Histórias da Quarentena #9
Imaginem uma criança pequena sempre a dançar. Como uma boneca numa caixinha de música, aos rodopios pelas assoalhadas de casa. A tentar erguer o corpo nas pontas dos pés, a imitar as bailarinas de verdade, com pliés, jetés, adagios. Ainda tudo pouco técnico, só mais movido pela vontade, por uma vontade indómita, que nem se sabe bem de onde nasceu. Imaginaram? Agora, imaginem a criança mais crescida, no Conservatório, crescendo em anos a fio de trabalho intenso, o corpo a ser moldado para voos impossíveis, a graciosidade apurada pela insistência, persistência, teimosia, quase loucura. E depois os palcos, as coreografias mais míticas, os bailados mais desejados, O Quebra Nozes, Raymonda, Pedro e Inês, A Sagração da Primavera. Imaginaram? Agora, suponham que, de um dia para o outro, tudo cessa. Luzes apagadas, sapatilhas penduradas, pano descido, salas de espectáculos fechadas. Silêncio. E a menina feita mulher fechada entre quatro paredes, com espaço limitado para rodopios (quanto mais voos!), sem saber o que fazer ao bicho carpinteiro que lhe cresceu agarrado ao corpo, impelindo-a para um movimento perpétuo, para um constante desafio dos limites do esqueleto, agora obrigatoriamente limitado.
Andreia Mota, 26 anos, é a menina que vos pedi para imaginarem. Desde que se lembra de ser gente que dança. Sempre dançou e sempre que lhe faziam a pergunta da praxe, "O que é que queres ser quando fores grande?", respondia o mesmo: bailarina. Não sabe bem de onde vem a pancada. Não existem outras bailarinas na família, apesar de haver uma certa tendência para o desporto: a irmã Margarida é altleta de alta competião, uma prima faz Trampolins e outra foi para o Atletismo. Ballet, nada. Só ela cresceu a sonhar com Arabesques. Aos 13 anos, saiu de Tomar para o Conservatório de Lisboa. Não veio sozinha. Aproveitou a boleia da irmã, que veio para a faculdade, e ficou a viver com ela e mais umas colegas, num apartamento em Alvalade. "Ao início foi muito complicado. Sou muito chegada aos meus pais e vinha de um meio completamente diferente. Estava sempre desejosa que fosse sexta-feira para ir para casa, passar o fim-de-semana. Pensei desistir algumas vezes, confesso. Ao mesmo tempo que sentia falta de casa, ainda havia a exigência do Conservatório, que não é brincadeira. Aquilo é mesmo para quem quer muito. Porque a adolescência... a adolescência não é, de todo, igual à das outras pessoas. A minha irmã tinha muito mais amigos, fazia coisas fora da faculdade. Nós não. Éramos poucos e não havia vida para lá daquilo. É duro. Mas quando se gosta..."
E Andreia gostava. Muito. Tanto que, ainda estava no 12º ano, e a directora da Companhia Nacional de Bailado a convidou para ir fazer algumas produções. Acabou a assinar contrato com a CNB mas também fez algumas audições para fora, para outras companhias. Fez tournée pela Suécia, Noruega, Letónia, com O Quebra Nozes, a convite de uma companhia estrangeira. De tudo o que já fez, destaca uma coreografia de Vasco Wellenkamp que era uma homenagem à sua falecida mulher, Pedro e Inês, de Olga Roriz. Também relembra a primeira vez que foi a bailarina principal, no Raymonda. "Foi no Festival ao Largo, no Chiado. Estava nervosa como nunca. Preparei-me muito e adorei a sensação. E também n'O Quebra Nozes, em que dançava do início ao fim, duas horas e tal, com muita técnica, coisas muito difíceis, no Teatro Camões. Na Sagração da Primavera, coube-me o papel principal. Fazia de eleita, era a rapariga que é escolhida para morrer. Esse bailado são 140 e tal saltos num solo... Foram 3 meses de preparação intensa."
Andreia recorda tudo com o olhar nostálgico de quem ainda nem acredita que já não sobe a um palco há meses. A pandemia pendurou-lhe as sapatilhas mas não a vontade de fazer, de criar. Confinou em Tomar, em casa dos pais. De manhã, nestes meses de clausura, fez aulas em casa, com a barra e outros exercícios para se manter em forma. Mas faltava-lhe ocupação para o resto do dia. Leu vários livros, mas faltava-lhe a criação. E então lembrou-se dos pais e da sua fábrica de costura, que faz, entre outras coisas, as roupas para os espectáculos da Disney. E pensou: "E se eu aprendesse a fazer maillots de ballet?" Os pais reviraram os olhos, tentaram dissuadi-la, que isso era coisa mesmo complexa, difícil a valer. Mas quê? Como explicar a palavra difícil a quem consegue fazer Fouettés?
Andreia, que até então só sabia coser a direito, sentou-se ao lado da mãe e dispôs-se a aprender. Tinha uma ideia, tentava desenhar a ideia, estudava o molde certo com a mãe, e depois ela ensinava-a a fazer. "Ensinou-me tudo. A cortar o tecido, a juntar peças, a coser. E eu fui aprendendo e aperfeiçoando. E como sou bailarina e sei que há marcas que não me ficam bem e sei exactamente, na pele, o que gostamos e não gostamos, acho que consegui fazer maillots que encaixam mesmo bem. O meu pai, que está no negócio há 30 ou 40 anos, disse que eu nunca havia de conseguir. Ao fim de um mês, e depois de ver a minha persistência e evolução, ofereceu-me uma máquina de costura para levar quando voltasse para Lisboa."
E assim nasceu a Terpsi (em homenagem à deusa da dança, Terpsichore), uma marca de maillots feitos por esta bailarina confinada, à procura de ocupação. A marca ainda nem tinha página de Instagram e já Andreia não tinha mãos a medir. "Cada bailarina tem 70 a 80 maillots em casa e queremos sempre mais um. De maneira que só com as encomendas dentro da companhia fiquei logo afundada em trabalho. Depois vieram os homens, muito invejosos, pedir também maillots e leggins. Agora, com a criação da página de Instagram, a coisa é mais séria, a ideia é mesmo projectar o negócio."
Em breve, Andreia espera poder voltar aos palcos e a outro tipo de acção, aquela com a qual sonhou toda a vida, e que é a sua grande paixão. Mas quer continuar a desenhar e a fazer nascer as suas peças. Afinal, há novas vidas que nascem, mesmo em períodos de escuridão.