Mudar de vida #23: Nuno Lanhoso
Se tivesse de escolher um título para este texto, que resulta da entrevista com Nuno Lanhoso, seria qualquer coisa como: "O homem que não queria deixar fugir o tempo". Ou então apenas "Tempo". Este é um homem com uma muito clara noção da voragem dos dias, com uma lucidez precoce de que o tempo é como um pedaço de terra, que se esboroa entre os nossos dedos, se não o tratarmos como se fosse uma preciosidade. Porque é.
Nuno Lanhoso tem 30 anos, nasceu no Porto, e sempre quis ser médico. Garante que nunca sentiu pressão familiar nesse sentido, apesar de ser filho de médicos, neto de médicos, sobrinho de médicos. Talvez a pressão tenha sido apenas subliminar, ou então foi apenas um movimento lógico, quase óbvio, natural.
Começou por entrar para Medicina Dentária (as médias para Medicina são o que se sabe) mas preferiu sair e ir estudar espanhol para se candidatar a fazer o curso em Barcelona. E assim foi. Saiu de casa da mãe aos 18 anos, rumo à capital da Catalunha, onde ficou até aos 26 anos. "Foi a melhor experiência da minha vida. Partilhei casa com dois colegas, que se tornaram dos meus melhores amigos, um que conheci na matrícula, o outro no metro. O curso foi extraordinariamente difícil, a coisa mais difícil que já fiz, mas não me entreguei a ele do modo missionário de que se fala. Estudei muito mas também me diverti muito."
Nuno não estava particularmente feliz nos dois primeiros anos do curso. Muito teóricos, densos, a deixarem pouca margem para fazer mais do que só estudar. Até que descobriu o Bar Mediterrâneo, onde ia ouvir música ao vivo. E, um dia, talvez embalado por uma cerveja a mais, perguntou como podia fazer parte do leque de músicos. Sabia tocar guitarra, aprendeu sozinho aos 14 anos, como tantos, para ficar bem aos olhos (e ouvidos) de uma miúda: "Tinha visto a maneira como a rapariga de quem eu gostava na altura olhou para o meu amigo, que sacou de uma guitarra e começou a tocar, na minha festa de aniversário. Escusado será dizer que nunca mais o convidei. E fui aprender a tocar."
No Bar Mediterrâneo, marcaram-lhe então um teste e ele, no dia marcado, entrou no bar, deu meia volta, e tornou a sair. Tímido, faltou-lhe a coragem que a cerveja lhe tinha dado, dias antes. Ou isso ou talvez ele soubesse, lá no fundo, que entrar por aquela porta significava entrar num caminho sem volta (mas isto, claro, poderão ser floreados literários). Certo é que os responsáveis compreenderam o momento de fraqueza, e deram-lhe uma segunda oportunidade. Nuno tocou e cantou e acabou por ficar como um dos músicos do bar. Tinha 20 anos e estava a estudar para ser médico.
A vida ganhou, então, outro colorido. Os colegas de casa diziam que Nuno estudava nos intervalos da música. Era mais ou menos isso. "Eu estudava ao mesmo tempo que eles, para que, quando eles fizessem uma pausa, eu pudesse tocar e cantar, sem os incomodar. À noite, sempre que possível, ia ao bar. Ou para ouvir ou - melhor ainda - para tocar. E o meu percurso académico até melhorou, porque eu retirava dali um prazer que o curso não me dava."
Quando acabou o curso, aos 26 anos, Nuno foi fazer o ano comum no Algarve. "A minha média de fim de curso não me permitia concorrer ao Porto, e como tínhamos casa no Algarve, achei que era uma boa solução. O meu plano era estudar também alemão, no Algarve, e depois ir para a Alemanha fazer a especialidade em Medicina Estética. Só que a vida tem a mania de se meter nos nossos planos e aconteceram duas coisas: por um lado apaixonei-me pelo estilo de vida algarvio - uma vida com imensa qualidade de vida, praia, natureza, bom tempo; por outro lado, descobri o circuito de bares e hotéis com música ao vivo."
Nuno começou então por tocar nos bares mais duvidosos de Portimão, evoluindo para outros menos dúbios. Acabou a tocar num afamado hotel de 5 estrelas e ganhava mais em duas horas e meia por noite, todas as noites, do que no trabalho no hospital. A páginas tantas, acabou mesmo a ganhar o dobro, por vezes mais. "Sentia que aquilo era estranho. Eu era tão feliz a tocar e a cantar, que quase não parecia justo que me pagassem. Ou seja: eu sempre toquei, em casa, sem que ninguém me pagasse, e continuaria a fazê-lo, de borla. E, de repente, ali estava eu, a fazer aquilo de que gostava e a ganhar mais do que no hospital. E isto é muito revelador daquilo que nos incutem a vida inteira: a mensagem é que temos de trabalhar para ganhar dinheiro para nos divertirmos, se tivermos tempo! Eu estava a fazer as duas coisas em simultâneo (a ganhar dinheiro e a divertir-me) e ainda me sobrava tempo!"
Por essa altura, deu-se outro acontecimento que se juntou ao que parecia ser uma teia do destino para o fazer mudar de vida: "Estava a trabalhar no hospital quando conheci um médico de 30 anos que, de aspecto, estava totalmente acabado. Falámos um bocado sobre a vida dele e o retrato não podia ser mais angustiante: trabalhava 70 horas por semana, ganhava menos do que eu a tocar, e como tinha sido pai há pouco tempo ainda trabalhava ao domingo por fora, para que a soma fosse suficientemente digna. Ao sábado, único dia livre de que dispunha, acabava a dormitar no sofá, extenuado, sem força nem vontade para fazer mais nada. Quando ele acabou de falar, pensei: 'eu não quero isto para mim.'"
Aliás, aquele cenário não era novo. Nuno cresceu a ver a falta de tempo dos pais, ambos médicos. Não será despiciendo, de resto, esse seu contacto próximo com a falta de vagar na construção da sua vida, neste tomar de consciência daquilo que queria para si mas, sobretudo, daquilo que, definitivamente, não queria.
Seja como for, ainda que a vida sacerdotal dos médicos não lhe fosse de todo estranha, foi aquela conversa com aquele cirurgião que espoletou a granada que já estava na sua mão. " Tive a conversa com ele em Maio, despedi-me em Junho.
Na véspera avisou os pais. Ambos fizeram o que haviam feito toda a vida: se é o que queres, é porque deve estar certo. O pai talvez tenha mostrado uma maior renitência. Tanto assim que, em Setembro, foi visitá-lo ao Algarve, aproveitando para o ir ouvir tocar. "O meu pai nunca me tinha ouvido. E quando me reencontrou, no final da noite, disse que percebia. Que o meu olhar se modificava completamente quando estava ali. E mesmo a questão do tempo, da vida que eu tinha. Disse mais: 'no teu lugar fazia o mesmo'."
Depois de um ano a tocar e a cantar no Algarve, amealhou dinheiro para fazer o mestrado em Medicina Estética, em Barcelona. Ia à universidade de 15 em 15 dias, no primeiro semestre. No segundo semestre ia uma vez por mês. Cansativo, mas exequível. E depois disso trabalhou, no inverno, numa clínica de implantes capilares no Porto: "Nessa altura costumava dizer, meio a sério meio a brincar, que era médico no inverno e músico no verão." Uma espécie de formiga e cigarra.
Uma parte da conversa que teve com o pai, porém, ficou a bailar-lhe na memória. Quanto tempo tencionava tocar covers em bares de hotel? Mais 5 anos? Mais 10? Até à reforma? Foi então que percebeu que estava na hora de dar o próximo passo. Pegou em todos os seus originais (escreve canções desde os 16 anos) e pagou do seu bolso a gravação num estúdio. A seguir, enviou para várias agências e ficou à espera. A maior parte não se dignou sequer a responder, outras disseram apenas que não estavam interessadas.
"Foi duro. Achava que aquilo era bom. Tinha posto de lado a Medicina para me dedicar à música e agora ninguém reconhecia valor àquilo? Não foi fácil e fiquei ali uns dias a bater mal. Mas depois... pensei que tinha duas opções: ou voltava para a Medicina ou tentava outra vez. Porque não saía da minha cabeça esta ideia: se já é um prazer tão grande tocar e cantar músicas que não são minhas para outras pessoas ouvirem, o que será ter uma plateia cheia de gente que está ali especificamente para ouvir o que eu escrevi, o que tenho para dizer? A adrenalina que isso deve ser... até me estou a arrepiar!"
E então sentou-se a escrever de novo. E sentiu que o fazia muito melhor. E usa, até, uma boa analogia, para descrever esta espécie de depuramento: "É assim como uma torneira de uma casa antiga. Quando a abrimos, a água que sai é amarela e não se deve beber. É preciso deixar correr um bom bocado, até aparecer água límpida. Acho que foi isso. Espero um dia olhar para trás e achar que esta água ainda era amarelada. Será bom sinal. Mas, para já, foi considerada suficientemente potável para ser bebida. Ainda não sei se será engarrafada mas... já se bebe. E isso já me deixa muito contente."
Nuno Lanhoso refere-se ao contrato assinado com a agência Sons em Trânsito, em Setembro de 2020, depois de ter enviado a segunda leva de originais, assim como ao single que acaba de lançar há duas semanas. Chama-se "Nem Desgosto de Amor" e é o prelúdio de um álbum que sairá no final do ano. Até lá, está previsto o lançamento de um segundo single. O músico-médico está nas nuvens e nem sabe como reagirá quando escutar a sua canção na rádio. "Até podes ter um acidente. O que vale é que és médico", brinco eu. Ele ri-se. "Preparei-me a vida toda para esse momento."
Para o que não estava preparado era para a avalanche de emoções que estão ligadas ao seu agenciamento e ao lançamento de um single para o mercado. Uma delas foi conhecer um dos seus grandes ídolos nacionais: "Ouvir o Pedro Abrunhosa dizer bem da minha canção foi avassalador." Não deixa de ser curioso que um dos ídolos deste homem que corre atrás do tempo tenha um álbum (o segundo, de 1996) justamente com o título "Tempo". Talvez não haja - mesmo - coincidências.
Esta foi a primeira entrevista do músico, a dar os primeiros passos na vida artística de forma oficial. Aproveito para o tranquilizar: não há-de ser mau prenúncio isto de dar a primeira entrevista a um blogue com o nome "Cocó". Afinal, sempre ouvi dizer que se deseja muita m*rda aos artistas quando se quer que tenham sorte. Por isso, Nuno, só pode ser bom sinal.