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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mulheres do caraças #4

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Fui ter com ela à Leitaria Quinta do Paço, no Mercado do Bom Sucesso (Porto), sem saber muito da sua história. Sabia que tinha tido um cancro, mas eu ia ao seu encontro pela justíssima petição que tinha criado e que, por ser justíssima e também pela sua perseverança e tenacidade, tinha chegado ao incrível número de 17 mil assinaturas (agora já vai em 18 mil), indo por isso a discussão na Assembleia da República, no próximo dia 31 de Janeiro.

Quando lhe pedi que começasse por onde se deve começar, ou seja, pelo princípio, ela cumpriu: "Em 2012, descobri que tinha um cancro de pulmão". E eu, que perdi há dois meses um grande amigo com esse tipo de cancro, e que tenho outro amigo na luta contra esse mesmíssimo cabrão, senti a mão falhar-me no caderno, a letra a ficar mais fraca, a respiração suspensa. Houve ali um momento de choque que tive de superar, confesso, agarrando-me ao facto de ela o ter descoberto há quase 6 anos e estar ali, viva e com excelente aspecto, a conversar comigo.

Cristina Coelho da Silva Alves tem 51 anos. Professora de Desenho e Geometria Descritiva A. Casada, mãe de três filhos.

Era Agosto e estava de férias quando, ao passar creme depois de mais um dia de praia, sentiu um nódulo grande no pescoço. Filha de um médico, cirurgião, soube logo que não vinha de lá coisa boa. Depois de consultar o "Dr. Google" disse ao marido: "Temos aqui um problema. Tenho um cancro. Ou é pulmão, ou é um linfoma ou é estômago." Como em 2009 tinha tido uma hemorragia pulmonar e tinha andado a ser seguida no hospital até Novembro do ano anterior, descartou de imediato o pulmão. Por outro lado, como a avó paterna tinha morrido de cancro de estômago, achou logo que era por aí. 

Faltavam 10 dias para acabarem as férias. Era Agosto, mês de pausa para a maioria dos médicos. Apesar de nuvem negra que lhe pairava por cima, e com o pragmatismo que a caracteriza, decidiu continuar no Algarve, a aproveitar o tempo de sossego que lhe restava. No dia 3 de Setembro, uma segunda-feira, entrou no IPO do Porto de onde saiu com um diagnóstico mauzinho: tinha um adenocarcinoma pulmonar no estadio III B. Foi sozinha de táxi para casa. Ou melhor, não foi sozinha. Foi com a sua sentença, que tinha peso e corpo e dimensão praticamente palpável. "Sentia uma pena profunda de mim própria. Cheguei a casa, naquele processo de auto-comiseração, e precisei de ruído. Liguei a televisão, estavam a dar notícias, e a primeira coisa que ouvi foi que um camião se tinha despistado, em Lisboa, e colhido numa esplanada mãe e filha. Uma tinha morrido e a outra estava em estado crítico no hospital. E foi aí que pensei: 'com que direito é que eu estou aqui a sentir-me miserável? Aquela pessoa estava numa esplanada e morreu sem poder dizer aos que ama que os ama, sem poder dizer que odeia aqueles que odeia, sem poder “arrumar a casa", sem poder rasgar os seus diários (coisa que eu tive a oportunidade de fazer), sem sequer poder lutar? Eu posso fazer isso tudo!' E a partir desse momento não voltei a sentir mais pena de mim. Arregacei as mangas e fui à luta."

Quinze dias depois começava a fazer quimio e radioterapia, além de uma alteração radical na alimentação que implicou cortar todos os açúcares, inclusive os alimentos que, ao entrarem no nosso corpo, se transformam em açúcar (massa, arroz, pão branco, etc). Cortou o cabelo como a Christine Lagarde, ela que até então sempre o tinha usado comprido, e pediu ajuda ao marido para dar a notícia aos filhos. Estaria presente mas a palavra "cancro" seria dita por ele. Pelo menos esse primeiro embate, porque ela sentia que não era capaz. E assim foi. O marido disse aos três filhos, então com 15, 16 e 19 anos: "A mãe está com um cancro no pulmão" e a seguir, passada a primeira colisão, ela tomou as rédeas do tema sublinhando: "Mas isto é para curar. Quando virem a mãe em mau estado lembrem-se que é dos tratamentos e o cancro vai estar muito pior. Não é a mãe que tem um cancro! Nós temos cancro e vamos ficar bons!"

Também aos pais foi o marido, na presença de Cristina, que iniciou a conversa. "Eu sou filha única e nenhum pai merece ouvir que um filho tem um cancro. Foram uns heróis, aguentaram-se e nunca me mostraram dúvidas ou incertezas na minha recuperação."

Cristina não poupa nos adjectivos para se referir ao marido. Que foi incrível, que nunca a deixou sentir-se sozinha, ou feia, ou alvo de pena. Que sempre lhe disse que estava linda mesmo quando chegou a vestir o 32 e tinha aquela cor amarelo-esverdeado: "Eu estava um lixo mas ele fazia-me sentir a mulher mais linda da vida." Mas também elogia a atitude dos filhos, que se organizaram para dar um pouco de descanso à mãe (considerada lá em casa como um verdadeiro general), que nunca baixaram as notas, que entraram todos na universidade durante este terramoto que abalou a família, com médias de 19,7, 19,6 e 17 valores. E, claro, os pais, que passaram por aquilo que nenhum pai ou mãe devia passar: o medo, o absoluto pavor de poder ver um filho partir antes de si, essa violentíssima quebra naquilo que é a ordem natural das coisas.

Durante as sete semanas em que fez ao todo 35 sessões de radioterapia e sete de quimio nunca foi à cama. Houve uma pausa de 2 semanas, e foi-lhe administrada uma dose plena de quimio. Nessa noite caiu na cama e durante três dias não conseguiu levantar-se sem auxílio. Os vómitos, as tonturas, a fraqueza. Em três ou quatro dias perdeu cinco quilos. Depois conseguiu estabilizar e após mais duas semanas de pausa foi-lhe administrada a última dose plena de quimio. "Aí o corpo já conseguiu aguentar pois tinha sido previamente medicado para o efeito."

Mas durante as sete semanas de rádio e quimio concomitantes (5 sessões de radio e uma de quimio) chegava a casa e obrigava-se a fazer pão ou um bolo especial. Sempre se arranjou, sempre se pôs bonita, sempre se maquilhou. Manteve sempre o espírito positivo, não com esforço, mas naturalmente. "Sempre que conseguia ia aos Salesianos do Porto, a casa onde lecciono há mais de 23 anos. Para os alunos não me verem careca e tal, ia durante a hora das aulas directamente para a sala dos professores. Levava uns bolinhos ou salgadinhos e conversava um bocado, até para mostrar que talvez o desfecho pudesse ser diferente do de uma colega nossa - e das minhas melhores amigas -, que tinha falecido há pouco tempo com cancro do pâncreas."

O desfecho foi diferente. É claro que um doente de cancro sente sempre a sua finitude mais próxima do que alguém que simplesmente sabe que é finito mas não pensa muito no assunto. Um doente oncológico fala de "sobrevida". Não de vida, propriamente. Cristina teve o seu diagnóstico há 5 anos e meio. Tinha 7% de chances de sobreviver. E ei-la ali, na Leitaria Quinta do Paço, a desfilar beleza e confiança e garra para levar à frente uma petição que criou e que todos deviam assinar.

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E então que petição é esta, que já conta com mais de 18 mil assinaturas?

"Uma das coisas que sempre me meteu confusão foi esta coisa de termos alguém a dizer: 'então agora vai voltar ao trabalho'. Eu nunca precisei disso. Ao fim de 9 meses estava a trabalhar, mal senti que tinha condições mínimas. Porque amo o que faço, porque é essencial para a minha sanidade e realização. Comecei a trabalhar pouco antes do mês de Julho, altura em que as aulas já tinham terminado, e achei que podia ir-me ambientando devagarinho, preparando o ano lectivo seguinte. Depois fui de férias e em Setembro, quando as aulas começam, é que eu percebo que aquilo era dose. Quem faz doses maciças de quimio e rádio sabe o estado em que fica a memória, a lentidão com que ficamos a processar as coisas. Durante algum tempo esperei que os efeitos colaterais passassem. Mas não passam. Alguns atenuam, outros não."

Cristina podia dar-se ao luxo de não trabalhar, se quisesse. Com uns cortes aqui e ali, a família havia de sobreviver. Mas... e quem não pode? E quem tem de voltar às 40h semanais, por vezes em trabalhos que não se coadunam com a nova condição do trabalhador, seja porque são muitas horas de pé e há um cansaço que não passa, seja porque é uma actividade que implica movimentos que afectam o corpo que já não é o mesmo?

Num impulso, decidiu então criar uma petição que diz:

"Os tratamentos no combate ao cancro são por norma agressivos e deixam lesões que mais tarde se vêm a declarar, estas variam do tipo de cancro, tratamento e condição física do sujeito. Assim esta petição pede que:
I- Seja concedida a todo o sobrevivente oncológico, que tenha sido submetido a tratamentos de quimioterapia e ou radioterapia, uma redução no tempo de serviço, seja este trabalhador do sector público ou privado, para as 30 horas semanais no máximo, sem qualquer penalização no salário do trabalhador e sem penalização para a entidade empregadora, ficando a cargo do Estado cobrir a parte do salário em causa.
II- Seja concedida a todo o sobrevivente oncológico que tenha sido submetido a tratamentos de quimioterapia e ou radioterapia a possibilidade de se reformar com 30 anos de serviço ou 60 anos de idade no máximo, sem penalização."

Mas não se limitou a criá-la. Procurou nas redes sociais todo o tipo de insitutição, associação, organização, agrupamento, colectividade que tivesse muitas pessoas. E enviou. Para grupos de mães, motards, religiosos, políticos, desportistas, leitores, ranchos folclóricos. Queria chegar ao maior número possível de pessoas para que a petição pudesse ser discutida na Assembleia da República. E conseguiu. No dia 31 de Janeiro, Cristina vai à Assembleia da Repúblicaa uma audição na Comissão de Trabalho e Seguranca Social, com a Deputada Sofia Araújo, relatora da Petição, e onde estarão deputados representantes de todos os partidos, explicar a razão que a levou a criar este pedido. Vai lembrar que a lei está desadequada. Que há cada vez mais sobreviventes de cancro (felizmente) e que querem voltar a trabalhar. Que é útil que voltem. Mas que é importante também protegê-los. Porque um doente oncológico deixa de ter uma vida e passa a ter uma sobrevida. E, dependendo evidentemente dos casos, pode ter uma sobrevida muito bem vivida mas também pode ter uma sobrevida com sequelas que não são despiciendas.

Quando lá estiver, na audição, Cristina vai explicar que, entretanto, com o amadurecimento e em reuniões com vários médicos e representantes de doentes, crê que o certo será que a redução do tempo de serviço esteja em linha com a especificidade de cada caso. E vai ainda tentar alertar para o importantíssimo (e tão descurado) papel do cuidador. 

Ela tem a porta aberta. Agora é aproveitar para fazer mudanças na casa. E, do que conheci, creio que não podia estar em melhores mãos esta tentativa de fazer justiça por aqueles - tantos (e cada vez mais) - que sobrevivem a um cancro, com tudo o que isso tem de bom, mas de duro também.

 

Vamos assinar esta petição? Quantos mais... mais força tem.

Deixo ainda a nota da Cristina: "Neste momento todos podemos abraçar esta causa, que é de todos nós, assinando e divulgando a petição, mas também escrevendo o seu testemunho  na qualidade de sobrevivente oncológico, podendo assim também ter uma voz ativa neste processo. Bastará escrever o nome, número de cartão de cidadão, idade e profissão. Situação profissional. Tipo de cancro, data de diagnóstico e tratamentos realizados. Efeitos colaterais e sequelas que afetam o seu rendimento e produtividade num dia de trabalho , ou se teve de se reformar antecipadamente. Quais as adequações no posto de trabalho que usufruiu. Não mencionar nome da empresa. Enviar esse testemunho para kikaalves@sapo.pt. Este será enviado para a Comissão de TSS XIII com o autor do testemunho em CC."

 

ASSINAR A PETIÇÃO AQUI 

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