Conta-me #9
"Temos de falar", disse-me ela. Confesso que pensava que esta era uma daquelas frases que só tinha saída nos filmes. De tal maneira que, mal a escutei, apeteceu-me traduzi-la para inglês, "we need to talk", mas achei que ela estava com uma expressão demasiado séria para achar graça. Não sei porquê, talvez já o esperasse, mas assim que ela disse "temos de falar" percebi que a minha vida estava à beira do precipício. Faltava só o encostozinho final para que se desfizesse em mil pedaços, no fundo do desfiladeiro. Fechei os olhos, cerrei os punhos e os dentes, voltei-me para ela com o ar mais descontraído e surpreendido que consegui e perguntei, desejando ter ouvido mal: "Temos?"
Tínhamos. Ou melhor, ela tinha. Tinha que me falar no Artur. Tinha que me dizer que lhe custava muito toda a situação, que eu tinha sido sempre um marido incrível, que era um excelente pai, que não havia razão de queixa, mas. Há sempre um "mas" que se segue a um "temos de falar". E o "mas" na minha vida tem nome. Chama-se Artur.
Durante meses ouvi-a falar com entusiasmo no Artur. O novo chefe. Tão engraçado, sempre espirituoso, a fazer rir o gabinete inteiro. "Olha só esta piada que o Artur hoje contou". E eu olhava. E ouvia. E esboçava um sorriso forçado. Não sei porquê, talvez fosse um sexto sentido, nunca achei graça ao Artur, nunca me consegui rir com a vontade com que ela se ria, "não é a melhor piada de sempre?", perguntava ela a limpar as lágrimas. É, é, respondia eu com o sorriso mais esforçado que conseguia montar.
O Artur. Sempre solícito, a trazer o café à sua mesa com um brigadeiro. "Já viste a minha sorte, ter um chefe assim?" Então não?, retribuía eu. O Artur que a tinha convidado para almoçar, não apenas a ela, claro, mas à secção inteira. O Artur e os seus olhos verdes. O Artur e o seu perfume inebriante. Não, talvez ela não o tenha dito assim, mas falou qualquer coisa sobre o perfume, sou capaz de apostar. O Artur que lhe dava boleia no seu carro alemão com estofos em pele e tantos botões no painel que mais parecia um avião. "Às vezes até acho que vai levantar voo". Pois.
E a Paula cada vez mais distante, mais calada. A Paula sempre de olhos no telemóvel, a levá-lo consigo para toda a parte, até mesmo para a casa de banho, nunca se esquecendo dele em lado algum. E eu a convidá-la para sair, para um programa, um jantar a dois, sem os miúdos, um cinema a seguir, e ela sempre cansada, sempre aborrecida, sempre longe.
Acho que no início dei o desconto. O Artur lá devia ter os seus encantos e estar casado não causa cegueira, de maneira que compreendi o entusiasmo, sangue novo num gabinete bafiento era caso para deixar o mulherio inquieto. Eu próprio já tive as minhas paixonetas, coisas platónicas evidentemente, mas que diabo, sou homem! Assim de repente lembro-me da Anabela, por exemplo. Que mulherão. Quando entrou pela primeira vez na empresa julguei que ia ter um ataque cardíaco. Suores frios, uma pontada no peito, tonturas, as pupilas dilatadas. Lembro-me do Aníbal vir ter comigo e dizer "Estás bem, Carlos?" E eu sem conseguir balbuciar uma palavra, "Estás lívido, homem! É preciso chamar um médico?". Ainda hoje nos rimos disso. Que brasa, a Anabela. Mas pronto, foi fogo de vista. O passar dos dias tornou-a menos vistosa, os defeitos começaram a vir ao de cima, e o coração amainou. Como ela, outras. Mas nada de duradouro, nada de sério, nada que pusesse em causa a Paula e a nossa vida em comum. São 24 anos de casamento. Cinco de namoro. Dois filhos. Jamais me passaria pela cabeça outro cenário que não fosse o de envelhecermos juntos.
Mas. Lá veio o mas. O Artur. Quando finalmente decidi procurar a figura no Facebook compreendi ainda melhor o arrebatamento. Tipo alto, cabelo grisalho, olhos verdes, boa pinta. Engoli em seco mas não fiz mais nada que isso. Continuei apenas a ouvi-la descrever, uma após outra, as aventuras do Artur, as piadas do Artur, as boleias do Artur. Fui parvo. Deixei-me ir e quando percebi era tarde. Quando percebi estava a escutar o tão temido (e tão dolorosamente cliché) "Temos que falar".
E assim foi. 24 anos de casamento, cinco de namoro, dois filhos, tudo por água abaixo. Depois do "Temos que falar", ela falou no Artur e no quão apaixonados estavam, eu ouvi calado e quieto, ela levantou-se enxugando as lágrimas, fez umas malas apressadamente, e saiu deixando-me num misto de choque e confirmação do que, na verdade, já intuía. Talvez não pensasse que tivesse coragem de o fazer pelos miúdos. Mas os miúdos já estão crescidos, ambos na faculdade, com as suas próprias vidas. Se fossem mais novos era capaz de não ter coragem mas assim... Assim foi só dar-me o encostozinho que faltava para me atirar do precipício.
Estou sentado nesta cadeira há horas. Sei-o porque cheguei eram seis e meia e agora já a escuridão invadiu toda a cozinha. Não tenho fome, não tenho sede, não tenho nada para fazer. O Aníbal diz-me "Tens de sair, Carlos. Tens de vir com a malta, pá. Arranjar umas gajas." Dá-me vontade de rir. Gajas. Sou fiel à Paula há 29 anos, nem consigo imaginar-me com outra mulher, nem mesmo quando me escondo perto do serviço dela para a ver chegar no carro-avião do Artur. Da primeira vez nem a reconheci. Mudou o cabelo, está mais magra, parece mais nova, toda maquilhada. Toda sorrisos, toda encostos, toda... nem sei quê. A minha Paula. Tão feliz, apesar de tudo o que a separação lhe trouxe: os meus pais deixaram de lhe falar, a mãe dela deixou de lhe falar, os filhos deixaram de lhe falar. Eu não acho bem, já lhes tentei explicar que isto são coisas que acontecem, que ninguém controla o coração, mas ninguém quis saber. Eu também já não quero saber. Ela própria não parece muito interessada no assunto.
Perguntam-me se não tenho vontade de partir a tromba ao Artur. Tenho. Então não? Uma pêra bem dada naquele focinho sorridente. Sonho com isso praticamente todas as noites. Não foi uma vez nem duas que acordei com a mão esmurrada por ter batido com ela em cheio na parede. Mas depois falta-me a coragem. O mais certo era o Artur acabar comigo em três tempos, obrigando-me a engolir o escassíssimo orgulho que ainda me resta.
É evidente que tenho que me recompor. Tenho de recomeçar. Tenho 50 anos, ainda posso ter uma vida, ainda posso ter, como diz o Aníbal, "umas gajas". É evidente que sim. Talvez comece por vender a casa, porque ainda durmo e acordo na cama onde dormíamos e acordávamos juntos, porque ainda janto na mesa onde jantávamos juntos, porque ainda a vejo em todas as assoalhadas. É. Talvez tenha de começar por aí. Assim arranje coragem e forças. Para já, sento-me horas nesta cadeira, em silêncio, à espera que o resto do dia passe. À espera de me esquecer. Dela, dele, dos dois. De mim com ela. De mim sem ela. De mim com este vazio. À espera de recomeçar.