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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Conta-me #13

Vejo-os na rua e não consigo evitar um sentimento de desprezo. Olho-os e alguns sorriem, com aqueles sorrisos com que a juventude julga presentear os velhos, sorrisos enternecidos, como se um velho fosse um cãozinho ou um gatinho ou um bebé. Impossível não adorar um velhinho, não é?, impossível não adoçar o olhar, semicerrando os olhos, entortando a cabeça, que é aquela forma de arredondar o corpo mostrando empatia, e de seguida atirar o tal sorriso bondoso, ainda que o velhinho tenha sido um crápula do pior durante toda a sua vida. Um filha da puta. Basta chegar a velho, lançar um sorriso reumático e pronto, está liberto e perdoado de todos os seus pecados. Torna-se adorável. Susceptível. Frágil. Impoluto. Balelas! Não fui um crápula mas não sou um cãozinho, um gatinho e seguramente não sou um bebé. A cada sorrisinho idiota que me lançam tenho vontade de responder com um murro em cheio na cara. "O que foi, pateta? Sorris com essa expressão condoída porquê? Porque estou perto de morrer? Porque já não presto para nada? Espera aí dois segundos que já calças as minhas pantufas!"

Estão tão iludidos, pobres diabos! Nos seus carros topo de gama, com as suas pressas, aos seus telemóveis, todos cheios de agendas e almoços e carreiras. Julgam-se imprescindíveis. Acreditam que fazem a diferença, que todos reparam na sua eficácia, nos seus fatos de marca, nas suas mulheres irrepreensíveis, nos seus filhos encantadores, nas suas vidas perfeitas. Ridículos. Ri-dí-cu-los. Quando me sorriem ou quando me perguntam se preciso de ajuda para atravessar a rua, nem sei como me aguento sem largar a rir, rir até ficar sem ar, daquelas risadas que nos fazem bater com as mãos nas pernas para ver se o ar volta aos pulmões, gargalhadas de quem sabe o que eles ainda nem sonham, hilaridade de adivinho. Porque eu sei. Eu sei o que os espera. Eles que me mostram o lado mais adocicado de si, que encontram maneira de contrariar a sua pressa bem sucedida para se dedicarem ao voluntarioso gesto de me ajudar a chegar ao outro lado da estrada, sentem em si a distância de mim, como se fôssemos dois filmes distintos. Realidades paralelas. Eu sou o velhinho, como se tivesse nascido velhinho, como se não tivesse tido urgências, filhos pequenos, agenda cheia, pernas rijas, carreira fulgurante. Sou aquele para quem se sorri, sem se saber se maltrato animais, se bato na minha mulher, se fui um cretino, se sou um psicopata. Eles são os agentes de mudança do mundo. Ah ah ah! Os agentes de mu... desculpem... não consigo parar de rir. Afinal, devia ser eu a sorrir-lhes com aquele olhar piedoso com que me brindam. Devia ser ao contrário. Porque eles é que não sabem, nem sonham.

Perdi quase todos os meus amigos. De todos - e eram tantos! - sobram três. Três. Uns morreram de cancro, outros de enfarte, de trombose, de pneumonias, de quedas, já nem consigo elencar todas as merdas que levaram os meus amigos. Ah, espera, não são três. São quatro, os que restam. Estava a esquecer-me do Pires. Mas também, foda-se, é fácil esquecer-me do Pires. Vou visitá-lo ao Lar duas vezes por ano, o máximo que aguento. Digo "então, Pires?" E ele atravessa-me com o olhar, de tal modo que fico sempre na dúvida se estaremos, afinal, ambos mortos a comportarmo-nos como os espíritos se comportam. Obviamente, já não tenho pais. A minha mulher já se foi há quase seis anos. Os meus filhos são esses gajos dos carros, dos fatos e das pressas. Vejo-os uma vez por mês, nos meses bons. Na verdade, nem sei se esses são os meses bons. As nossas conversas são uma espécie de carimbos que eles põem no livro dos filhos-bem-comportados. Alivia-lhes a consciência visitar o pai, mas não há verdadeiro prazer em estar comigo, o que também percebo, tornei-me uma pessoa com quem não é prazeroso estar. Eles, felizmente, não me sorriem como se eu fosse um cãozinho, mas falta-me a paciência para ouvir os relatos das suas vidas frenéticas, fico invariavelmente a ouvir um blablablablabla de fundo enquanto penso que devem estar quase a ir-se embora para me meter na cama. Olho-os e sinto pena do momento em que se transformem em mim. Nenhum pai quer isso para um filho e, no entanto, é o que nos sucede a todos. Tenho feito um esforço de memória para me lembrar do olhar do meu pai nos seus últimos anos. Será que também me mirava com o mesmo cinismo e pena e arrependimento? "O que é que eu fui fazer? O que te espera, puto..."

Olho para o meu corpo e é como se o tivessem acabado de implantar em mim. Um corpo estranho que alguém aqui pôs sem eu dar conta. Os pés cheios de veias que nem sabia que lá estavam, as unhas amarelecidas e grossas, as pernas que arquearam como se não suportassem mais o meu peso, como se não me suportassem mais a mim, e o meu rabo, em tempos elogiado pelas mulheres da minha vida, é agora uma espécie de derrocada, uma pintura que desbotou. Está deprimido, o meu cú. Como eu, de resto. Já para não falar do meu piço, encolhido, pendurado, a mijar às pingas, sem outro préstimo que não seja lacrimejar tristemente para uma sanita enegrecida. 

Odeio que me tirem fotografias. Quando me mostram o resultado, contentes com o bom aspecto com que ficaram ao meu lado, demoro sempre algum tempo a reconhecer aquele velho com duas bolsas pendentes por baixo dos olhos, dentes encardidos, sulcos pela cara que parecem ter sido feitos por arados. Quem é este? Quem sou eu? Em que pessoa me tornei? Lembro-me de andar na rua e sentir os olhos postos em mim, tive todas as mulheres que quis e até algumas que dispensava, e agora nem sequer consigo vislumbrar uma sombra desse fulano, nada, zero, só ruínas, só cacos, só uma escorrência do homem que fui. E ainda me sorriem? Com aquela ternura que dedicamos aos desvalidos? Puta que os pariu. 

Resta-me o consolo de que chegará a sua vez. A vez de todos. Os apressadinhos, os bem sucedidinhos, os que ainda não sabem mas vão ser devidamente emprateleiradinhos, obrigada, leve lá esta caneta com banho de ouro pela dedicação à empresa mas. Mas? Isso, mas. Vejo os pais a empurrar carrinhos de bebés, gugu-dadá, gugu-dadá, e abano a cabeça. Uma vez por mês, nos meses bons. É essa a tua paga pelos gugus-dadás. Olho para essa gente cheia de afazeres e felicidade na rua e sorrio. Ah, sim! É a minha vez de sorrir. Porque sei o que eles não sabem. Nem sonham! Pobres diabos! 

 

(a rubrica conta-me é uma série de ficção criada pela a autora deste blogue. Podem ler os outros clicando num ícone com o mesmo nome, no topo da página)

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