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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Conta-me #3

Foi logo depois do enterro. Caminhávamos ainda com os pés pesados, aquele andar arrastado de quem traz a dor presa às pernas, seguíamos entre ciprestes (sempre os ciprestes) com aquele silêncio condoído de quem traz também a dor agarrada às cordas vocais, e foi então que ela me perguntou:

- Tu sabes que o avô nunca foi mineiro, não sabes?

Engelhei o nariz, franzi o olhar como se me tivesse tornado míope e não conseguisse ver quem me fazia a pergunta.

- Hã?

Chamava-se Manuel Barriga, o meu avô, e viveu toda a sua longa vida na aldeia de Mina de São Domingos, concelho de Mértola, Alentejo profundo. Tinha sido mineiro. Vida dura, passada debaixo de chão. O mesmo chão onde o tínhamos deixado ainda agora, como que um regresso às origens.

Lembro-me de me sentar ao seu colo e de o ouvir contar as histórias de quando ia, com os outros, para os seus dias de escuridão. Acordava às cinco e meia da manhã, todos os dias. A mulher - minha avó - a essa hora já lhe havia feito o pequeno-almoço e a marmita para levar. Beijavam-se longamente porque a minha avó tinha sempre medo de não o tornar a ver. Findo o beijo, ele dava-lhe uma festa na cabeça, e dizia:

- Até já, minha loira.

Todos os dias isto. Como um guião a que tivessem de obedecer.

De seguida, o meu avô Manuel saía para a escuridão da madrugada, que ainda assim era mais luminosa que o negrume da mina.

A mina. Lugar de toupeiras. Cheiro a terra, a cobre, a medo. Gélida pela manhã, um braseiro quando o sol ia alto. Lá dentro, os homens-toupeira sabiam que o sol ia alto pelas gotas de suor que lhes deslizavam cara abaixo, corpo abaixo, acresentando ao cheiro a terra, cobre e medo também o cheiro ácido a calor e a esforço.

O meu avô contava as histórias da mina com uma intensidade dramática, gesticulando muito, levantando a voz, fazendo sons guturais que me povoavam os sonhos e os pesadelos e a infância inteira.

Lembro-me vividamente do relato da derrocada. Os homens todos ali, enterrados vivos, ofegantes, surpreendidos pela terra que os devorava, faminta. Uns ficaram soterrados, os outros, presos numa galeria, fizeram o que o desespero mandou. Uns prantaram-se de joelhos a rezar ("Alguns diziam-se ateus, António! Mas na hora do aperto... ai, na hora do aperto, sabiam as preces de cor!"), outros choravam pelos filhos, pelas mulheres, pelas mães. Poucos se mantinham homens, como antes. A maioria tinha como que regressado a um estado infantil, de uma fragilidade confrangedora. Aos gritos, aos saltos, a pedirem mimo, como numa birra de sono. O meu avô jurava que alguns haviam mesmo diminuído de tamanho ("não era só na altura, António, eles estavam como que reduzidos, mirrados, esvaziados deles mesmos").

- Hã? Como assim, "o avô não era mineiro"?

Dois dias ali metidos, sem saber se os iam conseguir salvar. Defecando no espaço exíguo, comendo nada, bebendo coisa nenhuma, vazios de esperança e de humanidade. Salvaram-se. O meu avô ficou manco de uma perna, a maior parte ficou manca da cabeça, com pesadelos, medos, angústias, choros. Homens para sempre feitos crianças, por culpa da terra. 

- O avô nasceu manco, António. Foi mal de nascença.

- Hã?

Foi então ali, entre ciprestes, que a minha irmã me disse palavras ao início incompreensíveis. O nosso avô nasceu com uma perna diferente da outra. Mais curta, mais estreita, mais fraca. Nunca andou direito, teve sempre de se amparar a duas canadianas para conseguir caminhar. Incapaz, nunca pôde trabalhar. Ainda para mais na mina, único posto de trabalho que a aldeia oferecia aos homens ali nados e criados. Trabalho para homens completos de pernas, braços, de corpo inteiro. De maneira que o meu avô passou a vida inteira a ver os homens passarem de manhã, beijando as mulheres e levando na mão as marmitas preparadas por elas com desvelo, para voltarem ao final do dia, mascarrados e exaustos, com cheiro a terra, cobre e medo. Encontrava-se com eles ao entardecer, na taberna do Arnaldo, para lhes sorver as histórias. Histórias de vidas duríssimas, que ninguém no seu juízo perfeito poderia invejar. E, no entanto, o meu avô daria tudo para ser um deles. Daria tudo para ter também aquela vida dura, feita de escuridão. Porque qualquer negrume seria melhor do que o seu, que era oco, estéril, seco. Inútil. 

Parei, entre ciprestes. Voltei para trás. Ajoelhei-me na campa do meu avô mineiro, limpei as lágrimas, e segredei-lhe:

- Chegaste a casa, finalmente, avô. Descansa.

 

Sónia Morais Santos

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