Clube de Leitura com João Tordo
Foi na quinta-feira, dia 30 de Janeiro, no Brown's Hotel. João Tordo chegou à hora combinada mas pediu desculpa pelo atraso. Se houve atraso foi de um minuto ou dois, pelo que presumo que seja um dos raros portugueses que levam a pontualidade a sério. Mais um ponto a favor. Sentou-se na mesa em redor da qual já estavam 20 pessoas. 19 mulheres e 1 homem. O escritor olhou à volta, sorriu para o único participante do sexo masculino (além dele próprio) presente na sala e exclamou: "Isto é que é um homem de sorte!". Presumia o Tordo que se tratava de um participante habitual. Só que não. Tratava-se de uma sorte de principiante. No caso, de duas sortes de principiantes. No geral, em bom rigor, somos quase sempre mulheres neste clube de Lisboa. No Porto lá vão aparecendo elementos do sexo oposto, mas na capital parece que só o mulherio lê. Fazer o quê?
Foram duas horas de conversa boa. Falámos sobre o livro novo, "A Noite Em Que o Verão Acabou", que é um thriller mas é também um romance, e que teve, entre nós (e, pelo que tenho lido, em Portugal no geral), um enorme sucesso. Na verdade, entre nós, todos os que já lemos dele têm sempre uma excelente recepção: Ensina-me a Voar Sobre os Telhados, O Luto de Elias Gro, Hotel Memória, As Três Vidas, o Bom Inverno, entre tantos outros, que se há coisa que este autor tem é uma capacidade produtiva notável. Ele fala sobre o assunto com aquele despojamento que o torna (ainda mais) interessante: é um trabalho, é disto que vive, é preciso pôr as mãos à obra, com disciplina e rigor. Quando ele saiu, as participantes habituais do clube, que já considero amigas (isto de nos encontrarmos uma vez por mês faz com que sejamos mais regulares umas com as outras do que com muitos amigos que não vemos durante meses ou até anos), disseram que não consegui disfarçar o horror quando ele afirmou que os seus livros têm a parte da escrita e a parte da reescrita, que chega a ser feita 6, 7 vezes (com a ajuda da inestimável Clara, a sua editora). "A tua cara foi impagável!" Deve ter sido. Imagino os meus lábios a descaírem de desânimo, eu que tenho tão pouco empenho para tarefas que se prolongam no tempo, eu que me farto das coisas, eu que me imagino sempre a matar todas as personagens de um romance que me atirasse a escrever pelo simples motivo de me cansar delas. Escrever um romance já me assusta. Agora... reescrever 7 vezes? Sim, consigo imaginar a minha expressão esmorecida.
Detivemo-nos sobre o peso, a profundidade e o desespero que carregam muitas das personagens dos seus livros. A perda, tantas vezes presente, a solidão, o desejo de estar onde não se está (e de, eventualmente, chegados ao destino desejado não encontrar senão vontade de estar, de novo, noutro lugar qualquer), o vazio, a incompreensão, o isolamento. João Tordo crê que é preciso carregar alguma angústia para escrever. E ele carrega-a, como é óbvio para quem lê os seus livros. "Quando me esqueço de mim sou mais feliz". Touché.
Ainda nos rimos quando nos contou que o Hotel Memória se esvaneceu da sua própria memória, que sempre que lhe falam dele acaba a encolher os ombros: não sabe, não se lembra, não sabe bem dizer em que espécie de transe o terá escrito para se ter varrido dos interstícios do seu cérebro. Possivelmente terá sido por se tratar do segundo livro, escrito talvez com a pressão de produzir segunda obra depois da primeira, ora vamos lá ver se és capaz ou se isto foi - de novo - sorte de principiante. Neste caso, claramente não foi. O escritor que começou em 2004 era ainda um embrião do escritor que é hoje, é certo, mas não havia nada de sorte por ali. Só talento e trabalho.
Falámos da bolha que é a escrita, dessa sala que tem uma porta para lá da qual acontece a vida. Para um escritor, ou pelo menos para ele, é essencial entrar todos os dias nessa sala isolada do mundo, ali permanecendo umas boas horas, mas também é fundamental que não se olvide tudo o resto. Quem o faz corre o risco de ficar demasiado enredado em si mesmo e esquecido daquele que deve ser o objecto de estudo de qualquer escritor: a vida, as pessoas, as relações, e o ambiente em que tudo isto acontece.
João Tordo falou-nos ainda de algumas das suas últimas leituras: "Despertares", de Oliver Sacks; "Escuridão Visível", de William Styron; "On Writing", de Stephen King. E acabou a assinar livros e mais livros, apesar de ter um evento familiar para o qual me preveniu aquando da nossa combinação, e de gostar da pontualidade, como pudémos constatar logo à sua chegada. Ainda assim, assinou tudo o que lhe puseram à frente e ainda sorriu para a foto, prova provada de que, apesar de ter a sua sala-bolha de onde saem livros que revelam um escritor maduro e profundo, continua a ter uma belíssima noção da porta e da vida cá fora e dos leitores que gostam ele e já esperam pela sua próxima obra.
Obrigada, João Tordo. Gostámos muito de te ter connosco.



Obrigada, Brown's Hotel!
Obrigada, MultiOpticas!

sonia.morais.santos@gmail.com