Perfil: Fernando Centeio
Para contar a história de Fernando Centeio, começo na primeira pessoa. Porque foi assim que tudo começou, pelo impacto que aquele tipo sorridente e de uma simpatia desarmante teve em mim.
Tinha acabado de me mudar para um escritório novo, no Alto de São João, e tudo tinha aquele aspecto de centro criativo fervilhante, em que imaginava pessoas extrovertidas e entusiasmadas com as respectivas artes, muito mais do que gente enclausurada em gabinetes, de tom macilento, e olhos postos na hora da saída.
Eu (e reforço, esta incursão na primeira pessoa é mesmo só para contextualizar, já vamos ao que realmente interessa) estava delirante com o meu novo espaço: tinha móveis por montar, outros que eu própria me encarreguei de lixar e pintar, e cada dia era uma festa renovada de prazer de construção e de início. Nunca conseguirei descrever o quanto sou doida por inícios.
Os dias foram passando, as pessoas dos escritórios vizinhos também, e só uma me bateu à porta e abriu, depois do meu assentimento feliz:
- Olá! Então seja muito bem-vinda! O meu nome é Fernando, sou o vizinho ali da Zulfilmes! Qualquer coisa que precise é dizer!
Depois desse dia, repetiram-se outros. Calha que o meu escritório é a caminho das casas de banho - é, como se costuma dizer, local de passagem. Mas calha que, entre aqueles que passam, só ele pára. Só ele passa, acena, abre, espreita e atira um bom dia que sabe a verão mesmo que esteja a chover. Só ele não se ensaia de espalhar alegria e uma energia que, mesmo para quem sabe pouco (ou nada) de energias, é uma espécie de raio de luz que fica, mesmo quando a porta se fecha, e ele se vai.
Acresce que Fernando Centeio é um nome conhecido e reconhecido do cinema português. A porra é que o cinema português teima em ser conhecido por poucos. Mas, ainda assim, ele já fez tantas coisas que podia ter-lhe dado para ser como tantos que se julgam acima dos demais e que, por isso mesmo, jamais se dariam ao trabalho de bater à porta de uma ilustre desconhecida, oferecendo ajuda e boas-vindas.
Este é, para começo de conversa, Fernando Centeio. Nos dias que correm, diria que é um começo de conversa que diz muito.
Fernando Centeio nasceu em Castelo Branco, tem 54 anos, e é um poço fundo de histórias, com uma vida invejável de experiências, mas é também um tipo que não se esquece de que, na porta ao lado, pode muito bem estar alguém que lhe interessa conhecer – e leia-se, neste interesse, não um interesse profissional, comercial ou de qualquer outra conveniência, mas um interesse meramente humano. Fernando gosta genuinamente de pessoas. Gosta de conhecer pessoas. Gosta de as ouvir, e de se contar, e de se ligar aos outros. E mais: de ligar esses outros aos outros. O que faz de dele, dito pelo próprio, “uma espécie de engenheiro de pontes”. “Sempre que sei de alguém que precisa de outra pessoa para concretizar um projecto, como conheço muita gente, lembro-me logo de os pôr em contacto”
A génese de todo o fervilhar criativo que lhe vem de dentro começou em Castelo Branco, onde nasceu e cresceu. “Nos anos 80 havia um grupo giro de gente que fazia coisas e que estava a despertar para o mundo e a sentir que aquele meio era demasiado pequeno, que precisávamos de mais, como se asfixiássemos, um bocadinho. Cada um fazia as suas coisas, era um dinamismo muito interessante. Eu na cave tinha o meu atelier como todos tinham. Chamar-lhe atelier é uma piada. Era uma cave, gelada no inverno, onde tocava, escrevia, pintava. O que me salvou da asfixia, e creio que a todos, foram os manos Brás, que criaram uma coisa chamada ‘ManoBras’ e que era uma galeria de arte, um bar, uma sala de projecções, sei lá, era um verdadeiro centro cultural. Aquilo durou uns dois ou três anos e salvou-nos. Permitia-nos expressar-nos livremente. Ouvíamos música que alguém trazia de Londres, sonhávamos com o tanto que havíamos de fazer.”
Filho de um militar, Fernando estava destinado a ser piloto de helicópteros. No 3º ano, desistiu. E não só desistiu como informou a família de que iria estudar Cinema. “A reacção? Bom, no início ia levando com um pau! Não havia ninguém ligado às Artes, na família, acho que pensaram que eu tinha enlouquecido.”
Não enlouqueceu e depressa compreendeu que o seu maior prazer não era realizar, não era representar, era mesmo produzir. É isso que Fernando Centeio faz: é produtor de cinema. O que é, afinal de contas, um produtor de cinema? “É um vampiro de talentos. É alguém que sabe exactamente o que pode extrair de uma pessoa para um projecto em concreto. É um gestor de egos, um diplomata. E é também um fazedor de puzzles porque encaixa peças. Na verdade, é um fazedor porque faz acontecer: resolve logísticas, trata das partes técnicas e financeiras, acompanha, desfaz problemas, encontra soluções, acompanha o filme até ao fim, nas salas, depois das salas, para sempre. É um altruísta, também, porque constrói o esqueleto e depois afasta-se para o deixar ganhar vida própria. Sabe quando tem de largar, sabe quando tem de agarrar, sabe quando tem de estar perto, sabe quando tem de sair de cena. Por fim, é um solitário. Há dores que são só suas e que não pode partilhar com ninguém, sob pena de desmoralizar ou assustar toda a equipa. Tem um peso em cima dos ombros com o qual tem de saber lidar, e aprender a carregar.”
Volto à primeira pessoa para um queixume. Breve, prometo. Mas que também diz muito sobre ele. Sabem aquelas pessoas que a meio de uma história contam outra, e no meio dessa enfiam outra de que se lembram, e são todas de períodos distintos, em geografias diversas, e com pessoas díspares? Eis Fernando Centeio, em todo o seu esplendor. Conversámos durante horas. E agora, ao olhar o caderno onde escrevi a conversa, perco-me em filmes, histórias, peripécias. Ando para trás e para a frente com as páginas, em busca de uma cronologia, de um fio condutor, mas o filme desta vida é demasiado intenso para caber numa linha, toda muito rectilínea, toda muito certinha.
Talvez seja melhor focarmo-nos, então, em projectos que definitivamente o marcaram. E “O Tapete Voador” de João Mário Grilo é, sem dúvida, incontornável. O documentário é sobre a tradição milenar da tecelagem de tapetes persas no Irão, e foi por causa dele que o produtor “descobriu” a probabilidade de ser persa, de ter sido persa, de descender de persas, de qualquer coisa desse tipo que não sabe explicar mas que sentiu na pele, nos ossos, na alma, durante todo o tempo que lá esteve, e foram cerca de três meses.
O modo como descreve o Irão, a forma como foi acolhido, o modo como os pais lidam carinhosamente com as crianças, a qualidade de vida, faz qualquer pessoa começar a cogitar uma viagem até ao Golfo Pérsico. “Em Esfahan, recordo as margens do rio com relva, as famílias a fazerem piqueniques à noite, avôs a ensinarem netos a andar de bicicleta, pais a jogarem badminton com os filhos... uma paz.”
Outro dos momentos que não esquece é a sua estadia de duas semanas com a tribo Qashqa’i. “Nunca fui tão feliz na minha vida. Ali no brutal planalto de Dasht-e-Balkan, no meio de uma tribo, a sentir-me a viver um filme, de facto, mas real. Eles criam as ovelhas que dão a lã para os tapetes. E eu ali vivi, embasbacado, a beber tudo aquilo, a pensar na sorte que tinha por poder ter aquela experiência. O chefe da tribo andou a combater do Xá da Pérsia durante 40 anos e eu dormia na tenda ao lado da dele. Um homem de 80 anos, pequenino, devia medir aí 1,40m! Um dia, estávamos a falar e eu começo a vê-lo segurar na carabina, e a começar a carregá-la. Pensei: ‘tu queres ver que eu disse ou fiz alguma coisa que não devia?’ Estava um bocado à rasca. Às tantas o tradutor lá me explicou: ‘É por causa dos ursos!’ Ah, ok. Ursos! Muito mais descansado. A dormir numa tenda de pano, sim senhor. (risos)”
Nessa viagem, também será impossível que se perca, na sua memória, um miúdo de uns 10 anos que lhe disse que gostava de ficar com uma recordação sua. Que sabia que nunca mais o ia ver, e gostava de ficar com um objecto para o recordar. Fernando, emocionado, tirou o chapéu que costumava usar, assinou-o, e deu-lho. A criança levantou-se, foi buscar o seu Alcorão, e colocou-lho, directamente no peito, junto do coração. A emoção embarga a voz do produtor ao recordar esse momento, e tantos outros naquele que será o seu lugar de origem, esteja lá a origem onde estiver.
Mas nem só de comoções se fez esta viagem que Fernando Centeio fez para preparar as filmagens do realizador com quem trabalha há quase uma vida. “Numa das vezes que fui, levei comigo o fotógrafo e meu amigo Daniel Blaufuks. Não é que acabou preso, em Teerão? (ri-se) Tudo porque achou graça a ver um néon numa loja com o nome de um amigo. Fotografou, para depois lhe mostrar. Acabou preso porque o edifício ao lado era dos serviços secretos iranianos e acharam que ele era um espião ou coisa que o valesse. Felizmente a coisa safou-se bem, mas foi um susto do caraças.”
O regresso do Irão também trouxe uma história – o que só prova que há ali coisa. Tinha-se separado há vários anos da primeira mulher, mãe da sua única filha, Margarida. “Separámo-nos quando a Margarida tinha 3 anos. Vivíamos no Campo Pequeno, eu saí e montei casa na Passos Manuel, com um quarto para a minha filha ir passar o fim-de-semana- Fiquei com uma óptima relação com a minha ex-mulher, aliás, fico sempre com boas relações. Há 35 anos que sou produtor de cinema e não tenho um único inimigo. Está sempre tudo bem. Bom, o que pedi à Filipa foi para continuar a levar a Margarida à escola. Comprei uma mota de propósito para ir de um ponto ao outro da cidade, fiz ponto de honra nisso. Passaram-se uns anos, uns 4 anos, vou para o Irão e, quando volto, nem sei bem como nem porquê, voltámos a namorar, eu e a mãe da Margarida. Às escondidas, para a miúda não ver porque não sabíamos o que aquilo ia dar. Aparecia quando ela já estava a dormir, passava a noite com a mãe, e depois saía antes dela acordar, para que não me visse. E tocava à porta como se visse da minha casa, para a levar à escola. (risos) Uns tempos depois, casámos. E ficámos juntos mais três anos.”
A Zulfilmes, nome da sua produtora, nasceu em 2010. O nome é uma homenagem à mulher mais importante da sua vida, a mãe: Maria da Luz. “Luz ao contrário é Zul. Pronto, eu sei, sou um sentimentalão incorrigível, mas... (comove-se)... a minha mãe incentivou-me a criar a produtora, esteve sempre ao meu lado, tínhamos uma ligação muito forte. A minha mãe morreu em 2016, depois de muito sofrer com um cancro que começou em 2012. Aliás, os meus pais morreram com um intervalo de 9 meses. Acho que ainda estou a apanhar esses cacos.”
Para explicar a relação extra-sensorial com a mãe, Fernando conta vários episódios. Um deles aconteceu quando foi à Sertã apresentar o seu novo projecto: um site (e respectivas redes sociais) sobre a mítica Estrada Nacional 2 (www.rotan2.pt), que pretende lançar uma profunda reflexão sobre o interior e não deixar cair toda uma extensa área que se viu relegada a um esquecimento doloroso. Fernando decidiu ir dormir à casa de família (já ambos os pais tinham falecido), por ficar mais perto (a apresentação era às 10h da manhã). “Acordei, arranjei-me, meti-me no carro. De repente, o rádio que ia a tocar calou-se e eu achei que devia ser falha de rede, ali no meio da serra. Quando voltou a funcionar, começou a tocar o Bolero de Ravel, que era a música preferida da minha mãe. Foi como se ela me estivesse a desejar boa sorte ou a dizer que ia correr tudo bem. Arrepiei-me todo. Mas aconteceu outra vez. Produzo uns ciclos de cinema em Monserrate e, um dia, fui fazer já não sei o quê ao Palácio, tinha de ir ao auditório... enfim, ia no corredor e começo a ouvir o Bolero de Ravel. Sorri. Ela tem a sua forma de me continuar a acompanhar.”
Fernando Centeio já produziu filmes de ficção, já produziu para televisão (foi ele o “pai” do programa “O Preço Certo”, que começou com Jorge Gabriel), mas cansou-se. Prefere, de longe, o documentário, ao qual se tem dedicado. “O que me faz feliz são projectos que abraço, que invento sozinho, ou que imagino com alguém. Aprendo muito mais, estou perto, estou dentro. Não quero crescer mais do que isto. A quantidade interessa-me menos do que a qualidade, o prazer que retiro a fazer as coisas. O primeiro filme que produzi já com a Zulfilmes foi o “Gesto”, em 2010. Um filme que retrata a surdez. E só passados 5 ou 6 anos é que consegui meter o filme em sala, porque ser produtor é também ser um maratonista. Um tipo não se pode cansar. Eu que o diga com o último documentário que produzi para o João Mário Grilo.” O produtor suspira. Fecha os olhos. Torna a respirar fundo: “O ‘Vieirarpad’ é a história de amor entre Vieira da Silva e Arpad Szenes. E está lindo, sem dúvida. Mas foram seis anos da minha vida. Divorciei-me, mudei três vezes de estúdio, perdi o meu pai, perdi a minha mãe.... toda uma vida aconteceu e eu continuava a produzir aquilo. Passei muita noite sem dormir, devo ter perdido anos de vida. Ainda não tem estreia marcada mas é uma belíssima história de amor, de dois artistas enormes. Tive a sorte de dormir na casa deles, em Yèvre-le-Châtel, e tive o privilégio de estar em contacto com uma série de detalhes das suas vidas, mas foi de facto extenuante.”
Diz isto mas, em mãos, tem mais não sei quantos projectos em curso, que é isso que o faz feliz. E por mais ocupado que esteja, tem sempre tempo para bater à porta, espreitar, e dizer aquele “Bom dia!” que faz a diferença. É um produtor de mão cheia. Mas, para mim, é, acima de tudo, um bom vizinho. Uma pessoa luminosa que o Sítio (que nos acolhe a ambos e à nossa hiperactividade comum) me trouxe. Uma boa alma, de fino recorte, possivelmente persa, seguramente de uma sensibilidade incomum. Obrigada, vizinho!