Histórias da Quarentena #4
Hospedeira rima com pasteleira... e com guerreira também
Magui era assistente de bordo mas a Covid-19
obrigou-a a alterar o plano de voo.
Agora, descobriu outras rotas, e está a planar de felicidade
Quando era pequena sonhava andar nas nuvens. Bom, não exactamente assim, que isso todos os miúdos sonham. Magui queria andar nos aviões, prestar assistência aos passageiros e, ao mesmo tempo, ir conhecendo o mundo, coleccionando carimbos no passaporte e aventuras na memória. Cresceu, fez a licenciatura em Turismo e Eventos (sempre de olho no seu destino), candidatou-se a uma companhia aérea, entrou, evoluiu, coleccionou carimbos e histórias. Ganhou mundo. Tornou-se chefe de cabine. Mas (que diacho, tem sempre de haver um mas), a vida de sonho tinha uma nódoa, uma mancha que começou por ser pequena (no início das paixões até os defeitos parecem qualidades) mas que, com o tempo, principiou a crescer e a tornar-se um enorme borrão. Lá diz o ditado: Não há bela sem senão.
Era bela, a vida de Magui, mas tinha o senão de a afastar do seu país durante 23 dias por mês. Apenas 7 dos 30 dias eram passados por cá, com tudo o que isso implicava: saudades da família, saudades dos amigos, dificuldade de assentar arraiais. E quando foi pedida em casamento, corria o ano de 2019, o senão tornou-se o elefante no meio da sala. Era preciso mudar as coisas, até porque as coisas já tinham - elas mesmas - começado a mudar.
Em 2020, Magui despediu-se da companhia aérea onde já trabalhava havia 3 anos. Apenas e só por causa da desproporção de dias passados em terras lusas, tudo o resto corria de feição. Mas as raizes são onde são, e quando há desejos de formar uma família fica difícil cultivar o nomadismo. Inscreveu-se numa outra companhia, onde teria de fazer uma formação e, depois do exame, assinar contrato. Já se começa a desenhar o desenlace disto, verdade? Faltava uma semana para o exame final (e respectiva assinatura do contrato) quando foi declarado o Estado de Emergência que mandou toda a gente (ou quase) para casa. O formador de Magui despediu-se do grupo com um esperançoso "Até já". Mas já lá vão 4 meses e este continua a ser um até já sem fim à vista.
Nos primeiros tempos, Magui não estava - como praticamente nenhum de nós - a ver a fotografia completa. Era como se a objectiva estivesse apontada apenas para uma parte, e essa parte até tinha o seu encanto: os dias passavam devagar, havia tempo de sobra para a família, um tempo que já nem se lembrava de ter. Magui fazia o que quase toda a gente fez: bolos. E pão. E mais bolos. E mais pão. Os dias - tantos dias - foram passando e a objectiva fez um grande plano. O retrato final não era assim tão bonito. Sim, havia mais tempo, havia conversas até tarde, havia bolos e piadas para espantar o medo desse vírus de que se falava por todo o mundo. Mas, ela ia casar em 2020. Tinha acabado de comprar uma casa, tinha feito um empréstimo bancário. Com a agravante de não ter emprego, nem qualquer subsídio porque tinha sido ela a despedir-se da companhia aérea anterior (e ainda não tinha assinado qualquer novo contrato).
Os bolos que Magui fazia, recorrendo ao livro de receitas da família, eram tão bons que desapareciam num piscar de olhos. E num piscar de olhos ela fazia nascer outro. Até que, um dia, recebeu um ultimato dos pais e dos irmãos: "Chega! Nem mais um bolo cá para casa". Não lhe cheguei a perguntar a razão para a exigência, mas suponho que a balança familiar tenha tido o seu quê de responsabilidade. Foi assim que Magui começou a exibir os seus dotes culinários na sua página de Instagram. Primeiro só para amigos, mas bem depressa para quem quisesse adoçar uma tarde, um final de refeição, qualquer hora do dia, na verdade, porque adoçar calha sempre bem quando a vida vai amarga.
E daí surgiu a dúvida: "E se?" Maria, a irmã mais velha de Magui (28 e 25 anos, respectivamente), não esteve com falinhas mansas: "Se queres mesmo fazer isto a sério... faz. Não suporto pessoas que ficam pelo 'e se'." E assim foi. Magui não tinha grande jeito para as redes sociais e Maria, que manteve e mantém o seu emprego, começou a ajudar. De partilha em partilha, de gosto em gosto, a página numinstante.mg parecia ter fermento. De repente, havia Bolos de Iogurte, Panna Cottas, Tartes de Amêndoa ou Brownies a sair sem parar do forno lá de casa. A mãe de Magui e Maria (e Francisco, 22 anos) estava entre a incredulidade e o terror: o que tinha acontecido à sua cozinha? Havia farinha, açúcar, chocolate por todo o lado. A Bimby apitava finais de programas cada vez com maior frequência, o calor espalhava-se pela casa aumentando a temperatura, o perfume a bolos inebriava todos os que tinham implorado por uma trégua na doçaria. Mas as encomendas não paravam. E Magui e a irmã chegaram a acordar muitas e muitas vezes às 4:30 da manhã para conseguirem dar conta de todos os pedidos. "O forno lá de casa leva um bolo de cada vez. E para dar vazão a todas as encomendas era preciso ocupar a cozinha o dia inteiro. Imagine a minha mãe e os almoços no meio daquilo tudo! Acho que ela estava a dar em doida!" As duas irmãs revezavam-se e trabalhavam quase 24 horas por dia. "Muitos dias houve em que não íamos à cama. Nem sei como não estragámos a cozinha dos nossos pais". Mas numa felicidade inimaginável.
Entretanto, o crescimento do negócio implicava que tivessem uma cozinha certitifcada. Uma coisa é uma brincadeira para família e amigos, outra coisa é começar a ser um trabalho a sério, de pessoas que não conhecem a Magui nem a Maria de parte alguma, desconhecidos que contratam os seus serviços. Andavam à procura quando descobriram um espaço minúsculo em Campo de Ourique, com cozinha. Os arrendamentos eram de curtíssima duração mas as irmãs conseguiram um contrato de Julho a Setembro. E assim nasceu a Pop Up Store Num Instante, na Rua Correia Teles.
Magui e a irmã levaram de casa uma estante para guardarem caixas e utensílios, levaram a Bimby e outros artefactos, e têm conseguido dar muito mais despacho às encomendas com o forno industrial que a cozinha tem ao dispor. Entram todos os dias às 6h da manhã (como vivem em Oeiras, significa que acordam todos os dias às 4:30/4:45) e fecham a loja às 18h. Os clientes podem optar por ir buscar ou pagar uma taxa de entrega, que elas levam onde for pedido. As caixas têm todas o autocolante com a imagem da marca, há cartõezinhos com mensagens, tudo tem um aspecto mimoso e quem recebe os bolos ou doces sente-se mimado, não apenas pelo recheio mas também pelo invólucro. Afinal, não é à toa que se diz que os olhos também comem.
Magui acredita que os pais estão orgulhosos por terem visto que ela soube dar a volta a uma situação complicada. Além disso, os pais puderam constatar que têm duas filhas que se dão às mil maravilhas, tão bem que até estão a trabalhar juntas. Há poucas coisas melhores para uns pais do que isso. O noivo também está contente. O casamento foi adiado mas a futura mulher já mostrou estar à altura do compromisso que se avizinha, mal o Covid permita. Nada que surpreenda qualquer um dos que a conhecem. Afinal, esta é a mesma Magui que se tornou assistente de bordo, cumprindo assim um sonho de infância. Esta é a mesma Magui que sempre serviu a comunidade enquanto membro da Associação Guias de Portugal. Quem a conhece sabe que não é menina de se deixar abater por uma Covid qualquer. Agora, o seu objectivo é voltar a voar, mantendo o seu doce negócio em terra. Pode ser que o "até já" da nova companhia não tenha sido um "adeus" e que seja possível regressar às nuvens, porque esse sonho mantém-se intacto. O que aconteceu entretanto é que nasceu um novo. Mas quando se é como a Magui, pode muito bem ter-se, em si, (como dizia Pessoa) todos os sonhos do mundo. Boa viagem, Magui! Bons voos - no ar e em terra.
IG: numinstante