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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Nós #1: Associação Novamente

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Esta é uma nova rubrica.

Vou contar histórias de associações que ajudam pessoas. Muitas delas todos conhecemos. De muitas nunca ouvimos falar. Com algumas, vocês que lêem vão sentir uma maior empatia do que com outras, seja porque conhecem alguém que tem o problema a que essa associação se dedica, seja pela forma como o texto está escrito, ou apenas porque houve ali qualquer coisa que vos sensibilizou mais, talvez pelo modo como despertaram nesse dia. Alguns poderão sentir vontade de ajudar, seja com o seu tempo e trabalho, seja com uma oferta financeira. Alguns nem sequer se vão dar ao trabalho de ler, porque não têm tempo, porque não lhes apetece agora, porque não gostam de saber dos problemas dos outros. A estes últimos, dizer apenas isto: muitas destas associações apoiam pessoas que podíamos ser nós todos. Que hoje estamos aqui, nas nossas vidinhas, reclamando do tempo ou de não podermos ir a um concerto ou da monotonia dos dias, mas amanhã podemos estar com a vida de pernas para o ar. Sem saber o que raio nos aconteceu. Sem saber como recomeçar. 

Chamei a esta rubrica "Nós" porque acredito que um "nós" é - quase - sempre mais forte que um "eu". Sobretudo quando o "eu" está perante uma situação inesperada, diferente, fora da norma, exigente, desafiante, contra-natura, contra-corrente. 

Estas associações são também "nós" no sentido em que ajudam a prender vidas, ajudam a agarrar quem está desgarrado, a laçar quem está deslaçado. Sem elas, a sociedade seria muito mais cruel do que já é. Sem elas, muitos não teriam um rumo, uma segunda oportunidade. E eu acredito em segundas oportunidades. Bem-vindos à rubrica "Nós".

 

Associação Novamente

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Tudo começou com um cavalo. Mais concretamente, com um acidente trágico com um cavalo. Luís Miguel tinha 29 anos e, durante um jogo de Horseball, caiu do cavalo e sofreu um traumatismo crânio-encefálico. Felizmente, depois de um coma e de muitas incertezas, sobreviveu. Felizmente, também, teve uma família que não desistiu, que mexeu todos os cordelinhos, cordas e cordões, que indagou, que buscou e que, quando deu conta de que não havia as respostas necessárias, decidiu criá-las. Luís Miguel é filho de Godinho Lopes, ex-presidente do Sporting Clube de Portugal, e teve a sorte - dentro do azar - de ter um pai que não baixou os braços. E foi assim que, em 2010, nasceu a Novamente, uma associação que procura ajudar famílias de traumatizados crânio-encefálicos (TCE), preenchendo uma lacuna que existia, porque estas são pessoas que não têm um padrão, não estão tipificadas, não apresentam todas as mesmas sequelas. Há as que perdem totalmente a locomoção e as que não vêem a parte motora afectada; as que perdem faculdades cognitivas e as que vêem apenas algumas características da personalidade atingidas. Por não haver dois casos iguais, a problemática é complexa, específica, e a ausência de soluções era, antes do nascimento da Novamente, gritante. 

Converso com Vera Bonvalot, directora da Associação. Não lhe vejo o rosto, por culpa da máscara a que todos estamos obrigados, mas imagino-a bonita, pelo modo enérgico e bem disposto com que defende a sua causa, os seus associados e respectivas famílias (o Google confirmou, depois, que tinha razão). Há nela um respeito e uma valorização dos seres humanos, que se afasta vigorosamente da vitimização ou da "coitadinhação" (palavra acabada de inventar, num rasgo de ousadia linguística). Vera não tem ninguém na família que tenha passado por isto, nem é voluntária. Este é o seu trabalho, para o qual foi contratada há 11 anos. "Nunca tinha trabalhado na área das ONGs e das IPSS mas tenho aprendido muito." Vera vinha da área do marketing e da gestão de produto, mas percebe-se pelo olhar (que fica, felizmente, a descoberto de máscaras) que foi aqui que encontrou a sua verdadeira vocação. 

Uma das coisas que aprendeu foi que ter um TCE em Portugal não é o mesmo que ter um TCE noutros países. "É verdade que por vezes podemos não ter tantas condições, mas há uma coisa que temos: família. Quando há um acidente, um drama desta violência, vai tudo para o hospital, família, amigos. E podem revezar-se e continuar a apoiar durante muito, muito tempo. Há países onde simplesmente não aparece ninguém. Aqui é impressionante o que os pais fazem pelos filhos. Fazem o que for preciso. Não pensam duas vezes. Conheci um pai que me contou que os médicos disseram que o filho ia ficar um vegetal toda a vida. Ele recusou o diagnóstico. Tinha um negócio de móveis com o irmão e vendeu a parte dele para pagar terapias: da fala, ocupacional, etc. Vendeu o carro e, na garagem, fez um ginásio para o filho. Depois, pediu emprego ao irmão, e continuou a trabalhar sempre para ajudar o filho na sua recuperação. E depois de me contar isto tudo disse: 'E agora a doutora venha comigo lá abaixo conhecê-lo, que foi ele que me trouxe de carro.' Emocionou-me muitíssimo, esta luta, esta garra, este ir até onde for preciso por um filho."

Mas, para Vera, há também que saber parar. Saber aceitar que aquela pessoa não vai voltar a ser tal e qual como era. Lutar para que fique o melhor e o mais autónoma possível, sim, mas saber também aceitar a sua nova identidade. "É tramado porque os traumatizados não têm diagnósticos fechados. Não há como saber se fica vegetativo para sempre, se vai conseguir voltar a andar, a falar... E na verdade, os diagnósticos são geralmente muito negativos, e quando eles vão conseguindo sempre mais e mais, de repente fica a esperança de voltar ao que se era. E podem ficar reféns dessa busca incessante, presos nessa procura eterna da pessoa que foram. Há sempre um luto que é preciso saber fazer, para que se consiga olhar em frente e não ficar sempre a olhar para trás, para o que se foi, para o que se perdeu, para o que a vida podia ter sido e não foi. É muito fácil dizer e muito mais difícil fazer. Mas é também isso que ajudamos a construir na Novamente: esse processo de aceitação. Às vezes, o próprio até já começa a aceitar-se e é a própria família que trava esse processo dizendo: 'Este é o meu filho Zé. Ele era engenheiro.' É compreensível. A família tinha orgulho naquilo que o filho tinha construído e sente-se incapaz de lidar com a frustração do que se perdeu. Mas é essencial aceitar. É a única forma de seguir em frente."

A Novamente, além de se focar no futuro, na nova pessoa que o TCE fez nascer, oferece um apoio continuado. Há um contacto com as famílias, de preferência desde que o acidente acontece, para desde cedo se ensinar a família a viver um dia de cada vez. "Depois, ajudamos a lidar com os amigos, com o regresso a casa, com os seguros (sempre uma chatice), com a escola ou o trabalho. E a seguir é continuar a dar seguimento, tentar arranjar saídas para estas pessoas. Infelizmente, no TCE não temos o que já existe para o cancro. Nos casos de cancro, a pessoa entra no sistema e fica imediatamente acompanhada e ninguém a larga - marcam consultas, marcam exames, análises, ligam, seguem. Isto é o meu sonho, para os traumatizados crânio-encefálicos também. Queria que o sistema não os perdesse e que os dirigisse para as terapias da fala, ocupacional, para consultas de psiquiatria, psicologia... são pessoas com múltiplos problemas e que precisam ser vigiadas. E como não existe este acompanhamento, andam às apalpadelas, sem saber a quem recorrer."

É aí - também - que entra a Novamente, nesse encaminhamento, nesse desbravar de terreno. Mas também no contacto próximo com a Segurança Social e no diálogo com outras instituições de solidariedade, na possibilidade de fazerem obras em casa para a adaptar à nova realidade (e nos casos de pessoas que manifestamente não têm capacidade financeira para o fazer), no aconselhamento jurídico. E ainda na capacitação para a empregabilidade, no permanente incentivo a uma maior autonomia. "Três vezes por semana temos o Viver Novamente. Podem ir fazer um desporto, que pode ser ténis, golf, vela adaptada, ioga, cavalos adaptados, mas também podem ir só beber um café e conversar, ou ir a um museu, ao cinema. Gostava de ter estas actividades a nível nacional mas neste momento só tenho em Cascais. É muito importante, para que eles reaprendam a sociabilizar. Porque muitas vezes, os amigos afastam-se. Não é por mal, é porque a vida, para quem não tem uma questão destas, é a correr. É sempre a correr. E para estas pessoas não. A vida mudou. Tem outro ritmo. De maneira que, muitas vezes, é só nestes encontros que voltam a ter vida social, e isso é muito importante." Os associados da Novamente pagam 5€ para terem acesso a tudo (obras em casa , materiais de apoio, apoio jurídico, apoio continuado etc.), excepto ao serviço Viver Novamente. Esse custa 150€ por mês com todas as actividades já descritos (transportes incluídos). 

A associação apoia cerca de 500 famílias por ano e precisa sempre de ajuda: donativos de empresas, de pessoas de boa vontade, consignação do IRS, jantares, feiras... Vale tudo, quando há tanto em causa. E, sobretudo, quando se pensa que um traumatismo crânio-encefálico é uma daquelas situações que pode acontecer a qualquer um de nós. Basta uma queda, de cavalo, de bicicleta, trotineta, a pé. Um atropelamento. Um acidente de viação. Uma agressão. Um AVC. Num segundo, a vida pode mudar para sempre. Importante saber renascer. Para começar tudo, Novamente. 

https://www.novamente.pt/

Contactos: 91 227 55 06

Email: geral@novamente.pt

 

Para ajudar: 

Por Multibanco

Entidade:  21604

Referência: 605 606 607

Valor: O que quiser

 

Por MBWay - 91 261 74 82

No IRS - NIF: 509 310 354

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Vera Bonvalot (eu não disse que, além de competente, era bonita?), directora da Novamente

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