Mudar de Vida #6: Susana Amira
Estão a ver um automóvel a fazer inversão de marcha, chiando os pneus, e seguindo depois viagem pela via contrária? Assim é esta história. Ou, se quisermos outro paralelismo, menos rodoviário: estão a ver a água e o fogo? A protagonista deste “Mudar de Vida” começou por ser água. Hoje é fogo. Assim mesmo, sem tirar nem pôr. Susana Moraes, 39 anos, mudou de tal maneira de vida que até o nome levou uma volta. Hoje é conhecida por Susana Amira (princesa, em árabe).
Comecemos então pela água, que foi o início de tudo. Susana Moraes, nascida e criada em Lisboa, sempre foi uma menina atinada, boa aluna, adolescente sem devaneios. Quando chegou o momento de escolher um curso (porque o “canudo” era uma inevitabilidade a que nem lhe passaria pela cabeça escapar), não soube bem o que fazer. Era boa a tudo, e quando se é bom a tudo fica difícil fazer escolhas. A maior parte das amigas seguiu para Gestão, ela optou por Economia por pensar que talvez fosse mais abrangente e lhe desse mais oportunidades. Além disso, tinha o sonho de acabar com a pobreza e a exclusão social (quem nunca?) e, por isso, especializou-se em Economia Social. “A minha ideia era destruir o sistema por dentro”, explica com uma gargalhada de quem já perdeu a inocência há muito.
Assim, quando terminou o curso, Susana começou a trabalhar em gabinetes de consultoria na área social, onde fazia estudos para caracterizar as populações desfavorecidas e encontrar medidas para quebrar esse ciclo de pobreza. Estava tudo a correr como previsto: ia mesmo mudar o mundo e combater a miséria e a injustiça social.
Só que não. Os levantamentos que fazia não tinham repercussão prática, acabavam por não evoluir para uma real mudança, e foi então que as suas convicções de que ia fazer a diferença começaram a esmorecer. Se calhar não ia. Se calhar não valia a pena. E foi então que a menina inocente virou mulher.
Acabou, em 2001, a aceitar emprego na área financeira, algo que sempre havia rejeitado, cruzes canhoto! Onde? Num dos centros nervrálgicos da finança: a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Ali encontrou um ambiente "composto por números e gráficos". O oposto do que sonhara. Passou por vários departamentos, teve muitas funções. Não nega que "em termos intelectuais era estimulante". No final, fazia parte de alguns grupos internacionais que supervisionavam a bolsa e que a obrigavam a viagens mensais. "Era o que mais gostava. Não só pelas viagens como por ir aos centros de decisão, e ficar a conhecer formas diferentes de trabalhar. Todos os meses tinha uma reunião em Paris, Bruxelas, Londres, Amesterdão, etc. Isso foi muito bom."
Paralelamente, Susana tinha uma paixão por dança oriental e pela cultura árabe que nem consegue precisar a origem. Sempre disse que havia de ir a Marrocos com o primeiro ordenado e assim foi. Em 1999 foi pela primeira vez a Marrocos e foi como se tivesse chegado a casa. "Os mercados, os cheiros, os sabores, as músicas... era como um regresso a algo que me fazia todo o sentido." Nessa altura, porém, não havia em Portugal muita informação sobre onde aprender danças orientais. Foi só em 2002 que encontrou uma escola e foi aprender a dançar. "Apaixonei-me logo na primeira aula. Não sei explicar mas senti que aquilo fazia parte de mim."
Continuou sempre a dançar, como hobbie. Mas a paixão, em vez de esmorecer, crescia. Inscreveu-se num curso de árabe na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e esteve dois anos a aprender Língua e Cultura Árabe. "O meu maior interesse era perceber as letras das músicas que dançava para melhor as interpretar." Em 2008 concorreu para um casting de um professor egípcio que ia fazer espectáculos em Portugal e foi seleccionada. A família ia ver os espectáculos dela com a complacência que os comuns têm pelos excêntricos: "Lá está ela com esta mania dos árabes. De onde virá isto?" Susana sorri ao lembrar: "Eles foram ver e acharam muita piada. Acharam o máximo. Mas - claro - só acharam tudo isso porque eu era uma Economista a trabalhar na CMVM."
Em 2010 dá-se o clique fatal. Susana Moraes vai pela segunda vez ao Egipto (já tinha viajado também para a Tunísia, a Jordânia, para Marrocos várias vezes). Objectivo da viagem: ter aulas intensivas de dança. 16 dias. E é nesse ano também que uma das suas colegas a convida para fazer parte de um grupo de dança profissional e para dar aulas. Ela, completamente apaixonada, aceitou. "Ou seja, em 2010 eu era a senhora doutora durante o dia, e era a dançarina à noite. É preciso sublinhar que a área financeira é uma área muito conservadora. A maior parte das pessoas veste fato e gravata ou tailleur cinzento. De maneira que eu fazia isto no maior secretismo, como se fosse uma coisa errada ou proibida. Sentia-me cada dia mais prisioneira na CMVM porque sentia-me mais feliz do que nunca a dançar, porque sentia que tinha finalmente descoberto a minha vocação, e porque tinha a certeza de que era por ali o meu caminho."
Foi assim que a decisão foi tomando forma. "Pensei: não quero passar mais 10 anos da minha vida aqui, quando tenho lá fora algo que eu adoro. Sempre fui muito romântica e sempre acreditei que se fizermos as coisas com amor e com verdade dá tudo certo. Ora, se eu sentia aquela paixão tão grande, tinha de lutar para conseguir concretizá-la." Num acesso de coragem (dirão uns), de loucura (dirão outros), Susana Moraes chegou a acordo e saiu da CMVM. E da água surgiu o fogo. E a Susana Moraes dava lugar à renascida Susana Amira.
Na família, a decisão foi acolhida com choque e escândalo. Falaram-lhe do perigo de trocar o certo pelo incerto. "Estavam preocupadíssimos, e eu percebi. Era legítimo. Mas tive de lhes dizer: errei na minha vocação, mas mereço ser feliz agora."
Susana não lastima os anos de "erro". Na verdade, não é assim que os vê. "Foi um processo por que tive de passar. Foi útil. Ainda hoje é, quando tenho de gerir a minha vida de profissional por conta própria. Fez sentido e não me arrependo. Tornou-me na pessoa que sou hoje e as coisas acontecem no momento em que têm de acontecer. Foi complicado ter a aceitação da família. Acho que hoje estão todos conformados e apoiam-me incondicionalmente. Mas sim, acho que ainda têm uma secreta esperança de que isto me passe e eu volte a ter um emprego 'sério'."
A mudança de vida trouxe-lhe instabilidade financeira mas uma felicidade e realização que nunca havia sentido. Sim, o facto de não ter filhos ajudou. "Se calhar, se tivesse filhos, não poderia fazer isto. Ou então fazia na mesma, porque era quase um grito cá dentro. Como se finalmente estivesse a ser fiel a mim mesma. Talvez fosse importante passar essa mensagem aos meus filhos. Mas também seria aterrador a perspectiva de falhar, tendo pessoas a depender de mim. É uma incógnita, mas também não importa muito." O que importa é que, ainda que sem dependentes a cargo, Susana deu o passo. Do certo para o incerto. Do sério para o excêntrico. Da água para o fogo.
Hoje dá aulas em várias escolas e tem cerca de 50 alunas. Vê-la a dançar, a interpretar, a vestir o fato que a transforma é como assistir à transformação de uma crisálida em borboleta. "A dança oriental está muito ligada ao feminino, ao resgatar da essência feminina. E eu quero, com a dança, dar o meu pequeno contributo para que as mulheres se aceitem como são, para que gostem de ser femininas, que se permitam. É uma redescoberta do corpo e uma partilha do feminino. Quando as minhas alunas aprendem a dançar e vestem aqueles vestidos cheios de brilhos sentem-se poderosas. Aparecem-me muitas vezes mulheres com uma baixa auto-estima, maltratadas, cheias de fragilidades e a dança é extremamente terapêutica. Além disso, é uma excelente forma de fazer exercício físico e de nos divertirmos."
Susana Amira já fez muitos espectáculos e tornou-se a única bailarina portuguesa a participar numa grande produção de Hollywood sobre a vida do faraó Tutankamon. "Vi um casting na internet, enviei vídeos e fotos e fui seleccionada. As filmagens decorreram em Marrocos e eu ali estive, ao lado do Ben Kigsley! Foi uma experiência incrível!"
A qualidade do seu trabalho foi distinguida com o Prémio de Excelência Artística 2014 atribuído pelas Instituições de Artes, CEMD e Literarte. E não só. Em 2015 foi seleccionada para integrar o prestigiado Ballet Internacional Munique Neith de Barcelona, dirigido pela bailarina Munique Neith.
"A minha paixão é cada vez maior. À medida que vou amadurecendo torno-me melhor bailarina. A dança é uma expressão de sentimentos, é onde me liberto, é onde me sinto livre. À medida que vou amadurecendo tenho mais experiências para partilhar através da dança. Mais histórias, mais feridas, mais alegrias. A dança é muito mais do que técnica. É alma. Ora, a minha alma é muito mais cheia agora e estou hoje muito mais à vontade para a entrega que a dança implica. E é essa entrega que pode arrepiar e emocionar quem assiste. É essa a magia. A magia que me fez trocar uma vida por outra e todos os dias agradecer por isso."
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