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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Histórias da Quarentena #9

Imaginem uma criança pequena sempre a dançar. Como uma boneca numa caixinha de música, aos rodopios pelas assoalhadas de casa. A tentar erguer o corpo nas pontas dos pés, a imitar as bailarinas de verdade, com pliés, jetés, adagios. Ainda tudo pouco técnico, só mais movido pela vontade, por uma vontade indómita, que nem se sabe bem de onde nasceu. Imaginaram? Agora, imaginem a criança mais crescida, no Conservatório, crescendo em anos a fio de trabalho intenso, o corpo a ser moldado para voos impossíveis, a graciosidade apurada pela insistência, persistência, teimosia, quase loucura. E depois os palcos, as coreografias mais míticas, os bailados mais desejados, O Quebra Nozes, Raymonda, Pedro e Inês, A Sagração da Primavera. Imaginaram? Agora, suponham que, de um dia para o outro, tudo cessa. Luzes apagadas, sapatilhas penduradas, pano descido, salas de espectáculos fechadas. Silêncio. E a menina feita mulher fechada entre quatro paredes, com espaço limitado para rodopios (quanto mais voos!), sem saber o que fazer ao bicho carpinteiro que lhe cresceu agarrado ao corpo, impelindo-a para um movimento perpétuo, para um constante desafio dos limites do esqueleto, agora obrigatoriamente limitado.

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Andreia Mota, 26 anos, é a menina que vos pedi para imaginarem. Desde que se lembra de ser gente que dança. Sempre dançou e sempre que lhe faziam a pergunta da praxe, "O que é que queres ser quando fores grande?", respondia o mesmo: bailarina. Não sabe bem de onde vem a pancada. Não existem outras bailarinas na família, apesar de haver uma certa tendência para o desporto: a irmã Margarida é altleta de alta competião, uma prima faz Trampolins e outra foi para o Atletismo. Ballet, nada. Só ela cresceu a sonhar com Arabesques. Aos 13 anos, saiu de Tomar para o Conservatório de Lisboa. Não veio sozinha. Aproveitou a boleia da irmã, que veio para a faculdade, e ficou a viver com ela e mais umas colegas, num apartamento em Alvalade. "Ao início foi muito complicado. Sou muito chegada aos meus pais e vinha de um meio completamente diferente. Estava sempre desejosa que fosse sexta-feira para ir para casa, passar o fim-de-semana. Pensei desistir algumas vezes, confesso. Ao mesmo tempo que sentia falta de casa, ainda havia a exigência do Conservatório, que não é brincadeira. Aquilo é mesmo para quem quer muito. Porque a adolescência... a adolescência não é, de todo, igual à das outras pessoas. A minha irmã tinha muito mais amigos, fazia coisas fora da faculdade. Nós não. Éramos poucos e não havia vida para lá daquilo. É duro. Mas quando se gosta..."

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E Andreia gostava. Muito. Tanto que, ainda estava no 12º ano, e a directora da Companhia Nacional de Bailado a convidou para ir fazer algumas produções. Acabou a assinar contrato com a CNB mas também fez algumas audições para fora, para outras companhias. Fez tournée pela Suécia, Noruega, Letónia, com O Quebra Nozes, a convite de uma companhia estrangeira. De tudo o que já fez, destaca uma coreografia de Vasco Wellenkamp que era uma homenagem à sua falecida mulher, Pedro e Inês, de Olga Roriz. Também relembra a primeira vez que foi a bailarina principal, no Raymonda. "Foi no Festival ao Largo, no Chiado. Estava nervosa como nunca. Preparei-me muito e adorei a sensação. E também n'O Quebra Nozes, em que dançava do início ao fim, duas horas e tal, com muita técnica, coisas muito difíceis, no Teatro Camões. Na Sagração da Primavera, coube-me o papel principal. Fazia de eleita, era a rapariga que é escolhida para morrer. Esse bailado são 140 e tal saltos num solo... Foram 3 meses de preparação intensa."

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Andreia recorda tudo com o olhar nostálgico de quem ainda nem acredita que já não sobe a um palco há meses. A pandemia pendurou-lhe as sapatilhas mas não a vontade de fazer, de criar. Confinou em Tomar, em casa dos pais. De manhã, nestes meses de clausura, fez aulas em casa, com a barra e outros exercícios para se manter em forma. Mas faltava-lhe ocupação para o resto do dia. Leu vários livros, mas faltava-lhe a criação. E então lembrou-se dos pais e da sua fábrica de costura, que faz, entre outras coisas, as roupas para os espectáculos da Disney. E pensou: "E se eu aprendesse a fazer maillots de ballet?" Os pais reviraram os olhos, tentaram dissuadi-la, que isso era coisa mesmo complexa, difícil a valer. Mas quê? Como explicar a palavra difícil a quem consegue fazer Fouettés? 

Andreia, que até então só sabia coser a direito, sentou-se ao lado da mãe e dispôs-se a aprender. Tinha uma ideia, tentava desenhar a ideia, estudava o molde certo com a mãe, e depois ela ensinava-a a fazer. "Ensinou-me tudo. A cortar o tecido, a juntar peças, a coser. E eu fui aprendendo e aperfeiçoando. E como sou bailarina e sei que há marcas que não me ficam bem e sei exactamente, na pele, o que gostamos e não gostamos, acho que consegui fazer maillots que encaixam mesmo bem. O meu pai, que está no negócio há 30 ou 40 anos, disse que eu nunca havia de conseguir. Ao fim de um mês, e depois de ver a minha persistência e evolução, ofereceu-me uma máquina de costura para levar quando voltasse para Lisboa."

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E assim nasceu a Terpsi (em homenagem à deusa da dança, Terpsichore), uma marca de maillots feitos por esta bailarina confinada, à procura de ocupação. A marca ainda nem tinha página de Instagram e já Andreia não tinha mãos a medir. "Cada bailarina tem 70 a 80 maillots em casa e queremos sempre mais um. De maneira que só com as encomendas dentro da companhia fiquei logo afundada em trabalho. Depois vieram os homens, muito invejosos, pedir também maillots e leggins. Agora, com a criação da página de Instagram, a coisa é mais séria, a ideia é mesmo projectar o negócio."

Em breve, Andreia espera poder voltar aos palcos e a outro tipo de acção, aquela com a qual sonhou toda a vida, e que é a sua grande paixão. Mas quer continuar a desenhar e a fazer nascer as suas peças. Afinal, há novas vidas que nascem, mesmo em períodos de escuridão. 

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Histórias da Quarentena #8

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E, de repente, a arte foi interrompida e cresceram plantas no seu lugar. Aspargus Setaceus em vez de concertos, Cotuledon Orbiulatas no lugar das luzes, colunas e parafernália técnica, Philodendron Erubescens a invadir espaços onde antes se planeavam tournées. Natureza a subsitutir a música, o teatro, as formas de expressão humana. Silêncio no lugar do som. 

Bruna Duarte, 33 anos é manager de artistas e Catarina Esperança, 36 anos, é produtora de espectáculos na UAU. Acontece que a pandemia fechou a cultura a sete chaves, baixou panos, desligou luzes, câmaras, e congelou a acção. Catarina estava a produzir a "Peça Que Dá Para o Torto", um nome ironicamente apropriado já que a peça foi, com efeito, dando para o torto de todas as vezes que foi adiada, pelos avanços da Covid e pelas medidas do governo. Foi como se, de um dia para o outro, alguém carregasse no "Pause" de um qualquer comando da vida e as deixasse a ambas assim, estagnadas, em modo "freeze". 

Só que, no caso da Catarina Esperança, o bicho carpinteiro consegue ser mais forte que o bicho Sars-Cov-2. Inventa coisas para fazer mesmo quando tudo parece mais parado do que o Bairro Alto a um sábado à noite, em tempo de confinamento. E entre as várias coisas que inventou para fazer, Catarina começou a transformar plantas em Kokedamas. Plantas que crescem numa espécie de bolas (damas) de musgo (koke, em japonês). No fundo, plantas confinadas, como nós. A ideia original é que fiquem suspensas, como se voassem, plantas confinadas mas em permanente levitação (como nós, confinados mas sempre a sonhar com futuros voos), mas também podem ser colocadas numa qualquer superfície, uma mesa, um parapeito, um soalho. Um dia, Catarina levou uma Kokedama para oferecer à amiga Bruna Duarte, e ela, que tende a ver negócios em quase tudo, não hesitou: "Isto é lindo! Temos de fazer qualquer coisa com isto! Está aqui um negócio!"

Bruna ofereceu-se para trabalhar as redes sociais do putativo negócio, mas Catarina, que não tinha pensado nas suas kokedamas em versão lucrativa, quis que avançassem a meias. Começaram então a fazer experiências. Com as plantas da mãe, da avó, da amiga. Umas davam melhor, outras não tão bem. Pensaram nos preços a pedir pelas plantas, pensaram nos nomes a dar a cada uma, para não se apresentarem com as designações científicas, em latim, pensaram no nome da marca. E a 14 de Maio de 2020 nasceu a Muski, um nome facilmente associável a algo ternurento, com o acréscimo do "ki", que reporta ao Qi oriental que significa "força vital". 

O negócio foi crescendo, devagarinho, até ao dia em que o Nuno Markl fez uma publicação e, assim, deu a conhecer a Muski a mais de 700 mil pessoas, como se fosse um borrifo de adubo que fizesse as kokedamas crescer. As encomendas dispararam e as sócias, que tiravam dois dias por semana para cuidar da Muski, passaram a ter um trabalho diário, entre criar a planta no seu ninho, embalar, enviar, responder a emails, tratar da faturação. 

Cada kokedama é uma espécie de pequeno tesouro. Uma fonte de vida que brota de um lugar sombrio e escuro, quase como um capricho, uma força indómita. Não me canso de usar a comparação com a vida que temos vivido, concluindo que, mesmo dos lugares mais umbríferos, pode brotar vida e beleza. As kokedamas podem ser a nossa metáfora perfeita. Elas que principiam no escuro mas crescem para a luz, dando vida ao que antes era vazio e silêncio. 

Muski no Facebook

Muski no Instagram

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Histórias da Quarentena #7

Hoje celebra-se o Dia Internacional dos Cuidados Paliativos Pediátricos e esta é a história de quem os viu substancialmente alterados por causa da pandemia. E de quem gostava que eles pudessem chegar mais longe, porque não são uma desistência, são uma aposta na qualidade de vida

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Custam-lhe, os queixumes. Filipa sabe que a natureza humana reside também nesta permanente insatisfação, mas uma coisa é compreender, outra é ouvir queixumes sem sentir uma pontada de enervação. Pais a queixarem-se dos vários meses que passaram em casa fechados com os filhos, por exemplo. Mães que tiveram bebés sem terem os pais ao lado. Pessoas privadas de festa de aniversário. Filipa suspira, revira os olhos, tenta não ser hostil. Mas a ela, que assiste a crianças com doenças graves e internamentos prolongados no hospital, apenas com um acompanhante e privadas da presença de todos os entes queridos devido às restrições que a Covid-19 trouxe, a ela custam-lhe ouvir certos desabafos. 

Filipa Freitas, 42 anos, queria ser médica pediatra. Teve sorte. Não conseguiu entrar para Medicina. "Por isso entrei para Enfermagem, em Coimbra, que foi a melhor coisa que me aconteceu. Se tivesse sido médica tenho a certeza de que não seria tão feliz como sou agora. Esta era a minha verdadeira vocação e eu não sabia." 

O serviço onde Filipa trabalha tem uma Unidade de Cuidados Paliativos com 5 camas. "Já desde 2017 que já trabalho numa equipa de suporte em cuidados paliativos pediátricos e já nessa altura tínhamos as consultas, e as consultas domiciliárias.  Esse trabalho com doença crónica complexa já existe há anos – só agora tem o nome de cuidados paliativos porque só agora se dá uma maior importância a esses cuidados em Portugal. Desde que ali trabalho, mudei muito a minha maneira de ver a vida. Quem passa por aquela unidade não consegue ficar indiferente. E é por isso que por vezes me irrita ouvir as pessoas queixarem-se de coisas pequeninas. Muito raramente me queixo de coisas pequeninas e acho que fazia bem a muita gente passar por ali uns dias."

A pandemia de 2020 veio mudar muita coisa no trabalho de Filipa. E acirrou ainda mais esta falta de paciência para com os lamentos sem grande razão de ser. Porque se antes já era doloroso assistir à doença e à morte de crianças, e ao sofrimento das suas famílias, agora passou a haver um novo dado na equação: o facto de essas famílias não poderem estar juntas nos últimos dias de vida das crianças doentes. "É muito difícil haver uma situação de agudização do estado de saúde de uma criança internada, ou mesmo uma situação terminal, e não podermos abraçar aquela família, como sempre fizemos. Antes, a criança podia estar com ambos os pais até às 11 da noite, altura em que um deles se ia embora e ficava o outro, se assim desejasse. Agora só pode estar um ao lado da criança, durante o dia e a noite. Só em situações muito excepcionais podem trocar, e isso implica uma série de regras de segurança. O que significa que, na maior parte das vezes, os pais não vêem os filhos. Nem os avós, nem os tios, nem os irmãos. Há crianças que estão assim, isoladas do mundo, desde Março. Não há despedidas. E é uma dor indizível."

Além do mais, explica Filipa, há perdas que não são contabilizadas nos jornais da noite das televisões. É o caso das famílias que, tendo em casa uma criança profundamente dependente, se viram privadas de todos os terapeutas que iam a casa, por causa da Covid-19: "Imagine uma mãe - geralmente são as mães que ficam em casa com os filhos com deficiências profundas ou doenças altamente incapacitantes - que está sempre em casa, sem falar com ninguém a não ser os terapeutas ocupacionais, os terapeutas da fala, os fisioterapeutas, que antes disto tudo iam a casa ajudar a criança. E que deixaram de ir. Além do prejuízo para as crianças, as mães ficaram ainda mais isoladas, ainda mais deprimidas. Mesmo nós, que temos visitas domiciliárias, entre Março e Junho deixámos de ir. Fomos tentando compensar com telefonemas, com vídeo-chamadas, com mensagens, mas não é a mesma coisa. Para a saúde mental destas pessoas foi mesmo muito complicado."

Percebe-se que Filipa se exaspere com queixinhas pequenas. Não há como censurá-la. Sobretudo quando se recorda do caso mais duro que se lembra de ter vivido (e já viveu muitos): ": Acompanhava, desde bebé, uma menina de 10 anos, com uma situação de saúde muito complexa e elevada dependência. Acompanhei-a desde o primeiro internamento, que durou 7 ou 8 meses e em que a mãe aprendeu todos os cuidados complicadíssimos de que ela necessitava. No dia em que ela foi para sua casa, fomos de ambulância, eu acompanhei a chegada a casa - toda a gente a chorar, foi uma emoção. Sempre que ela vinha para o hospital (estas crianças são hospitalizadas muitas vezes), era sempre eu que ficava com ela. Tinha uma relação muito próxima com a família. Há um ano, o seu estado começou a agravar-se, apesar dos cuidados extraordinários da mãe e do pai, que nunca se separaram, ao contrário do que costuma acontecer. Um dia, já durante a pandemia, estava de folga e ligaram-me a dizer que ela tinha dado entrada e que o seu caso era terminal. Fui para o hospital e lá a vi no isolamento, rodeada pela mãe, pela médica e pela enfermeira de turno, vestidas da cabeça aos pés como se ela tivesse Covid (é esse o procedimento, até chegarem os resultados dos testes). Vesti-me também da cabeça aos pés e entrei. Não imagina o que me custou não poder abraçar aquela mãe, que conhecia há 10 anos, e que tinha ali a sua filha, a morrer, e estava sozinha. Eu que a abracei tantas vezes, naquele momento tão duro não pude. Foi a coisa mais triste que me aconteceu."

Entretanto, foi feito um pedido especial ao director de serviço, para o pai poder entrar. A autorização foi dada mas o pai, que vivia em Aveiro, chegou tarde demais. A filha tinha morrido antes que ele pudesse despedir-se dela em vida. Duas horas depois da morte da menina, os resultados do teste chegaram: negativo para Covid. Porém, já os pais se tinham ido embora, e os abraços que a enfermeira gostaria de lhes ter dado ficaram irremediavelmente por dar, naquele que foi o momento mais difícil das suas vidas.

Filipa Freitas não consegue desligar dos meninos que tem no hospital. "Nunca. Já faço isto há 21 anos e se não enlouqueci até agora já não vou enlouquecer. De resto, não sou apologista da frieza. Já chorei à frente das famílias e não acho que isso seja uma fraqueza. Acho que é um sinal de empatia. No dia em que eu não me emocionar com isto não estou ali a fazer nada."

Uma das coisas que mexem com os nervos desta enfermeira (além das lamúrias fúteis que ouve por aí) é a pouca noção que ainda existe sobre o que são cuidados paliativos, sobretudo cuidados paliativos pediátricos. "Na verdade, nós não estamos ali para quando já não há nada a fazer, que é uma ideia que muitos profissionais de saúde continuam a cultivar. Não! Há muito que podemos fazer. Há muito sofrimento que podemos aliviar. E não falamos apenas de sofrimento físico, falamos de sofrimento emocional, espiritual, social. Há muito para fazer! A morte não é uma derrota. Se conseguirmos fazer tudo, se conseguirmos que a criança sofra menos, rodeada de quem gosta, é uma vitória."

Hoje, dia 9 de Outubro de 2020, comemora-se o Dia Internacional dos Cuidados Paliativos Pediátricos. E Filipa quer deixar recados, para que o preconceito não estrague um trabalho que devia começar mais cedo, mas invariavelmente começa demasiado tarde: "Ainda temos referenciações muito tardias por parte de algumas especialidades. Alguns profissionais consideram uma derrota enviar-nos alguns casos. Há uma espécie de obstinação terapêutica e uma recusa em falar de cuidados paliativos, como se fosse uma desistência. Não é! Não desistimos de ninguém. Pelo contrário: fazemos uma abordagem global da criança e da família - a mãe, o pai, os irmãos, os avós... Ajudamos e cuidamos de todos. Nas visitas domiciliárias conhecemos as necessidades de cada um e procuramos chegar a todos. Fazemos a ponte com os cuidados de proximidade, agilizamos tudo para que os cuidados em casa não sejam um bicho de sete cabeças. E proporcionamos uma melhoria efectiva da qualidade de vida. Não tenho qualquer dúvida sobre isso."

A morte é o derradeiro tabu. É irónico, porque é a única garantia que temos. E, no entanto, não se fala, não se pensa, não se planeia. "A maioria das crianças e das famílias preferia morrer em casa. Não nos moldes em que hoje as coisas estão. Mas se houvesse um acompanhamento bem feito, como existe noutros países, quase todas prefeririam. Ninguém quer morrer na frieza de uma hospital se puder morrer com dignidade e paz, rodeado das suas coisas e das suas pessoas, com a devida assistência de profissionais. Há cerca de 8 mil crianças com necessidades paliativas. Na zona centro são 1500. Sabe quantas seguimos aqui no meu serviço? Quarenta e tal. E não é só porque não conseguiríamos dar resposta. É porque não são referenciadas pelas respectivas especialidades. E é um direito humano que elas têm, e que não está a ser respeitado. Neste dia, é preciso falar disto. É preciso mudar muita coisa em Portugal."

Compreende-se, agora, que lhe custem os queixumes. São muitos anos a lidar directamente com o sofrimento mais contra-natura que existe. O das crianças, que deviam estar a esfolar joelhos e a rir até lhes doer a barriga. E o dos pais, que nunca por nunca deveriam ver morrer um filho. A todos os que têm por hábito queixar-se por dá cá aquela palha, Filipa pede: "Olhem para o lado. Há vidas tão duras que nem imaginamos. Mas talvez seja bom imaginar. Porque elas existem realmente. Não são ficção. Empatia precisa-se."

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No Dia Internacional dos Cuidados Paliativos Pediátricos, há um movimento chamado "hats on 4 cpc". Quem se identificar com este tema, pode hoje tirar uma fotografia com um chapéu pelos Cuidados Paliativos Pediátricos e publicar nas redes sociais com o #hatson4cpc. 

https://www.facebook.com/attitude.org/videos/654745985237766

Histórias da Quarentena #6

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Sempre quis ser médica, desde que se lembra de querer ser alguma coisa. O pai era Matemático e essa opção também estava em cima da mesa, se o plano A falhasse. Não falhou. Teresa não só se tornou médica como acumulou especialidades: Medicina do Trabalho, Oncologia Médica e Medicina Interna. Além disso, como sempre quis saber mais e adquirir mais valências, fez uma pós-graduação em Gestão Unidades de Saúde e um Curso de Mestrado em Engenharia da Saúde. 

A paixão pela Oncologia nasceu quando exercia Medicina do Trabalho numa grande indústria e, de repente, surgiu a dúvida se um dos produtos seria ou não cancerígeno. O cancro cruzou-se assim na sua vida profissional e, a seguir, os seis meses que passou no IPO de Lisboa transformaram-se em 18 meses. Fascinava-a a resposta espectacular à terapêutica que alguns doentes com cancros tinham, ao contrário de outros, o que a levava a pensar na componente genética e na área potencial de investigação que havia para desbravar (falamos do final dos anos 80). Além disso, queria desmistificar o cancro, queria tirar-lhe a densidade, o peso, o medo que a palavra trazia consigo. Queria que a morte não surgisse como único desfecho possível na cabeça dos doentes e das famílias. Teresa seguiu a sua carreira como médica oncologista e um dos seus objectivos era conseguir criar a Unidade de Oncologia no hospital onde trabalhava. Hoje é a Responsável desse serviço e Directora Clínica do hospital. 

No dia 3 de Fevereiro de 2020 sentiu um desconforto abdominal e teve uma pequena hemorragia. Pensou que talvez fosse uma infecção urinária mas rapidamente desconfiou de outra coisa e fez de imediato um exame ao colo do útero. Afinal, o cancro já se tinha cruzado na sua vida pessoal bem antes de ter surgido na profissional: "O meu pai morreu de cancro, o meu irmão morreu de cancro, a minha avó materna, dois irmãos do meu pai, dois irmãos da minha mãe. De maneira que, quando soube que era cancro do colo do útero, a única coisa que quis saber foi o estadiamento. Até ter o estadiamento calei-me caladinha e não falei à família. Porque sabia que teria de falar de forma diferente, consoante tivesse metástases ou não. Não tinha."

No dia 22 de Fevereiro contou à filha Filipa, a mais velha de 6 filhos (Filipa, 35 anos; Pedro, 31 anos; um sobrinho que é como se fosse um filho - Fernando, 28 anos; João, 27; Zé Miguel, 23; Francisco, 16). Mas o pior foi contar à mãe, a quem já tinha morrido um filho de cancro. Teresa não queria causar sofrimento a ninguém e tinha medo que se pusessem a pesquisar no Dr. Google, em vez de confiarem na sua palavra. Filipa, a primogénita, diz que só receava que a mãe estivesse a omitir coisas para os poupar: "A minha mãe é um extraordinário exemplo de força. Em vez de pedir colo, quis poupar os filhos e a mãe e ainda foi ombro para os colegas que reagiram em choque à notícia." Teresa encolhe os ombros, como se não tivesse importância nenhuma e, sobre os colegas, diz: "Tive quem desatasse a chorar e a perguntar: 'como é possível, a Teresa com um cancro??' (Que mais me impressiounou) Ao que respondi: 'Então, sou mais uma! Ser oncologista não é vacina contra o cancro!' É o que é."

Fez 61 anos no dia de 1 Março e, dia 2, começou o tratamento. Sete sessões semanais de quimioterapia, sessões diárias de radioterapia durante essas 7 semanas e ainda uns 3 tratamentos extra no IPO (braquiterapia). Filipa foi com a mãe à primeira sessão de quimioterapia e diz que a sua calma era tranquilizadora: "Dizia-me que, ao passar por isto, ainda poderia compreender melhor os seus doentes oncológicos. Depois da segunda sessão deixou de ser possível ter acompanhantes, devido às restrições do hospital pela Covid-19."

No meio de tudo, seria expectável que abrandasse a nível profissional. Só quem não conhece a Teresa acreditaria num abrandamento. Trabalhou praticamente todos os dias, antes ou depois dos tratamentos. Sentia que tinha de estar na linha da frente, numa altura tão crítica para o hospital como a da pandemia: "Sei que se não fosse a Covid podia ter tirado uns dias, quando me senti mais cansada. Mas não podia. Não numa altura como aquela. Tive cuidados acrescidos, por estar imunodeprimida, mas tinha de lá estar. A única coisa que deixei de fazer foi urgências. Ainda assim, sei que não dei o que podia ter dado nesta fase. Mas felizmente tenho a sorte de trabalhar com uma equipa fabulosa, e não falo só de médicos mas colegas de todas as equipas profissionais. Tenho-lhes uma gratidão eterna. Nunca me fizeram sentir doente, sempre tiveram para comigo o máximo respeito e apoiaram-me muito."

Filipa e os irmãos preocuparam-se, tentaram chamá-la à razão, ralharam, protestaram. No fundo, sabiam que não valia a pena. Teresa não se deixa abalar e tem um pragmatismo que chega a ser desconcertante: "Era como se este cancro fosse uma mera constipação, e como se a pandemia não a pudesse apanhar a ela." Teresa torna a encolher os ombros: "Ó Filipa, tinha de ser! Adoro o meu trabalho e não queria transformar-me numa doente. Eu precisava do meu trabalho, da minha normalidade e no hospital todos precisavamos de todos. Além disso, há outra coisa: o meu irmão dizia uma coisa que nunca mais esqueci: os únicos momentos irrepetíveis e únicos na vida do Homem são nascimento e a morte. Não tenho medo da morte. Nenhum. Sei que não parei aqui por acaso. Se for amanhã já fiz muita coisa. Não tudo mas muita coisa. E isso é óptimo. Valeu muito a pena. Está ganho!"

E está mesmo. Todos os exames feitos indicam que Teresa ficou livre do cancro. No dia em que terminou o último tratamento do IPO, a família não pôde celebrar com ela. Em pleno estado de emergência, não se puderam abraçar como gostariam. Mas os filhos queriam assinalar o momento e então deixaram um vídeo preparado com uma mensagem conjunta de todos os filhos e um ramo de flores, para quando chegasse a casa.
Nesse dia, o filho que a levou ao último tratamento e mais dois, apesar de terem intenção de ficar escondidos na escada para ouvir a reacção da mãe ao vídeo, acabaram por entrar em casa a bater palmas e de lágrimas nos olhos. "Malandros, fizeram-me chorar pela primeira vez", confessou Teresa. 
Filipa e os irmãos sabem que têm uma mãe de ferro, de aço. Um pilar inabalável. "Já admirávamos a nossa mãe mas a sua atitude de resiliência a esta provação aumentaram ainda mais o nosso orgulho nela. É um exemplo."
 

E nós, que a tivemos na linha da frente numa altura tão difícil da sua vida só podemos dizer: "Obrigada, Teresa". 

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Histórias da Quarentena #5

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Conheceram-se no hospital onde ambas trabalham. Ali, em ambiente hospitalar, recebem casos complexos, difíceis, desafiantes. Mas elas queriam fazer mais, chegar mais longe. De experiências trocadas, partilhas feitas, desabafos, ambas sentiram que podiam aproveitar melhor as suas competências. Mas foi com a chegada da Covid-19 e todas as suas consequências psico-emocionais que as duas especialistas tiveram ainda mais a certeza do desejo de ajudarem mais e melhor. Com outro tempo, outro espaço. E se a união faz a força, e se duas cabeças pensam melhor do que uma, juntaram o sonho à vontade e decidiram abrir a sua própria clínica.

Diana Cruz, psicóloga clínica, e Catarina Ribeiro, neuropsicóloga, nunca pensaram que fosse preciso uma pandemia para que finalmente decidissem arregaçar as mangas e dar um passo em frente, no sentido de abrirem um espaço privado, para lá do trabalho que já desenvolviam quer no hospital quer em outras clínicas. Mas foi assim que aconteceu. "Sentimos que há muitas pessoas descompensadas com tudo isto. Que o confinamento foi mau para muitas pessoas, que o desconfinamento foi péssimo para outras, que há medos que se tornam enormes e que bloqueiam vidas. E também percebemos, por outro lado, que muitas pessoas que até aqui tinham sentido o estigma de recorrer a um psicólogo, agora sentem que o seu pedido de ajuda é justificado por algo maior, algo que é comum à Humanidade, e que nos perturba a todos, a uns mais, a outros menos. E de repente achámos que esta era uma excelente oportunidade para ter em consultório pessoas que ainda tinham o preconceito, e puxar por esse fio, sendo que a pandemia é o pretexto, mas depois há uma série de sub-camadas que podem ser esmiuçadas e, assim, ajudarmos estas pessoas (e as que já eram abertas às terapia, claro) a viverem vidas mais equilibradas."

Depois de muitas conversas uma com a outra, falaram também com a família. Diana disse que, em casa, já esperavam que mais dia menos dia se metesse num projecto seu. Catarina também não encontrou resistências. E depressa começaram à procura de um espaço e não tarda estavam com o sítio escolhido em obras. "Queríamos que fosse um consultório confortável, aconchegado, que garantisse a confidencialidade dos nossos pacientes... que fosse assim uma espécie de uterozinho" - explica Diana Cruz. "O primeiro consultório em que trabalhei, com 2005, de um psicólogo sénior que me ensinou imenso, era exactamente o protótipo do que eu queria. E acho que conseguimos fazer um ninho parecido, ali na Praça de Alvalade (Lisboa), onde estamos a prestar serviços diferenciados nas áreas da Psicoterapia, da Neuropsicologia e da Terapia Familiar." O projecto de Diana e Catarina foi batizado por MITO, "porque mitos são, no fundo, narrativas simbólicas que evoluem no tempo e dão sentido de pertença e significado às pessoas, tal como as psicoterapias." 

Mas a ideia não se ficou por aqui. Quando o novo espaço já estava em obras e o entusiasmo de ambas estava ao rubro, Catarina pensou que não seria mal pensado se agradecessem ao "universo" por tudo o que lhes estava a dar. Ambas riem da expressão, se bem que a verdade é muito essa: devolver a sorte, retribuir os fortúnios. E foi então que surgiu a ideia de dar aos outros um pouco das duas. "Decidimos oferecer consultas a pacientes recuperados de Covid-19 ou pessoas em luto por causa da pandemia. Achamos que esta doença trouxe consigo muitas dificuldades psicológicas e queremos fazer a nossa quota parte. Sabemos que há por aí muitos ex-doentes que ficaram com mazelas emocionais, seja por terem estado entre a vida e a morte, seja por terem lutado sozinhos, e também estamos em crer que surgirão lutos patológicos, porque as pessoas não puderam despedir-se condignamente dos seus. Fizemos ambas voluntariado durante o período crítico do confinamento, ficámos no atendimento telefónico ao fim-de-semana e feriados, mas queremos fazer mais. E esta é a oportunidade para o fazer. Claro que não vamos poder oferecer consultas a todas as pessoas que nos aparecerem, somos só duas, não dá para tudo. Mas queremos pedir para que nos enviem a sua candidatura por email, e depois nós escolhemos um determinado número de pessoas que acompanharemos por mês, durante um determinado período de tempo."

E assim fica a informação: se vivem em Lisboa, tiveram a doença e ainda não recuperaram psicologicamente, ou se perderam alguém e sentem que não conseguiram fazer o luto, a Diana e a Catarina aguardam o vosso contacto. O email é mito.na.pandemia@gmail.com. Pode ser que consigam ser uns dos escolhidos. Quanto a todos os outros, que se sentem perdidos, incompreendidos, deprimidos, quem sabe se não encontram junto delas o apoio que faltava? Porque as dores da alma não devem ser negligenciadas, tal como as dores do corpo. Porque não há qualquer vergonha em pedir ajuda para curar a mente, assim como não há embaraço em curar uma perna partida. 

MITO: Praça de Alvalade nº6
2º fte, sala 6
1700-036 Lisboa

 

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