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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Histórias da Quarentena #4

Hospedeira rima com pasteleira... e com guerreira também

Magui era assistente de bordo mas a Covid-19

obrigou-a a alterar o plano de voo.

Agora, descobriu outras rotas, e está a planar de felicidade

 

Quando era pequena sonhava andar nas nuvens. Bom, não exactamente assim, que isso todos os miúdos sonham. Magui queria andar nos aviões, prestar assistência aos passageiros e, ao mesmo tempo, ir conhecendo o mundo, coleccionando carimbos no passaporte e aventuras na memória. Cresceu, fez a licenciatura em Turismo e Eventos (sempre de olho no seu destino), candidatou-se a uma companhia aérea, entrou, evoluiu, coleccionou carimbos e histórias. Ganhou mundo. Tornou-se chefe de cabine. Mas (que diacho, tem sempre de haver um mas), a vida de sonho tinha uma nódoa, uma mancha que começou por ser pequena (no início das paixões até os defeitos parecem qualidades) mas que, com o tempo, principiou a crescer e a tornar-se um enorme borrão. Lá diz o ditado: Não há bela sem senão. 

Era bela, a vida de Magui, mas tinha o senão de a afastar do seu país durante 23 dias por mês. Apenas 7 dos 30 dias eram passados por cá, com tudo o que isso implicava: saudades da família, saudades dos amigos, dificuldade de assentar arraiais. E quando foi pedida em casamento, corria o ano de 2019, o senão tornou-se o elefante no meio da sala. Era preciso mudar as coisas, até porque as coisas já tinham - elas mesmas - começado a mudar.

Em 2020, Magui despediu-se da companhia aérea onde já trabalhava havia 3 anos. Apenas e só por causa da desproporção de dias passados em terras lusas, tudo o resto corria de feição. Mas as raizes são onde são, e quando há desejos de formar uma família fica difícil cultivar o nomadismo. Inscreveu-se numa outra companhia, onde teria de fazer uma formação e, depois do exame, assinar contrato. Já se começa a desenhar o desenlace disto, verdade? Faltava uma semana para o exame final (e respectiva assinatura do contrato) quando foi declarado o Estado de Emergência que mandou toda a gente (ou quase) para casa. O formador de Magui despediu-se do grupo com um esperançoso "Até já". Mas já lá vão 4 meses e este continua a ser um até já sem fim à vista.

Nos primeiros tempos, Magui não estava - como praticamente nenhum de nós - a ver a fotografia completa. Era como se a objectiva estivesse apontada apenas para uma parte, e essa parte até tinha o seu encanto: os dias passavam devagar, havia tempo de sobra para a família, um tempo que já nem se lembrava de ter. Magui fazia o que quase toda a gente fez: bolos. E pão. E mais bolos. E mais pão. Os dias - tantos dias - foram passando e a objectiva fez um grande plano. O retrato final não era assim tão bonito. Sim, havia mais tempo, havia conversas até tarde, havia bolos e piadas para espantar o medo desse vírus de que se falava por todo o mundo. Mas, ela ia casar em 2020. Tinha acabado de comprar uma casa, tinha feito um empréstimo bancário. Com a agravante de não ter emprego, nem qualquer subsídio porque tinha sido ela a despedir-se da companhia aérea anterior (e ainda não tinha assinado qualquer novo contrato).

Os bolos que Magui fazia, recorrendo ao livro de receitas da família, eram tão bons que desapareciam num piscar de olhos. E num piscar de olhos ela fazia nascer outro. Até que, um dia, recebeu um ultimato dos pais e dos irmãos: "Chega! Nem mais um bolo cá para casa". Não lhe cheguei a perguntar a razão para a exigência, mas suponho que a balança familiar tenha tido o seu quê de responsabilidade. Foi assim que Magui começou a exibir os seus dotes culinários na sua página de Instagram. Primeiro só para amigos, mas bem depressa para quem quisesse adoçar uma tarde, um final de refeição, qualquer hora do dia, na verdade, porque adoçar calha sempre bem quando a vida vai amarga.

E daí surgiu a dúvida: "E se?" Maria, a irmã mais velha de Magui (28 e 25 anos, respectivamente), não esteve com falinhas mansas: "Se queres mesmo fazer isto a sério... faz. Não suporto pessoas que ficam pelo 'e se'." E assim foi. Magui não tinha grande jeito para as redes sociais e Maria, que manteve e mantém o seu emprego, começou a ajudar. De partilha em partilha, de gosto em gosto, a página numinstante.mg parecia ter fermento. De repente, havia Bolos de Iogurte, Panna Cottas, Tartes de Amêndoa ou Brownies a sair sem parar do forno lá de casa. A mãe de Magui e Maria (e Francisco, 22 anos) estava entre a incredulidade e o terror: o que tinha acontecido à sua cozinha? Havia farinha, açúcar, chocolate por todo o lado. A Bimby apitava finais de programas cada vez com maior frequência, o calor espalhava-se pela casa aumentando a temperatura, o perfume a bolos inebriava todos os que tinham implorado por uma trégua na doçaria. Mas as encomendas não paravam. E Magui e a irmã chegaram a acordar muitas e muitas vezes às 4:30 da manhã para conseguirem dar conta de todos os pedidos. "O forno lá de casa leva um bolo de cada vez. E para dar vazão a todas as encomendas era preciso ocupar a cozinha o dia inteiro. Imagine a minha mãe e os almoços no meio daquilo tudo! Acho que ela estava a dar em doida!" As duas irmãs revezavam-se e trabalhavam quase 24 horas por dia. "Muitos dias houve em que não íamos à cama. Nem sei como não estragámos a cozinha dos nossos pais". Mas numa felicidade inimaginável.

Entretanto, o crescimento do negócio implicava que tivessem uma cozinha certitifcada. Uma coisa é uma brincadeira para família e amigos, outra coisa é começar a ser um trabalho a sério, de pessoas que não conhecem a Magui nem a Maria de parte alguma, desconhecidos que contratam os seus serviços. Andavam à procura quando descobriram um espaço minúsculo em Campo de Ourique, com cozinha. Os arrendamentos eram de curtíssima duração mas as irmãs conseguiram um contrato de Julho a Setembro. E assim nasceu a Pop Up Store Num Instante, na Rua Correia Teles. 

Magui e a irmã levaram de casa uma estante para guardarem caixas e utensílios, levaram a Bimby e outros artefactos, e têm conseguido dar muito mais despacho às encomendas com o forno industrial que a cozinha tem ao dispor. Entram todos os dias às 6h da manhã (como vivem em Oeiras, significa que acordam todos os dias às 4:30/4:45) e fecham a loja às 18h. Os clientes podem optar por ir buscar ou pagar uma taxa de entrega, que elas levam onde for pedido. As caixas têm todas o autocolante com a imagem da marca, há cartõezinhos com mensagens, tudo tem um aspecto mimoso e quem recebe os bolos ou doces sente-se mimado, não apenas pelo recheio mas também pelo invólucro. Afinal, não é à toa que se diz que os olhos também comem.

Magui acredita que os pais estão orgulhosos por terem visto que ela soube dar a volta a uma situação complicada. Além disso, os pais puderam constatar que têm duas filhas que se dão às mil maravilhas, tão bem que até estão a trabalhar juntas. Há poucas coisas melhores para uns pais do que isso. O noivo também está contente. O casamento foi adiado mas a futura mulher já mostrou estar à altura do compromisso que se avizinha, mal o Covid permita. Nada que surpreenda qualquer um dos que a conhecem. Afinal, esta é a mesma Magui que se tornou assistente de bordo, cumprindo assim um sonho de infância. Esta é a mesma Magui que sempre serviu a comunidade enquanto membro da Associação Guias de Portugal. Quem a conhece sabe que não é menina de se deixar abater por uma Covid qualquer. Agora, o seu objectivo é voltar a voar, mantendo o seu doce negócio em terra. Pode ser que o "até já" da nova companhia não tenha sido um "adeus" e que seja possível regressar às nuvens, porque esse sonho mantém-se intacto. O que aconteceu entretanto é que nasceu um novo. Mas quando se é como a Magui, pode muito bem ter-se, em si, (como dizia Pessoa) todos os sonhos do mundo. Boa viagem, Magui! Bons voos - no ar e em terra.

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IG: numinstante 

 

 

 

Histórias da Quarentena #3

Estava tudo marcado. Casamento civil para dia 8 de Maio, festa de arromba numa quinta, dia 4 de Julho. Vinham muitos convidados de França, onde o noivo trabalha, vinham familiares, amigos, uma celebrante do Porto. O fotógrafo estava escolhido e pago, assim como o vestido de noiva, e a lua-de-mel. Quando o Presidente da República declarou o Estado de Emergência, Ana e Bruno começaram a ver a vida a andar para trás. 

Estão juntos há 13 anos e têm uma filha com 11, a Inês. Nunca casaram porque a vida foi andando e não lhes fazia falta um contrato. Mas, no dia 11 de Julho de 2019, dia do aniversário de Ana, Bruno pediu-a em casamento. Ela disse que sim, e marcaram tudo para 2020. Com 13 anos inteirinhos para escolher uma data, é preciso pontaria para acertar no pior de todos.

Logo no dia a seguir à declaração de Marcelo Rebelo de Sousa, Inês não foi mais à escola. Bruno voltou de França quatro ou cinco dias depois, num dos últimos voos para Lisboa. Foi ele quem introduziu o difícil tema: "É melhor adiarmos." Ana exclamou um "não!" que parecia convicto mas era mais uma negação da evidência que se tornava maior, de dia para dia. "Vamos esperar mais um bocadinho". 

Mas a Covid não mostrava jeitos de abrandar, muito pelo contrário. E havia a questão dos colegas e amigos de França, que tinham de organizar as suas vidas. No início de Abril, depois de respirarem fundo algumas vezes, adiaram a festa para 3 de Julho de 2021. Ainda pensaram arriscar Setembro deste ano, mas preferiram jogar pelo (mais) seguro. Todos os serviços envolvidos compreenderam e aceitaram (que remédio!). Ana e Bruno ainda tiveram receio que se perdessem os voos para Formentera, onde iam passar a lua-de-mel, mas tudo foi pacífico e o valor reembolsado. "Era a nossa primeira viagem a dois. Desde sempre que vamos para todo o lado com a nossa filha e, desta vez, íamos só nós." Lá está: é preciso pontaria.

Umas semanas antes da data marcada para o casamento civil, informaram-se sobre se seria possível mantê-lo. Era, mas teriam de ir sozinhos, e de máscara. E assim foi. No dia 8 de Maio, levaram as alianças, as máscaras, e assim casaram, sem testemunhas, nem aplausos, nem arroz, nem pétalas, nem beijos de parabéns, nem lágrimas de pais emocionados, nem fotógrafo para registar o momento.

Acontece que Ana e Bruno vivem num bairro de Oeiras que já aqui dei conta. Um bairro onde todos os dias do confinamento houve festa às janelas. Cantigas e danças e o hino, que aproximaram pessoas que viviam paredes-meias, mas não se conheciam pessoalmente e, muitas delas, nem de vista. Um bairro que se uniu de tal modo que foi criado um grupo de Whatsapp para que os vizinhos ficassem a par da "agenda" do dia à janela. E foi assim que Ana disse ao António, o DJ de serviço neste bairro tão particular, que ia casar naquele dia, e que contava com uma sessão musical à altura. O vizinho levou a missão muito a sério. Pediu aos noivos uma selecção de músicas que fosse relevante nas suas vidas, fez um convite de casamento que publicou no grupo e, às 20:30 de dia 8 de Maio, Ana e Bruno tiveram a boda mais estranha, divertida e emocionante que podiam imaginar. Dezenas de pessoas à janela bateram em tachos e panelas, a marcha nupcial soou aos berros pelo bairro, houve palmas, vivas aos noivos, houve canções que todos cantaram. Ana pôs uma bandelete com flores na cabeça, atou-lhe um lenço branco, para que fosse facilmente identificada como a noiva (já que o vestido está guardado para a festa, em 2021). 

O noivo tinha o irmão, que vive em França, ao telefone, em videochamada, para que assistisse à festa de casamento possível. "O irmão chorou baba e ranho, o tempo inteiro." Em casa, estava a filha do casal e a mãe de Ana, ambas a chorarem de emoção. "É verdade que nos custou muito adiar a nossa festa de casamento. É verdade que esta pandemia trouxe coisas terríveis a todos nós. Mas não posso negar que a festa à janela foi tão especial que acabou por tornar o adiamento uma coisa boa. Foi mesmo comovente assistir à festa que nos fizeram, e senti que as pessoas nos davam os parabéns de forma sincera e emotiva. Cantámos, dançámos, comemos um bolo que comprámos no Auchan e que, longe de ser um bolo de noiva, tinha chantily e morangos e serviu perfeitamente. Foi lindo e inesquecível."

Para o ano, se tudo correr bem, será a festa na quinta. Ana irá vestida de noiva, virão os convidados de França, os familiares e amigos de lá e de cá, haverá fotógrafo e arroz e pétalas e bolo de noiva e beijos e abraços e o pézinho de dança que nunca pode faltar. Este ano a Covid atrapalhou-lhes os planos, mas eles deram bem a volta. Em 2021, se tudo correr bem, será como eles sonharam.

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Histórias da Quarentena#2

NASCER EM TEMPOS DE COVID

Mariana esteve em perigo de pré-eclampsia e foi internada às 32 semanas de gravidez. Sem o pai, sem ninguém que lhe pudesse dar a mão e dizer que ia ficar tudo bem. Ninguém, nem mesmo o pai da Clarinha. Saiu do hospital 14 dias depois

 

Naquela noite de 27 de Agosto, agarrados um ao outro a chorar de alegria, Mariana e Pedro não podiam imaginar que aquela felicidade embrionária ainda os ia fazer chorar tanto de angústia, de solidão, de medo. Aquele positivo, que era tudo o que desejavam, havia ainda de passar por uma dura prova chamada Covid-19, e seus efeitos colaterais.

Mariana sempre quis ser mãe. Educadora de infância, conheceu o homem da sua vida tarde, aos 35 anos e, chegaram a pensar que talvez não fosse fácil conseguir uma gravidez, uma vez que ela já tinha sido operada ao útero duas vezes, e ele também tinha levado algum tempo a conseguir ser pai, numa relação anterior. Enganaram-se. Em julho de 2019, Mariana recebeu uma biópsia negativa ao útero, e decidiram começar a tentar. Em agosto, no regresso de uma viagem a Marrocos, Mariana sentiu-se malíssimo, agoniada e a vomitar. Quando, no dia seguinte, fizeram o teste, nem queriam acreditar: iam ser pais! 

A gravidez correu bem, com excepção da tensão arterial, que subiu logo no início e a médica, por precaução, juntando os valores ligeiramente elevados da tensão à idade e ao trabalho exigente, passou-lhe uma baixa logo nos inícios da gravidez. E Mariana aproveitou-a para descansar, para gozar da sua barriga com orgulho e vaidade, para desfrutar de uma gravidez há muito desejada. 

No início de Março, às 32 semanas de gravidez, a tensão arterial de Mariana escalou. Havia um sério risco de pré-eclampsia (uma complicação da gravidez que pode revelar-se muito grave e até mortal) e a bebé estava a crescer pouco: estava no percentil 7. "A médica mandou-me ficar em repouso e comer proteína a todas as refeições. E assim foi. Fiquei três semanas em repouso e a comer muito bem, e no dia 25 de Março fui de novo à consulta na Maternidade Alfredo da Costa. Foi então que a médica viu que a Clarinha só tinha aumentado 300 gramas. Estava no percentil 4. Explicou-me que a minha placenta tinha um defeito, que não estava a alimentar a minha filha, e que tinha de ser internada naquele momento, para se fazer uma cesariana ainda nesse dia."

Estávamos em pleno confinamento. Os acompanhantes já tinham sido barrados à porta dos hospitais e Mariana foi ao carro informar o futuro pai da decisão da médica. Choraram abraçados, com medo de que o desfecho pudesse não correr bem, e por saberem que, fosse qual fosse o desenlace, não poderiam passar por ele juntos. Ainda assim, havia a esperança de que, no máximo, daí a 4 dias seria o reencontro: "A médica tinha dito que a bebé ia nascer naquele dia, e que teria alta em 4 dias. E assim nos despedimos, a achar que não tarda estaríamos juntos, apesar de tudo."

Só que este parto não estava destinado a ser fácil, nem previsível, nem particularmente simpático para nenhum dos intervenientes. Mariana foi internada, os turnos mudaram, e os médicos que estavam no internamento não tiveram a mesma opinião da médica assistente: a bebé não ia nascer já. Controlaram a tensão de Mariana, monitorizaram os sinais vitais da bebé, e decidiram manter a gravidez pelo tempo que fosse possível. Passou dia 25, passou dia 26, dia 27, dia 28, 29, 30. Mariana num quarto de hospital, confinada, sem o pai da Clara ao seu lado. "Eu repetia vezes sem conta que já estávamos fechados desde o início de Março, que ele podia ficar sempre comigo, sem sair do hospital, mas a resposta foi sempre a mesma: não. Eram ordens da DGS. Nem uma janela podia abrir. O que me valeu foi o telemóvel, poder falar com ele, com a minha irmã, com os meus sobrinhos, com a família toda e os amigos... Um dia o Pedro apareceu lá em baixo, e eu pude vê-lo e à minha enteada pela janela. Foi uma choradeira que nem imagina! Mas sentia-me, ainda assim, tão sozinha. Devia estar feliz, mas tinha tanto medo, tanta apreensão, e ninguém dos meus por perto. Disse ao Pedro que, se houvesse dúvidas sobre quem salvar, queria que salvassem a minha filha. Ela seria para sempre dele. E eu queria muito que ela nascesse e vivesse. Enfim, foi um tempo muito duro, em que tudo nos passava pela cabeça. E passar por isto sozinha... foi mesmo difícil." Mariana emociona-se. Emociona-se incontáveis vezes, ao longo da nossa conversa. Há dores que levam tempo a passar.

No dia 31 de Março, a tensão arterial disparou para 20/12. Começaram a induzir o parto. As contracções começaram mas o processo foi lento. Tão lento que no dia 2 de Abril ainda estava em trabalho de parto. "Cada contracção que eu tinha fazia disparar a minha tensão e fazia diminuir o ritmo cardíaco da Clarinha. Foi então que fui para o bloco, para uma cesariana. Ela estava muito subida e, a certa altura, ouvi-os dizer ao anestesista para fazer força. Ele empoleirou-se no meu peito e fez tanta força que uma semana depois ainda me doía o peito. A Clarinha nasceu e não a ouvi chorar. Levaram-na para outra sala e eu só soluçava: a minha filha? A minha filha?"

Clarinha veio de seguida. Era muito pequenina. Nasceu às 36 semanas e 3 dias com 1,745 kg e 42 centímetros. Depois daquele primeiro olhar e cheiro (Mariana sempre de máscara), levaram a bebé para o Puerpério e Mariana para os Cuidados Intensivos. A tensão mantinha-se alta e tinha perdido muito sangue. Não se viram durante praticamente 26 horas. No dia 4 de Abril à meia-noite, uma enfermeira-anjo ("Susana, não me lembro do apelido"), levou a mãe a ver o seu bebé. Mariana pegou-lhe, enfim, pôde observar-lhe os detalhes, os dez dedos das mãos, os dez dedos dos pés, o nariz, a boca, cada pedacinho que não tinha podido ainda ver. Daí a um bocado, a enfermeira perguntou: "E agora?" Mariana agarrou-se à filha: "Agora já não a largo". A enfermeira sorriu e disse-lhe que ia então tratar de tudo para que pudesse ficar ao lado da filha. 

No dia 7, tiveram ambas alta da MAC. Catorze dias de internamento para Mariana, 5 dias de internamento para a Clarinha. O pai foi buscá-las e conheceu, ao vivo, a filha. Cinco dias depois de ter nascido. "Abraçou-me e foi outra choradeira à porta, claro. E depois olhou para a filha e disse: 'Tão pequenina... nas fotografias parecia maior, parece um ratinho.'"

Nesse dia, a irmã de Mariana foi conhecer a sobrinha à janela de casa, e sobrinhos vieram conhecer a prima nova. Alguns amigos vieram à janela, ver a bebé. O avô materno só conheceu a neta quando ela já tinha um mês e meio. A avó materna conheceu a neta na semana passada. Durante dois meses, Mariana esteve fechada em casa com a filha, impossibilitada de exibir ao mundo, ao vivo e a cores, a sua melhor obra. Muito melhor do que estar no hospital, sem dúvida, mas ainda assim foi uma provação continuada no tempo. É verdade que teve a sua filha, perfeita, saudável, é certo que o desfecho não foi uma tragédia (como podia ter sido), mas esta acabou por ser como que uma uma felicidade confinada, ela própria. Como uma felicidade a quem estivessem a tapar a boca, para não gritar aos sete ventos a sua existência. Clarinha não faz ideia, mas a pandemia faz parte da sua vida e fará, para sempre, parte da sua história.

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*Histórias da quarentena é uma nova rubrica do blogue, onde se vão contar histórias boas, más, incríveis, bonitas, feias sobre este período único que vivemos. Se tiverem histórias que creiam que valem a pena contar, enviem para sonia.morais.santos@gmail.com

Histórias da Quarentena#1

FRANCISCO, 13 ANOS: LUTOU COMO GENTE GRANDE CONTRA O "VÍRUS DOS IDOSOS"

Nem só pessoas com mais de 65 anos correm risco de vida com o Covid-19.

O caso de Francisco é raro, mas aconteceu

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Francisco nunca poderá dizer que a Covid não é para meninos. Aos 13 anos, o filho de Madalena e de Tiago aprendeu da pior maneira possível que o vírus de que toda a gente fala não ataca apenas os mais velhos. A ele, atacou-o e não foi pouco. Durante algumas semanas, lutaram ambos forte e feio. Francisco esteve quase a perder o confronto, mas fica já aqui o spoiler alert: esta história acaba bem (para o Francisco).

Tudo começou com a mãe. Sintomas de gripe, perda de olfato e de paladar, febre, dores de cabeça violentas, cansaço. Ligou para o SNS, começou a ser monitotizada à distância. Como não acharam necessário fazer teste, Madalena decidiu fazer, num laboratório privado. A 16 de Março recebeu o seu Positivo. Não estava propriamente assustada, talvez um pouco apreensiva ao início mas, com o passar dos dias, sentiu que a doença não evoluiu e relaxou. Ainda assim, isolou-se em casa. O marido, que trabalha no Luxemburgo, veio para tomar conta do Francisco e da irmã, Leonor, de 8 anos.

Um mês depois, precisamente a 16 de Abril, Madalena fez o segundo teste, que deu negativo. E a 18 de Abril, outro. Negativo também. E pronto. Assim teria terminado esta história, com uma passagem do vírus que parou o mundo pela casa desta família de forma fugaz. Mas não foi assim que aconteceu. A 21 de Abril, uma terça-feira, o Francisco começou com febre. "Não era muito alta, ficava ali nos 38,4ºC, mas demorava a baixar com o Benuron e voltava a subir pouco depois." No dia seguinte, a febre continuou a subir, mas baixava com os antipiréticos. Nessa noite, de quarta para quinta-feira, Francisco começou a bater o dente e a febre chegou aos 38,7ºC. Quinta-feira de manhã (23 Abril), foram com ele para o Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa. 

Fez raio X, fizeram o teste à Covid, tiraram sangue para análise. Tiveram de esperar muito tempo pelo resultado das análises e, ao final do dia, o Francisco estava claramente a piorar. Vomitou no chão da urgência, a febre a escalar. Os valores das análises estavam completamente alterados e, apesar de o Raio-X não apontar nada de especial (nem a TAC que fez depois disso), decidiram interná-lo na Infecciologia. "Eles estavam muito bem equipados. Havia uma antecâmara com baixa pressão, o protocolo estava muito bem pensado, de modo a minimizar a entrada dos profissionais de saúde no quarto. Borrifavam o espaço todo com desinfectante que ficava a actuar por várias horas... achei mesmo que havia medidas de segurança muito bem definidas e estruturadas."

As manchas que Francisco tinha desenvolvido nos pulsos, que se achava poderem ser uma espécie de alergia às luvas de latex que ele tinha quando chegou ao hospital, espalharam-se pelo corpo e já não eram bem manchas. Eram como picadas de agulhas e estavam sobretudo nas pernas. Madalena reparou que a equipa andava à volta dele sem saber muito bem o que fazer, mas ela ainda não sentia medo. "Ainda estava bem longe de imaginar o cenário que estava para vir."

No dia 24 de Abril, fizeram mais análises, um electrocardiograma. Não disseram muito sobre as análises mas o exame ao coração estava bem. Francisco parecia estável. Mas no dia 25 de Abril (sábado) tudo desmoronou. "Achei-o murcho quando acordou. Fizeram novas análises, mais um electrocardiograma, e foi aí que algo virou. A médica pôs o resultado do electrocardiograma no vidro para a cardiologista ver, e a cardiologista pediu para falar com ela, pelo intercomunicador. A médica saiu e vi-as agitadas do outro lado. A tensão arterial do Francisco estava a baixar, as picadas estavam a alastrar para as costas e já eram manchas. E à tarde foi o descalabro. Fizeram uma Angio-TAC, algaliaram-no, e a médica anunciou que iam pô-lo nos cuidados intensivos. Só via a médica da Infecciologia e a dos Cuidados Intensivos a apressarem as coisas, tudo numa grande correria, e foi aí que eu 'paniquei'. Fui para a casa de banho chorar, para ele não me ver assim. Ele estava consciente, apesar de hoje dizer que não se lembra de nada. Acho que já estava num limbo, mais para lá do que para cá."

A certa altura, o estado geral do Francisco era tão grave que a médica foi ter com a mãe e disse: "Vamos ter de o entubar e ventilar. Está a entrar em choque". Madalena só via médicos a correrem de um lado para o outro, desconcertados. "Estavam em contacto com Londres, ligaram para meio mundo, não estavam a conseguir estabilizá-lo, nem a perceber o que fazer. Depois percebi que todos os órgãos estavam a ser afectados: pulmões, coração, rins, pâncreas... A certa altura gritaram-me que tinha de sair, que tinha mesmo de sair. Fiquei uma hora e tal à espera, sozinha, no corredor. Sem fazer ideia se ele se ia salvar. Foi um pesadelo."

Por fim, vieram dizer-lhe que o filho estava a estabilizar, que as próximas 24, 48 horas seriam decisivas, e puseram Madalena à vontade para dormir no hospital ou ir para casa. "Ele estava sedado, entubado, e eu precisava muito de abraçar o meu marido e de chorar. Fui para casa, rezar muito, chorar mais ainda. Sempre em contacto com a directora de Infecciologia, Drª Maria João Brito, que me ia dando todas as notícias."

Quando a equipa decidiu tentar a Hidroxicloroquina, foi preciso que os pais dessem consentimento. Havia riscos mas era uma hipótese a explorar. Os pais aceitaram. Francisco levou o cocktail completo: três tipos diferentes de antibiótico, corticóides, hidroxicloroquina, e possivelmente outros que a mãe desconheça. "A alta dele tem 8 páginas. Ele desenvolveu uma pancreatite, uma miocardite, uma pneumonia bilateral, uma falência renal... esteve mesmo com todos os órgãos em risco. O dia 25 de Abril, que é um dia de Liberdade, para mim passou a ser um dia negro na minha história, na minha vida."

Francisco esteve 5 dias entubado e ventilado. Ao quarto dia, acordaram-no e mantiveram uma semi-ventilação para perceber se, no dia seguinte, seria possível retirar-lhe a ventilação (e foi possível). Esteve 8 dias nos cuidados intensivos. "E, no domingo, 3 de Maio, Dia da Mãe, saiu dos Cuidados Intensivos. Foi o melhor presente que podia ter tido!" Ainda ficou até dia 12 de Maio internado, na enfermaria, onde fez incontáveis exames. Perdeu 10 quilos e ainda tem algumas sequelas no coração, mas espera-se que sejam reversíveis. Cansa-se muito e está a fazer reabilitação física, na Estefânia e no privado, para recuperar a massa muscular perdida. Continua a ser seguido de perto pela Drª Maria João Brito, da Estefânia, e enviado para diferentes especialidades, no sentido de verificar se todos os órgãos afectados recuperam bem e sem mais sustos. 

O que aconteceu ao Francisco é raro. Muito raro. Há, no mundo inteiro, cerca de 230 registos de casos semelhantes. Ele é o único caso em Portugal. No fundo, é como se o corpo começasse a agredir-se a si próprio, na tentativa de eliminar o vírus. Ou seja, não foi a Covid-19 que fez todos estes estragos (de resto, deu sempre negativo nas análises que fez ao vírus enquanto esteve na Estefânia, muito provavelmente porque já não o teria, nessa altura), mas o organismo a tentar combatê-lo. Ainda assim, o Francisco nunca poderá dizer que a Covid não é para meninos. Ele tem 13 anos e viu-se grego com o vírus que, supostamente, tem os idosos como alvo. 

 

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