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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Pandemia: o ser humano em carne viva

Quando li algumas pessoas a dizerem que isto da pandemia nos ia tornar melhores pessoas, sorri. Talvez seja isto, também, envelhecer. Tornamo-nos mais cínicos, menos benevolentes, menos crentes. E a verdade é que não, isto da pandemia não nos tornou em nada melhores. 

Vejo gente a criticar os outros por tudo e por nada. Porque jantaram com uma amiga, porque apareceram numa fotografia abraçados a uma mãe, porque foram uns dias para uma viagem pelo país, porque foram para fora do país, porque foram ao teatro, porque andaram sem máscara numa rua onde não estava absolutamente mais ninguém. O apontar de dedo ao outro tornou-se, à falta de melhor, o desporto nacional de eleição. Já não há estádios para onde ir descarregar as frustrações? Descarregam-se em quem faz a sua vida; e mesmo que seja alguém que tem todos os cuidados e siga todas as regras, basta que ponha um pé em ramo verde (entendendo-se aqui o "ramo verde" por aquela zona cinzenta em que a lei não proíbe mas os arautos da moral covidiana consideram errada) e lá vem a matilha, sedenta de sangue, pronta a estraçalhar a sua mais recente presa.

Repugna-me, tudo isto. Repugna-me a ponto de ficar à beira da náusea. Porque tudo isto é contra-natura, porque é natural que não estejamos sempre 100% certos, porque somos animais sociais e porque sentimos saudades da vida como sempre a conhecemos, ainda que saibamos que o perigo espreita. Quem nunca sente que errou, durante este quase 1 ano que já levamos disto? Quem foi sempre absolutamente exemplar? E ser exemplar é o quê, exactamente? Cumprir o que nos manda o Governo, no desgoverno que tantas vezes revelou (desgoverno esse que, para mim, é facilmente compreensível)? Cumprir mais do que as regras ditadas em cada estado de emergência, sendo mais papista que o Papa? E deixar avós sem ver netos, pais sem abraços e sem visitas, terá mesmo sido sempre o melhor? Estarão uns (os que cumprem até mais do que lhes pediram) e outros (os que de vez em quando, de máscara posta, não conseguiram evitar um abraço a uma mãe, a um pai) 100% certos? 100% errados?

O maniqueísmo voltou em força. De um lado estão os bons, do outro os maus. E é tudo mentira. Somos humanos. Todos erramos, todos fazemos merda, mas andamos, na maioria dos casos, a tentar o melhor que sabemos. Entre a assepcia e o contacto físico que nos falta. Entre o distanciamento e a proximidade. Tentamos, falhamos, voltamos a tentar. Somos humanos a fazer o possível dentro do impossível que nos aconteceu. 

Outra coisa que me encanita é o aproveitamento político disto tudo. Malhar no Governo tornou-se outra das actividades lúdicas da turba. Os que são de direita aproveitam para criticar aquilo que "só podia vir de um governo de esquerda". Os de esquerda apontam as falhas que "só podiam vir de um governo que não é suficientemente social". O Governo abre as portas ao Natal e muitos sentem aquele alívio por poderem juntar quatro ou cinco gatos pingados da sua família, e a seguir vem tudo apedrejar o Governo por ter permitido orgias natalícias servidas com fatias douradas. O Governo fecha e é apupado, o Governo abre e é desfeito. Juro-vos que tenho uma enorme consideração por quem tem de decidir, nesta fase tenebrosa das nossas vidas. Preso por ter cão e preso por não ter é algo a que já me habituei, é certo, mas na minha micro-escala. Não consigo nem imaginar o que será à escala nacional. A verdade é que a manta é demasiado curta. Se puxamos para cima, destapamos os pés, se puxamos para baixo temos frio no peito. A saúde e a pressão nos hospitais, por um lado; a Economia, por outro. Não me lixem (para não dizer pior)! Vocês, treinadores de bancada, é que faziam tudo certo, não é? P*ta que pariu, tanto excelente putativo ministro que Portugal tem, fora do Parlamento!

Durante muito tempo, levei isto na maior. Juro. Tenho a felicidade de ter uma boa casa, uma família estruturada e feliz, e acho que durante todo este tempo temos conseguido estar mesmo bem, juntos. Lemos, vimos filmes em família, fizemos jogos, almoços no terraço, jantares, gargalhadas, parvoíces. Acho que tive este equilíbrio porque achei que era temporário, mais temporário do que se revelou. Mas agora estou farta. Estou cansada, como todos nós. Quero a minha vida de volta. Quero, não escondo. Mas quero sobretudo deixar de assistir a este estado de policiamento geral, a este constante auto de fé, em que a gente até tem medo de dar um passo, não vá virem os lobos raivosos morderem-nos as canelas. A cada dia que a pandemia se mantém, perco mais a fé na humanidade. Não, isto não nos tornou melhores. Isto só nos revelou como somos. E digo-vos uma coisa, a respeito do que acho que somos: cada vez gosto mais dos meus cães.

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