Era preciso reinventar o mercado. Ricardo pôs-se em campo. Montou o Business Case e percebeu que podia ser rentável. "Fiz um documento extensíssimo. Queria acabar com os plásticos e com os alumínios... Não queria ter carvão, que é nocivo para a saúde. Era preciso reinventar as caixas, era preciso reinventar as grelhas. Comecei a definir que só me metia nisto se conseguisse dar a volta a tudo o que me parecia desactualizado e mau neste segmento. Fui ter com vários chefs para saber como ter um frango bom sem carvão e sem fumo, como ter bons molhos, e o Joe Best disse que queria entrar no projecto e ficou como consultor."

E assim nasceu o Bairrista. A 9 de Agosto do ano passado, porque acharam que ia estar pouca gente e que, assim, podiam ir-se preparando para maior fluxo de clientes. Nesse dia tiveram a visita de mais de cem pessoas e, no segundo dia, receberam duzentas. 

O que distingue o Bairrista das outras casas de frango? Bom, tudo. Para começar, o espaço é tão acolhedor que apetece comer lá dentro e, como não há fumos, não se corre o risco de sair de lá com... um perfume novo. A segunda diferença é mesmo essa, o facto de não haver fumo. "Conseguimo-lo com grelhadores ao contrário. Ou seja: em vez de estarem em baixo, com carvão e brasas, estão em cima. Em baixo temos água. Assim não há fumo e muito menos carvão, que só nos faz mal." Quanto aos frangos, são criteriosamente escolhidos. "Nunca tive um frango congelado. Recebemos frangos todos os dias frescos. São abatidos 24 horas antes." As batatas fritas também são diferentes. São fritas em gordura vegetal e, para ficarem secas e não ensopadas em gordura, passam por um secador mal acabam de fazer. Depois, a outra grande diferença tem a ver com o ambiente. Todas as caixas são em papel. Tão giras que as pessoas têm pena de as deitar fora.

Ricardo é casado e tem um filho que vai fazer 5 anos. Ao filho tem muito para ensinar, não apenas a mexer-se no mundo dos negócios, como também a viver a vida sem se deixar vencer pelas adversidades. Quando conversamos com o Ricardo rapidamente esquecemos que está sentado numa cadeira diferente da nossa. E quando estamos de pé ao lado dele nem nos lembramos que ele segue o caminho num plano mais abaixo. É como se estivesse exactamente ao mesmo nível do olhar. Porque ele é muito mais do que aquele mergulho e do que o mergulho lhe fez. Porque ele é tão grande como o tamanho dos seus sonhos. E se este homem sonha!

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*Mudar de Vida é uma rubrica que nasceu aqui no blogue em 2016 e que pretende contar histórias de pessoas que deram um rumo completamente diferente à sua vida profissional, com tudo o que isso implica em termos pessoais

Mudar de Vida #16: Sara Sousa Ferreira

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A culpa foi de um texto do livro de leitura, da Primária. Sara tinha 6 ou 7 anos quando deu com a história "O Tio Elói é Arquitecto". Quando chegou a casa disse, determinada, que já sabia o que ia ser quando crescesse: arquitecta. E assim ficou decidido. Bom, talvez a culpa não tenha sido do texto. Na verdade, talvez aquela história lhe tenha feito sentido porque a vocação para a área já lá estava. Porque o que é certo é que a vontade de seguir Arquitectura, ao invés de decrescer com a passagem do tempo, aumentou. E aumentou tanto que, no 9º ano, deixou a escola que ficava em frente à sua casa, na Póvoa de Santo Adrião, para ir para a António Arroio, o que a obrigava a levantar-se às 6h da manhã e a apanhar três transportes: camioneta da Póvoa até Entrecampos. Metro até ao Campo Pequeno. Autocarro até às Olaias. Nunca faltou às aulas, nunca desistiu do sonho. Quando chegou a altura de se candidatar à universidade, a decisão estava mais que tomada. Entrou para Arquitectura de Interiores, na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, mas não quis. Então, entrou na Lusíada. Durante o percurso, um dos professores disse-lhe: "Se queres mesmo seguir isto tens de sair de Portugal". Ela achou que talvez fosse exagero. Não sabia ainda o que a vida lhe reservava. 

Começou a trabalhar ainda durante a faculdade, num atelier. Era para ter ido fazer um mestrado em Barcelona mas o fim de uma relação de 8 anos deixou-a sem forças para mudar de país e, por isso, ficou por cá. Trabalhou durante 11 anos consecutivos na sua área. Gostava do que fazia, apesar de trabalhar 16 horas por dia, por vezes mais. Continuava apaixonada pela Arquitectura, apesar de nunca ter tido um contrato: "Durante os 11 anos, estive sempre a recibos verdes. Falsos recibos verdes porque trabalhava como se fosse efectiva nas empresas. Anos a fio a recibos verdes. Sempre sem qualquer segurança contratual." 

Entretanto, chegou a crise da construção. Foi terrível. Os projectos pararam, as obras congelaram, o desemprego na área disparou. Calhou-lhe a si. Ficou desempregada. E foi nessa altura que recebeu uma proposta que a deixou de cara à banda. Uma empresa de recursos humanos contactou-a para que fosse gerente de uma loja de 800m2 de uma conhecida marca de retalho. Explicou que não era a sua área, que não tinha experiência, que nada sabia sobre o assunto. Insistiram, que queriam alguém que soubesse resolver conflitos, que pensasse fora da caixa, que justamente não estivesse dentro do ramo para o pensar de fora para dentro. E Sara pensou: por que não? Decidiu arriscar. E foi então que teve o primeiro contrato da sua vida. Sim, foi preciso sair da Arquitectura, com que sonhava desde os 6 ou 7 anos, foi preciso abandonar a área para a qual tinha estudado, para assinar um contrato de trabalho. 

Um ano depois, nova crise, tentaram emprateleirá-la, fizeram pressão psicológica. Ao mesmo tempo, teve um problema pessoal sério. Foi-se abaixo. Meteu baixa psiquiátrica, meteu os proprietários da empresa em tribunal, resolveu os assuntos, arrumou gavetas. Curou a alma. Entretanto casou e continuava desempregada. A construção ainda não tinha estabilizado, continuava sem conseguir arranjar emprego.

Um dia, uma amiga veio ter com ela. Tinha uma pulseira muito gira e, quando ela lhe contou quanto custara, Sara arregalou os olhos: "Quanto??? Credo, podias ter-me dito! Fazia-te uma igual!" A amiga não acreditou. E ela fez. Uma, duas, três, um colar, dois. As amigas andavam doidas com as suas criações. Sugeriram que fizesse uma página de facebook. E assim, no ano de 2012, nascia a Fio a Pavio. No dia 17 de Julho do mesmo ano, dia do aniversário da Sara, o marido ofereceu-lhe o registo da marca. Passado pouco tempo, Sara Sousa Ferreira começou a aparecer em revistas de nicho. Tinha criado uns maxi-colares que estavam a dar nas vistas. E é então, em Dezembro de 2013, que surge o convite para ir ao programa da TVI "Você na TV". Sara é bem capaz de ter sido das poucas pessoas com uma empresa para divulgar que recusou um convite tão apetecível: "Cada peça que eu faço é única. Troco dezenas de emails ou conversas com cada cliente, para tentar saber quais serão as cores e materiais que vou usar, para que cada peça faça sentido para cada cliente. Ora, estava no auge dos maxi-colares, cheia de encomendas e tive medo de ir ao programa e, depois, não conseguir corresponder às expectativas. Tive medo de não conseguir dar vazão a tanta encomenda."

As histórias que já se cruzaram com a sua fazem-na emocionar-se várias vezes durante a nossa conversa. Porque Sara é um vulcão emocional, sempre à beira de entrar em erupção. "Tive uma cliente que me encomendou um colar para oferecer à mãe que estava internada com cancro. A seguir enviou-me uma foto da mãe, de bata, com o maxi-colar que eu tinha feito. Fiquei tão comovida... Passado um tempo, manda-me mensagem a dizer que a mãe tinha falecido e acho que foi sepultada com o colar. Cada peça minha tem uma história. E eu adoro histórias. Adoro pessoas. Adoro afectos. Gosto muito de Arquitectura e hei-de ser arquitecta até ao fim dos meus dias mas a Arquitectura nunca me deu este retorno emocional, humano, que a Fio a Pavio me dá."

O pior é fazer a família compreender isto. Para os pais a filha passou de cavalo para burro. Sara compreende que tenha existido um grande investimento na sua formação e que até possa ter havido alguma incompreensão no início. Mas agora? Agora que já passaram seis anos, agora que passou por tratamentos de infertilidade e por uma gravidez de risco para conseguir ter os seus gémeos, algo que seria de todo impossível se tivesse persistido com o sonho da arquitectura, a trabalhar 16 horas por dia, num frenesim incessante e periclitante: "É mesmo isso que todos pensam de mim há anos (ou a grandessíssima maioria, vá): que passei de cavalo para burro. Olham para uma arquitecta que decidiu ficar em casa a enfiar missangas e a não ganhar subsídios e a não ter horários e pensam que fui de cavalo para burro. É isto que a família - e aqui dói a valer - vê. Não chega ter uma marca que aparece em horário nobre no telejornal da SIC pelas mãos da Joana Latino. A verdade é que nada do que faça para a família próxima chegará aos calcanhares de uma vida sem rumo onde trabalhava 12 horas no mínimo, a recibos verdes e sem retorno, apenas o estatuto de ser a senhora arquitecta. Eu sou muito mais eu com a Fio a Pavio, eu sou muito mais feliz com as minhas missangas despretensiosas do que com a hipocrisia e a falta de respeito dos ateliers. Eu não deixei de ser arquitecta. Apenas deixei de exercer."

Sara vive rodeada de cores, de objectos que põem as pessoas mais bonitas, mais felizes. Vive rodeada de histórias e de afectos, porque é essa a sua natureza, é esse o seu dom. Pode já não ser a senhora arquitecta mas isso é muito pouco quando comparado com a felicidade que lhe trazem todos os fios com que se liga ao mundo.  

 

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Mudar de Vida #15: Bruno Teixeira

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Trabalhou 18 anos de gravata a sufocar-lhe a garganta. Durante quase duas décadas, a banca foi a sua segunda casa, às vezes a primeira. Passou por alguns dos mais importantes bancos nacionais e chegou a chefiar 40 pessoas. Foi então que sentiu aquele vazio. Aquele aperto. Como se, de repente, a gravata o estrangulasse. Mais do que o possível. Mais do que o suportável. E percebeu que não podia continuar ali. "Estava a morrer por dentro".

Bruno Teixeira não foi sempre infeliz na banca. Sublinha que aprendeu muito com algumas pessoas com quem se cruzou, que lhe deram formação, que o ajudaram, que o ensinaram a crescer, a ser melhor. Dessas não esquece. Porque se há qualidade que se orgulha de ter é a de ser grato. Na verdade, também não esquece as outras, as que lhe mostraram exactamente que pessoa não queria ser, que caminho não queria seguir. O importante é não esquecer nunca. E levar lições de onde quer se passe.

Pouco tempo depois de sentir que já não pertencia ali, chegaram por parte da administração as propostas de rescisão amigável. Ainda pensou que talvez não estivesse a ser justo, talvez pudesse aguentar mais, talvez não fosse o momento. Mas, como acredita que nada acontece por acaso, nessa mesma altura não recebeu um prémio de produtividade que era suposto ter recebido. E pronto. Ao desalento que já o consumia juntou-se o sentimento de injustiça. Uma chama perto de um barril de pólvora. A decisão estava tomada. Era só preciso assinar. Nessas vésperas, pouco ou nada dormia. Ia à casa-de-banho dezenas de vezes, com a barriga às voltas. De noite, deitado na cama, conseguia escutar os diálogos entre o diabinho - que repetia que era uma loucura trocar o certo pelo nada - e o anjinho - que jogava a cartada do "vais livrar-te disto, podes fazer algo de que gostes realmente".

Quando o anjinho ganhou o braço-de-ferro e Bruno assinou a rescisão do contrato, o chefe perguntou-lhe se tinha alguma coisa em vista. Não tinha. Então perguntou-lhe se ficava mais 6 meses, só para fazer uma transição mais suave. Ele disse que sim porque, na verdade, ainda não tinha traçado qualquer plano para si. Só sabia que não podia continuar ali por se sentir a morrer devagarinho. "Como o medo é forte, comecei a disparar currículos para todos os lados: financeiras, consultoras, outros bancos... É tão forte a ideia que nos passam de termos de procurar um emprego estável que ficamos sempre com medo. E o medo mata sonhos. Pode matar o futuro. E depois é engraçado o que se passa com este sentimento. Porque se não tens medo és inconsciente mas se tens medo és maricas. Aprendi que a melhor forma de lidar com ele é respeitando-o. Conversar com o medo, de frente, e dizer: tu vais-me acompanhar mas não me vais dominar. E foi assim que comecei a minha aventura."

Como nenhuma das empresas para as quais tinha enviado currículo lhe respondeu, como nem a uma entrevista foi, começou a pensar na vida. O que fazer? Foi então que pensou no skate. "Comecei a andar de skate com 13 anos. Entretanto, uns amigos meus que eram comentadores de manobras e circuitos e campeonatos de skate na Fuel TV um dia convidaram-me para ir. Fui e gostaram de mim. Tanto que passei a ser comentador residente. E então pus-me a pensar: eu gosto tanto do skate e do que o skate representa... e se eu desse aulas? Se criasse uma escola? E foi então que comecei a planear tudo, nesses 6 meses em que o meu chefe me pediu para permanecer no banco."

Começou devagarinho, com os filhos de alguns amigos. Mas, como tudo o que é bom tem um rastilho rápido, depressa vieram outros. E mais. E hoje a Flow Skate School já conta com quase 100 alunos, dos 4 aos 50 anos. 

O que é que mudou na vida do Bruno? Tudo. "Sabes, o pior que te pode acontecer na vida é ficares na tua zona de conforto. Acomodado. Porque aí já não evoluis, já não cresces, já não sentes medo. E sim, é importante voltar a falar dele. Eu sinto medo todos os dias. De não fazer dinheiro suficiente, de não conseguir pagar as minhas contas. Mas depois penso: foca-te no teu trabalho que o dinheiro vem." E tem vindo. Mas muito mais importante que o dinheiro é a qualidade de vida que passou a ter. A possibilidade de se encostar a uma árvore a ler um livro, a olhar o céu, a usufruir da vida. Trabalho não lhe falta, mas passou a ter tempo. E o tempo é demasiado valioso para ter preço. 

Além da qualidade de vida, o que passou a reger os seus dias foi a vontade de ajudar a transformar vidas e o desejo de ser transformado também. Porque nesta vida de professor garante que é ele quem mais aprende todos os dias. Sobretudo quando, do outro lado, o feedback é tão positivo: "Às vezes chegam-me miúdos a dizer: 'na escola ninguém gosta de mim porque eu não sei jogar futebol.' E ao fim de umas aulas, quando já conseguem fazer manobras de skate que os outros não sabem fazer, ganham auto-estima, ganham um alento que não tinham. E ser agente desta mudança, fazer parte disto é incrível. O skate, de resto, é uma metáfora da vida. Até conseguires fazer aquela manobra vais ter que tentar, vais ter que cair, vais ter que te levantar, vais tentar de novo. Como na vida, quanto maior o obstáculo maior o prazer de lá chegar. Porque tens duas hipóteses quando esbarras com um obstáculo: ou voltas para trás ou enches o peito de ar e tentas. E eu gosto de os ensinar a tentar."

Bruno tem reflectido muito sobre estas enormes diferenças entre quem trabalha por conta de outrém e quem tem um trabalho próprio. "Quando tens um trabalho certo, quer trabalhes bem quer trabalhes mal, quer faças quer não faças, o dinheiro vai estar lá ao final do mês. É certo. Quando trabalhas por tua conta, a tua mente foca-se em aprimorares o teu negócio, em fazeres cada vez melhor, em não te deixares dormir à sombra. Sobre o dinheiro certo... não é o mais importante, se bem que compreendo que seja uma segurança. Mas há muita gente que só tem mesmo dinheiro. Não tem o resto. O que te define é o modo como tratas os outros, e o resto vem por acréscimo. O meu lema, todos os dias é: hoje veio alguém ter comigo e foi melhor para casa? Se sim, dia cheio. Se não, amanhã será um novo dia para procurar fazê-lo."

Trabalhou 18 anos de gravata a sufocar-lhe a garganta. Fato, gravata, vida "arrumada", dinheiro certo no final do mês, um tom de pele amarelecido que quase sempre tem quem está obrigado a um horário fixo, luz artificial e ar condicionado. Hoje trabalha de calções e t-shirt, calça uns ténis, o skate debaixo do braço e a pele bronzeada de quem vive ao ar livre, a desfrutar da luz natural e da vida cá fora. E nunca teve tanta certeza de que fez a escolha certa.

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