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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Fui (finalmente) à faca - Parte I

Os meus amigos e pessoas próximas sabem como há muito, muito tempo que não lido bem com o meu corpo. Ah, e tal, vivemos numa época em que proliferam os hashtags que prometem mulheres reais e libertadas das opressões sociais com o corpo e mais não sei o quê; é verdade que até já há manequins rechonchudas para combater a obsessão com os corpos magros; até há campanhas baseadas em "mulheres reais". Tudo certo. Mas isto é uma cena que vem de dentro. Que ou se sente ou não se sente. E se é verdade  que conheço muitas mulheres redondinhas que lidam perfeitamente com o seu corpo, vê-se que existe ali um match perfeito entre o corpo e a alma, e não anda para ali tudo à batatada, também não é menos verdade que conheço muita gente que tem verdadeiro ódio ao seu corpo. E depois há os que nada fazem para combater esse ódio e também há os que até fazem alguma coisa mas... nada parece ser suficiente.

Vamos lá ver: eu tendo a oscilar entre ser uma boa menina, evitar as batatas fritas e encher o prato de salada, fazer desporto à bruta (esta é a boa menina), e depois esticar-me à grande para comezainas bem temperadas e ainda melhor regadas, sem mexer o rabo do sofá (esta é a má menina). Matem-me. Gosto de viver, gosto de comer, gosto de beber. A genética? Uma trampa: vai-me tudo para a barriga, de tal modo que costumo dizer que tenho corpo de aranha: pernas e braços magros e depois aquela maldita carcaça. 

As quatro cesarianas deram cabo do resto. Fiquei com uma espécie de medusa agarrada a mim, um bicho mole pendurado no meu baixo ventre, tão pendurado que é costume ser designado por "avental". Ora, este avental impedia-me, por exemplo, de usar calças com uma camisa por dentro. Tão simples como isto. Uma t-shirt por dentro, uma camisola fininha, nada. Já nem falo de vestidos justos (e mesmo os vestidos mais ou menos normais tinham sempre de levar uma cinta), já nem falo de biquíni, que abandonei há anos. 

Ora, claro que quando emagrecia muito, a medusa emagrecia comigo. Ficava mais pequena, sem dúvida. Mas... nunca por nunca me largava! No meu pico de forma, em que treinava uma média de três vezes por semana (cerca de 150km/200km por mês), quando me estava a preparar para a minha primeira maratona, a minha medusa reduziu. Porém... manteve-se sempre por perto. E eu continuei sem usar uma camisa por dentro das calças. E a embrulhar-me na toalha quando saía do mar. E a cruzar os braços em frente ao corpo quando era convidada para falar em público ou na televisão. E a vestir o roupeiro inteiro antes de sair de casa e - tantas vezes - sentir que nada, mas mesmo nada iria conseguir disfarçar aquilo que ali tinha e que, pertencendo-me, não me pertencia. Tudo isto apesar de comer e treinar como uma atleta de alta competição (acreditem, já fui uma, e aquilo que fiz para essa maratona aproximou-se muito desse tipo de preparação). E, sim, muitas vezes acho que desmotivei de treinar porque... se a medusa não me abandonava nem com aquele esforço todo, para quê continuar? Não sou uma Patrocínio, intrinsecamente apaixonada por exercício, e por isso, sim, acho que muito do abandono de uma vida mais activa teve que ver com esta coisa que nunca me largou.

Durante muito tempo, adiei a cirurgia por causa dos filhos. Queríamos ter um quarto filho, esperámos que ele viesse, demorou a vir, lá veio. E, como somos malucos, demos por nós a pensar como seria giro se viesse um quinto filho. O desejo não era o mesmo que tínhamos sentido para o quarto, é verdade. O Mateus parecia uma peça do puzzle que nos faltava e, quando chegou, sentimos que o puzzle estava pronto. Mas, passado algum tempo, achámos que podia ser giro fazer um upgrade ao puzzle, e deixámos passar o tempo, a ver se acontecia ou não. Não aconteceu. 

Trabalhar o tema "fim dos filhos" na minha cabeça, na nossa cabeça, não foi fácil. Se é um facto que nos sentimos preenchidos com esta família querida e numerosa que temos, também custava muito pensar "acabou-se, nunca mais vamos ter aquela explosão de felicidade ao sentir o nosso recém-nascido nos braços". Tudo isto careceu de tempo. De reflexão. De muita conversa. Interior e com o homem que escolhi e que me escolheu.

Trabalhar o medo de morrer foi o passo seguinte. Sou hipocondríaca e, além do mais, fui jornalista muitos anos e encontrei, pela minha profissão, casos terríveis. Fiz inclusivamente uma reportagem no Diário de Notícias sobre pequenas (e supostamente insignificantes) cirurgias que correram mal. Assim, não fica mais fácil. 

Bom, por ser hipocondríaca, por gostar muito de viver e da minha vida, e por ser talvez excessivamente informada foi essencial saber o máximo sobre o médico certo a escolher. E demorei. Li muito. Ouvi testemunhos. Pesquisei. Fui a uma consulta na Up Clinic, que já seguia via Instagram, e achava que tinha uma grande pinta. Acreditem: os olhos também comem. E entre entregarmo-nos a um médico que nos recebe num gabinete esconso e com humidade no tecto, e escolhermos um que nos recebe numa clínica linda de morrer, para onde podia perfeitamente mudar-me no dia seguinte, com marido, filhos e mobília (parece mesmo uma das Casas onde a Cocó Não Se Importava de Morar), é muito mais provável que optemos pela segunda opção.

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Tinha amigas que já tinham sido operadas pelo Dr. Tiago Baptista Fernandes e quis lá ir conhecê-lo. Interessava-me perceber se, além de bom médico (que tinha várias fontes a confirmar que era), também era um bom ser humano. Na consulta não deu propriamente para lhe tirar a ficha de personalidade e avaliar as ondas electromagnéticas da bondade, mas pelo menos era simpático e acessível e descomplicado (e giro, vá, não que isso interesse muito, até porque na maior parte do tempo da nossa relação, um de nós está a dormir). Falámos de preços e não é barato. Mas se fosse barato eu desconfiava. Afinal, estamos a falar de uma cirurgia de 6 horas e meia, em que há uma série de gente envolvida, e em que um médico especialista abre uma barriga, aspira gordices, cose abdominais que estão de costas voltadas há anos, distantes e zangados, remove pele em excesso, e ainda reduz maminhas... malta, não há milagres. O total ficava em cerca de 14 mil euros. Tive uma atenção porque estou a trabalhar com a clínica, como em breve poderão ver, mas paguei - eu sei que isto é uma coisa que causa muita comichão a muita gente, o facto de "nós" nunca pagarmos nada. Descansem, pois, neste caso.

Marquei a data. Nem quis acreditar quando marquei a data. Passei o verão a falar disso, a pensar nisso. A temer, a querer, a pensar de novo. Decidi que, além da abdominoplastia iria fazer também uma redução mamária. Bem sei que anda meio mundo a pô-las e eu a querer tirar, que raio de vida que nunca ninguém está contente. Mas lembro-me de ser adolescente e enfaixar as mamas para disfarçar o tamanho, e nunca comprei outro soutien que não fosse redutor. Não tenho assim um exagero mas nunca gostei delas grandes.  E já que ia estar anestesiada... então que reparássemos também aqui algo que nunca apreciei em mim.

Só que a vida é assim mesmo, uma caixinha de surpresas, e entretanto veio um cancro em alguém muito próximo. E a primeira data que tinha ficado marcada, para 13 de Janeiro, teve de ser adiada porque essa pessoa tinha uma sessão de quimioterapia no dia 16 e eu queria lá estar. E, manifestamente, em três dias não iria estar em condições para acompanhar a minha pessoa na químio. Por isso, e porque avisei com a devida antecedência, adiámos para dia 18 de Fevereiro. Fiz imensos exames para que o médico tivesse a certeza de que estava tudo bem para ser operada: mamografia, ecografia mamária, análises, electrocardiograma, ecografia abdominal, raio x ao tórax, pulmões e coração, raio x à coluna. Ainda tive mais uma consulta com o Dr. Tiago, porque já tinha passado bastante tempo desde a primeira e basicamente queria ir lá dizer-lhe que tinha medo. Ele riu-se mas não desvalorizou. Quem é que não tem um bocadinho de medo de ir para um bloco operatório? Mas transmitiu segurança, explicou que faz disto com a mesma regularidade com que eu... limpo rabos a filhos, mais coisa menos coisa. Depois... depois foi preparar tudo para que os dias em que estivesse off fossem o menos difíceis possível. Combinei com a minha mãe que ela levaria os miúdos à escola no dia da cirurgia e nos dias seguintes e pronto. Estava mesmo a acontecer.

Na véspera... novo revés. Se fosse acreditar em sinais do universo, em calhando tinha desistido. A minha mãe adoeceu e fiquei ali num impasse, sem saber o que fazer. Liguei ao meu pai mas, de repente, a meio do telefonema, percebi o quão absurdo tudo aquilo era: ele teria de vestir o Mateus, teria de dar o pequeno-almoço ao Mateus e à Mada, teria de levar ambos a duas escolas diferentes. Não é que não desse para fazer, mas tudo combinado com apenas horas de antecedência ia ser o caos. Comecei a panicar e, quando desliguei, lavada em lágrimas (estava emocional, nervosíssima e sou naturalmente dada a chorar), disse ao Ricardo: "Prefiro que fiques com os miúdos e trates tu de tudo do que estar eu lá, à beira de entrar para o bloco, em transe com o que se estará a passar em casa". 

E assim foi. No dia 18, terça-feira, apanhei um Uber para o Hospital St Louis, no Bairro Alto. Ia eu, a minha mochila, e o meu enorme, enormíssimo pavor. Entrei para o quarto, deram-me a bata azul para vestir, umas meias de compressão, uma touca verde. Daí a pouco entrou o Dr. Tiago. Parecia que era dia de festa! Todo ele animação! Vinha fazer os desenhos no meu corpo, como se fosse um alfaiate a desenhar o tecido que iria cortar por medida, ou um escultor perante a matéria-prima a que vai dar forma. Os olhos, o sorriso, a felicidade em cada risco, em cada traço, é algo que não vou esquecer. É algo que só acontece quando realmente se ama o que se faz.

Ele saiu, despediu-se com um "até já!" e a seguir vieram buscar-me. Quando entrei no bloco, fiquei a ver aquela gente toda à minha volta e o pavor transformou-se em pânico. O que é que estou aqui a fazer? E se eu morro? E se eu ficar com a minha barriga em avental, porra, qual é o mal? Lágrimas, lágrimas, lágrimas. O anestesista, que era uma simpatia, olhou para mim e disse que já ia dar-me uma coisa que me ia acalmar. Acordei 6 horas e meia depois (ou sete, não sei bem). 

 

(to be continued...)

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