Estar chateado como um peru não é crime
Já estamos fechados em casa há duas semanas e três dias.
Tenho de confessar que estive óptima durante duas semanas. Tão óptima que nem o dizia a ninguém, nem mesmo cá em casa, como se fosse uma vergonha (e até era) sentir-me tão bem perante um cenário tão catastrófico. Mas, em minha defesa, explico: adoro ter a casa cheia (ou não a tivesse enchido de filhos) e, de repente, estar aqui onde sempre estou (porque desde que o senhorio do escritório que eu e as minhas amigas arrendámos decidiu quase triplicar o valor tivemos de desistir do The Woffice e voltar cada uma à sua casinha) com toda a minha gente à volta era divertido, animado, um desafio (e adoro desafios). Ainda por cima, esteve quase sempre bom tempo, o que permitiu almoços prolongados no terraço (sorte a nossa, eu sei), conversas, pôr séries em dia, ajudar alegremente na realização de trabalhos da escola, etc. Tudo na maior.
De repente, nem sei bem precisar como foi, baixou em mim a negra nuvem que tinha visto espalhar-se por muitas das pessoas que conheço. Houve um dia em que não me apeteceu levantar da cama, arrastei os pés até à cozinha, passei o dia a suspirar e a olhar pela janela. Acho que foi no fim-de-semana, porque constatei que ser fim-de-semana, ao fim de 15 dias de reclusão forçada, era igual a ser outro dia qualquer. E que aquela alegria costumeira de ser sábado era só parva porque ser sábado, ser domingo, ser feriado ou ser quarta-feira... era a mesmíssima merda.
Sim, talvez tenha sido isso. Isso e o tempo ter mudado. Começou a chover. Recolhemos ao interior da casa, fechámos as janelas, o ruído passou a ser mais difícil de suportar, as ideias de entretenimento começaram a deixar de ser assim tão boas, a arrumação da casa deixou de ser feita ao som de canções e passou a ser realizada ao compasso de palavrões, começaram uns a discutir com os outros. O trabalho reduziu, e com isso veio aquela sensação de que... caraças, isto vai doer e vai doer a sério.
Agora, tenho tentado descobrir o meu contentamento inicial, sem grande sucesso. Combato o pó, a roupa que se acumula (suja, lavada, por passar, e passada mas por arrumar), a loiça, a desarrumação. O Ricardo também está irritável, qualquer coisa faz com que a tampa lhe salte, a desarrumação põe-o maluco, também ele combate papeis, brinquedos espalhados, tralha. O Manel, que viveu dois meses em plena liberdade (um mês na Ilha do Príncipe e um mês em Nova Iorque) vê-se agora aqui fechado, sem ver a namorada, os amigos, ninguém. Claro que isto se aguenta, claro que aguenta, claro que há quem esteja bem pior. Uma pessoa até se sente mal por dizer que está desanimada, mas a verdade é que também se sente mal por dizer que está animada, hoje tudo tem o potencial de ser mal visto.
Posto isto, acho mesmo que devemos ir deixando sair a pressão da panela, para ver se ela não rebenta. Ir esperneando de vez em quando, chorando se for preciso, admitindo que se está triste, que há um certo desalento, que começamos a usar pijama mais vezes do que gostaríamos. Claro que é importante ir também contrariando, encontrando estratégias para reencontrar a felicidade em pequenos nadas, mas estar triste, revoltado, frustrado, chateado como um peru na véspera de Natal não é crime! Hoje parece ser, mas não é. E não só não é crime como é importante, é normal, é humano!