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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Conta-me #8

Na árvore de Natal há vários presentes. Um sei que é da mãe, outro sei que é do pai, os outros não faço ideia. Quando abrir o da mãe e o do pai tenho de tentar fazer o mesmo sorriso, nem mais, nem menos. Talvez devesse abrir os presentes uma noite destas, antes do Natal, para me preparar. Tenho medo que, com a surpresa, haja um presente de que gosto mais e não consiga disfarçar a felicidade, enquanto que ao abrir o outro posso ter uma desilusão e notar-se. Depois estou frito. Quer dizer, não é que me aconteça nada, a mãe não se vai zangar comigo nem nada, mas eu é que não quero desiludir nenhum dos dois. Não quero que um deles sinta que gostei mais do presente de um do que do outro. Acho que não é por mal mas sei que eles tentam ganhar-me nos presentes. Se um compra não sei o quê, o outro vem e compra outra coisa melhor. Ou que eu pedi. Ou que sabem que eu queria. Não me posso queixar, que fico a ganhar, né? Mas às vezes cansa-me um bocadinho esta coisa de estar sempre a mostrar que gostei muito de um, que gostei muito do outro... às vezes só queria que me deixassem em paz.

Como agora. Este Natal vou passar a noite aqui em casa da mãe e no dia 25 vou para o pai. A mãe chora sempre muito quando eu vou, mesmo que a noite tenha sido com ela. Quando a mãe chora tenho sempre vontade de chorar e de não ir. Mas não posso fazer isso, senão quem ficava triste era o pai. Também sei que a mãe chora por causa da nova namorada do pai. A Luísa é querida, dá-me festinhas e brinca comigo mas eu sei que não devia gostar dela. Também a acho linda, assim mesmo tipo actriz de cinema, mas nunca digo isso à mãe, mas é que nem pensar. No outro dia a mãe zangou-se comigo e ralhou-me muito. Eu estava tão zangado que lhe disse que a Luísa é que devia ser minha mãe. Assim que acabei de dizer senti um frio no estômago e calor nas bochechas e uma espécie de tontura e vontade de vomitar, pensei que ia morrer. A mãe também. Ficou paralisada a olhar para mim, os olhos cheios de lágrimas, e fechou-se no quarto a chorar. Senti-me muito mal porque não é verdade, a mãe é a mãe. Mas podia ralhar menos, estar menos vezes zangada comigo e com as pessoas todas. A Luísa está sempre feliz. Tem os labios muito bem pintados e cheira tão bem...

Não gosto quando os pais discutem. Sempre que o fazem é por minha causa, o que faz com que me sinta mesmo mal. Penso que se não tivesse nascido talvez eles não discutissem, talvez ainda estivessem juntos e fossem felizes. Às vezes penso que se não me tivessem tido a mim mas outro miúdo qualquer - ou uma miúda, quem sabe? - as coisas fossem diferentes. Pode ter sido a minha maneira de ser que os irritou, que os pôs um contra o outro, que deu cabo de tudo. O psicólogo diz que não é nada disso mas o que é que ele havia de dizer? Os pais pagam-lhe para me fazer sentir melhor, não pior.

No outro dia os pais discutiram muito porque o pai me trouxe muito tarde para casa. Foi mau porque nos tínhamos divertido tanto... tínhamos jantado fora e ido a uma feira e rimos até doer a barriga com parvoíces que o pai faz e diz. Ainda vínhamos a rir quando a encontrámos, à porta, com aquela cara que está mesmo a dizer que vai haver chatice. Estava furiosa, deu-me um puxão para dentro de casa e começou logo a gritar com o pai, que ele era sempre o mesmo irresponsável, que não servia para nada, que era um péssimo pai. Ele começou por ter calma, acho que estava mesmo espantado com a reacção dela, mas depois passou-se e gritou muito com ela. Não gosto que a mãe grite com o pai mas gosto ainda menos que o pai grite com a mãe. A voz dele é grossa e eu fico com medo. Nessa noite - como noutras noites - encolhi-me num canto com as mãos nos ouvidos, à espera que aquilo acabasse. Depois da porta bater com força já sabia que era a minha vez de ouvir. Quando está zangada a mãe é bruta comigo e magoa-me quando me empurra para me despachar a vestir o pijama e para lavar os dentes. Não me dá beijinho de boa noite e eu sei que também tive culpa porque devia ter pedido ao pai para nos despacharmos.

As férias também nem sempre correm bem. Oiço-os a quererem os mesmos dias de férias comigo, ou é muita pontaria ou fazem de propósito, não sei. Discutem pelos dias, porque no ano passado foi um, porque há dois anos foi o outro, e eu sinto-me outra vez partido ao meio. Não gosto de ficar partido ao meio. Quando se queixam um do outro a mim, não sei o que hei-de dizer. Digo sempre que sim, aos dois, porque quero que fiquem contentes e que achem que estou do lado deles. Mas parece que não posso estar do lado dos dois. É impossível, como uma traição. Quando vou de férias com o pai, a mãe chora mais do que nunca e abraça-me como se eu não fosse voltar. Faz a mala com as minhas piores roupas, aquelas de que eu não gosto nada, mas também não faz mal porque a Luísa já tem lá em casa um roupeiro inteirinho cheio das roupas de que eu mais gosto. Depois, quando falamos ao telefone a mãe faz imensas perguntas, o que fizemos, onde fomos, se estou bem. Eu estou bem, muito bem mesmo, mas não posso dizer isso com essa verdade toda. Digo que estou normal e, se possível, faço um ar de seca para ela pensar que não está a ser assim tão bom. Quando a Luísa se ri e a mãe ouve - a Luísa ri muito alto -, pergunta logo "de que é que essa parva está a rir? De mim?" Eu respondo baixinho, para ninguém ouvir, que não, claro que não é dela, alguma vez? E é verdade. A Luísa nunca se ri da mãe. Por que riria? Há coisas que eu não percebo. 

A mãe às vezes quando estamos em casa pergunta-me, assim do nada, como é a casa do pai, como é a Luísa, como é que eles se dão, o que é que eles dizem. Eu não respondo muita coisa porque sei que ela não vai gostar de ouvir. A casa do pai é grande, a Luísa é uma das mulheres mais bonitas do mundo, eles estão sempre de mão dada e aos beijinhos, nunca discutem. Respondo à mãe que é tudo normal e depois disfarço, finjo que me lembrei de qualquer coisa para fazer no quarto. Passo muito tempo no quarto. A mãe também não se importa, passa os dias triste e acho que prefere não ter de falar comigo. 

Tenho pena que a mãe e o pai se tenham separado. Lembro-me de quando éramos felizes, os três. Lembro-me mesmo. Eu não sabia que éramos felizes mas agora sei que sim. Depois o pai começou a chegar tarde a casa, começaram as discussões, até que acabou tudo. Tenho pena porque assim eu não tinha de passar por isto. Não tinha que me sentir partido ao meio. Sempre partido ao meio. Como agora, que estou a olhar para os presentes de Natal debaixo da árvore. 

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 Conta-me é uma rubrica de contos originais (ficcção) escritos por Sónia Morais Santos

 

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