Camp Abilities: "Aqui aprendemos que é possível ver sem olhos"
Marta está sentada em cima da prancha. Tem os olhos postos no mar, dir-se-ia que o contempla. E é verdade. Só que não é com os olhos. Marta tem 14 anos e nasceu cega. "Nasci com amaurose congénita de Leber e por isso nunca vi. A vida sempre foi assim para mim." Talvez por isso ou porque os pais sempre a ensinaram a ser tão autónoma como se visse, é fácil esquecermo-nos que Marta não contempla o mar com os olhos, mas com o corpo inteiro. E ainda mais fácil se torna esse engano quando a vemos em cima da prancha, a apanhar ondas, com a destreza que os visuais creem ser só sua, numa arrogância que rima com ignorância. Marta é campeã europeia de surf adaptado e é a terceira melhor do mundo inteiro.
Ao seu lado, na praia do Castelo, há muitos cegos e outros tantos normo-visuais (que serão designados, a partir daqui, apenas por visuais) prontos a experimentar uma aula de surf. Alguns pela primeira vez, outros a repetir. Ao todo são 44 crianças e jovens que participam num campo de férias completamente diferente de todos os outros. Chama-se Camp Abilities Portugal e é uma adaptação de um modelo americano de colónias de férias para jovens com deficiência visual com apoio individual. A diferença é que o campo originalmente criado por Lauren Lieberman em 1996, em Nova Iorque, tem um monitor adulto para cada criança cega. A colónia criada pela AAMA (Associação de Actividade Motora Adaptada) em 2015 tem uma criança visual por cada criança cega. É o primeiro campo do país em que os monitores são crianças e é essa diferença que faz desta colónia um lugar mágico. Não só os miúdos cegos sentem uma maior proximidade com os seus monitores, com toda a envolvência que essa empatia promove, como os miúdos que vêem recebem ali grandes lições que levam para a vida. Dos 44 participantes, 22 são cegos, 22 são visuais. Há 11 rapazes e 11 raparigas cegos; 11 rapazes e 11 raparigas visuais. Os cegos podem repetir a experiência até ao ano em que perfaçam 18 anos. Os outros só podem ir uma vez.
Guilherme, 16 anos, é o monitor da tarde de Abulai, de 13 anos (os monitores mudam duas vezes por dia para que todos se dêem e para que ninguém fique preso a um companheiro com quem não sinta empatia ou, pelo contrário, para que não se formem relações tão intensas que não sobre espaço para novas interacções). Estão ainda na areia, a aprender os movimentos necessários antes de se fazerem ao mar. Pega-lhe na mão, cuidadosamente, e leva-o a sentir a prancha de surf. A superfície, o rebordo, o bico. Explica-lhe os movimentos, conduz o seu corpo pouco hábil levando-o deitar-se, levantar-se, dobrar os joelhos para ficar em posição de equilíbrio. Abulai responde com a cabeça que sim ou que não às perguntas que lhe são feitas. Abulai não fala. Ou melhor, fala com dificuldade mas no campo optou pelo mutismo total. Não proferiu uma única palavra. Rita Costa, presidente da AAMA e mentora do Camp Abilities Portugal, explica que não é o primeiro: "Temos aí outro miúdo que no primeiro campo não abriu a boca, no segundo campo disse umas palavras, e hoje fala pelos cotovelos. Há crianças e jovens que têm pouca interacção, pouco estímulo na vida de todos os dias, e que reagem assim, à defesa." O silêncio como uma espécie de concha protectora.
Na água, Abulai sorri. O corpo, pouco acostumado à vastidão da água, começou por estar retraído, mas foi-se soltando como num regresso a um meio familiar, seguro. Parece um contrasenso, porque o mar é tudo menos segurança e familiaridade. Mas para Abulai e para muitos cegos a sensação de liberdade do mar traz consigo paz e remanso. Abulai desliza pelas ondas até à areia com uma expressão de alegria que já ninguém lhe tira. Ao lado havia miúdos cegos que nunca tinham ido à praia. Claudina, de 15 anos, por exemplo. Depois da aula de surf, Claudina pediu se podia ir ao mar, sem prancha, "tomar banho com o corpo todo". Mamadu, 8 anos, também nunca tinha ido à praia e, ao sentir o mar nos pés, exclamou: "Ah! Mas isto é mesmo muita água! Muita água..."
Nas ondas, Marta mostra como se faz. Os que a podem ver olham-na com espanto e respeito. Os cegos ouvem os relatos sobre os feitos da companheira de campo e alguns hão-de pensar que se ela consegue eles também podem conseguir. "O surf surgiu na minha vida há dois anos. Sou de Viana do Castelo e costumava andar de skate à porta do café da minha mãe. Uns professores do Surf Clube de Viana viram-me e disseram que se sabia andar tão bem de skate podia tentar o surf. Eu, que sempre gostei de desporto, aceitei o desafio. Comecei a treinar e rapidamente fui chamada à Selecção. E foi assim que me tornei campeã." Para quem não sabe, fica a explicação: o surf adaptado é igualzinho ao surf "normal". A única diferença é que, nas provas, o treinador está com os atletas dentro de água, para ser os seus olhos (mas não lhes pode tocar). Tudo o resto é igual. "A minha mãe não consegue ver as minhas provas e fica muito aflita. Mas foram eles, foram os meus pais que me deram toda esta autonomia. Quando eu nasci e eles perceberam que eu era cega quiseram que tivesse as mesmas oportunidades que a minha irmã, que é visual. Sempre fiz tudo: equitação, natação, goalball... sou aluna de mérito e excelência na escola e a minha disciplina preferida é a Matemática. Gostava de ir para Ciências mas, assim como os meus pais me ensinaram que podia ser uma pessoa normal, também me ensinaram desde sempre que não podia fazer tudo, tudo o que quisesse. Ser médica, por exemplo, não está ao meu alcance. Os professores dizem-nos sempre que se tivermos boas notas podemos ser tudo. Nós, cegos, não podemos. Mesmo com as melhores notas. E isso é frustrante. Mas pronto, é a vida. Agora tenho de escolher, dentro da área de Ciências, algo de que goste e que seja simultaneamente possível."
Nem todos os cegos no campo de férias têm a autonomia da Marta. Há aqueles que, nascidos em famílias menos favorecidas, são menos estimulados, há os que são demasiado protegidos porque os pais têm medo do que lhes possa acontecer, há os que, além da deficiência visual, têm outros problemas de desenvolvimento. É também por isso que o autêntico "Tetris" que a equipa de 7 coordenadores faz diariamente, para conjugar pares de cegos/visuais, é tão importante. "É crucial saber 'casar' uns e outros. Um exemplo: se de manhã um visual tem pela frente um cego difícil, pouco autónomo ou mais fechado, tentamos à tarde pô-lo com um cego totalmente diferente. Para que ninguém sinta que isto é mais do que consegue aguentar. Para não ser demasiado desgastante, frustrante", explica Rita Costa.
Mas a chave de tudo está na escolha das crianças que irão ser monitoras. Alguns pais não percebem, julgam que basta querer que os filhos vão, ou que basta os próprios filhos manifestarem o desejo de frequentar o campo. É um bom princípio, sem dúvida. Mas não basta. Há uma primeira entrevista, que pode ser logo eliminatória (ou não), e um teste na piscina. "Os visuais têm de ser mesmo miúdos muito especiais. Não quer dizer que os que não ficam não sejam óptimos miúdos, cheios de qualidades. Mas para fazerem esta colónia têm de ter uma responsabilidade acima da média. Têm de ser generosos, simpáticos, descomplicados e têm de gostar muito de desporto uma vez que este campo é de desporto adaptado. Preferencialmente devem ser miúdos já com experiências várias de outros campos de férias. Os pais às vezes lidam mal com a rejeição dos filhos. Ficam ofendidos, acham que é inacreditável, quem é que eu me julgo para excluir assim miúdos que eles acham perfeitos? Tento explicar. Por vezes é apenas uma questão de maturidade, no ano seguinte muitos estão prontos. Outros nunca estarão."
Os que passam na entrevista nem sempre são bem sucedidos no teste da piscina. Os coordenadores observam o modo como os visuais se relacionam com os cegos no balneário, o modo como oferecem ajuda (ou não), como resolvem problemas que surgem, como o contacto com a intimidade. A sua e a do outro: "Na piscina, cerca de 50% de visuais são excluídos. Uns porque desistem, compreendem que aquilo não é para eles, outros porque falham no teste. Há imensos miúdos que bloqueiam, sobretudo no balneário. Tenho notado que há muitas crianças e jovens com muitas dificuldades na relação com o corpo. Não conseguem expôr-se em frente aos outros e congelam quando têm de ajudar os cegos a vestirem-se ou a despirem-se. Além disto, as actividades na piscina são exigentes, obrigam a uma proximidade e a uma interacção que, tratando-se de estranhos, é vista como intrusiva por alguns."
Vasco tem 14 anos e falhou duas vezes.
Há dois anos foi entrevistado e fez não um mas dois testes na piscina (falhou no primeiro e pediu para voltar). Não ficou. Este ano, foi de novo conversar com a Rita e regressou à água. Conseguiu ser um dos escolhidos. "Achei notável a sua persistência. Um miúdo que falha duas vezes e ainda assim volta é porque tem mesmo vontade. E a vontade, assim férrea, é mais de meio caminho andado." No último dia da colónia, Vasco havia de confessar: "A Rita tinha razão: eu era irresponsável mas ainda bem que entretanto cresci. Achei tudo brutal e mudei completamente a ideia que tinha dos cegos. Antes achava que eles eram dependentes para tudo e agora aprendi que podem ser melhores do que eu em muitas coisas."
A semana de Camp Abilities decorre sempre no início de Julho, na Base Naval de Lisboa, no Alfeite (Almada). A Base, além das dormidas e da alimentação, proporciona baptismo de mergulho com mergulhadores profissionais da marinha, uma experiência num semi-rígido em que os cegos podem navegar o barco, e um workshop de culinária. Todas as restantes actividades são feitas por lá, à excepção do surf, por razões óbvias. E são muitas, feitas em parceria com várias escolas e associações: Judo (Clube Judo Total); Boxe (Associação Jorge Pina); Tiro com Arco (Pepe Tiro com Arco); Capoeira (Arte Pura), Showdown (pingue-pingue adaptado para cegos) e Goalball (Associação Nacional de Desporto para Deficientes Visuais - ANDDVIS), Surf (DuckDive) O CEFA (Centro de Educação Física da Armada) cede os ginásios e os campos exteriores para as actividades desportivas.
O edifício onde estão as camaratas é uma festa permanente. Cada quarto tem 6 beliches, para 4 pares (e um coordenador). São os únicos pares fixos do campo. O companheiro de dormida é sempre o mesmo, por uma questão de logística (não dava jeito andar sempre a mudar de cama e de quarto). Em cima fica o visual, em baixo o cego. Passam lá pouco tempo. Por vezes vão apenas trocar de roupa, vestir algo mais quente, mais fresco, reforçar o protector solar. De resto, vão apenas para dormir. Mentira. As conversas, antes de adormecerem, são muito importantes. É aí que é feita a catarse de tudo o que se viveu. É aí que muita da partilha tem lugar. Nas camaratas, coladas em cada cacifo, estão listas de objectivos de cada participante no campo. A maioria quer conhecer mais pessoas. Muitos cegos manifestam o desejo de conhecer mais visuais. Os que vêem querem aumentar a sua responsabilidade. Os que não vêem desejam aprofundar a autonomia. Uns e outros querem ser melhores e é - também - para isso que estão ali. Encontro duas visuais à volta de Mariana, que pede conselho sobre que roupa vestir. "Esta t-shirt é azul, condiz com os teus calções. Acho que vais ficar mesmo gira." Mariana agradece e muda de roupa. Depois pergunta se o cabelo está bem, ao mesmo tempo que passa ambas as mãos pela cabeça, ajeitando o penteado. Elas garantem que sim e saem, todas juntas, abraçadas e a rir.
O que se sente, todos os dias, em todos os momentos, é o companheirismo entre pares. Não pares no sentido da dualidade programada nesta colónia entre cegos e visuais, postos juntos dois a dois, mas pares no sentido de iguais, semelhantes, idênticos. Afinal, são todos jovens, com idades semelhantes, cujas parecenças são maiores do que as diferenças. Mesmo que os separe a capacidade física de ver e, em alguns casos, a diferença sócio-económica, a raça, a religião, a cor da pele, a língua materna... o que os une é o que une todos os jovens: os mesmos interesses, desejos, as mesmas piadas, as mesmas paixões, ambições, desarrumações, inquietações, até os mesmos medos. O que sobressai é a afinidade, não a dissimetria. E mesmo que no início alguns visuais possam até ter adoptado uma postura de alguma superioridade (não por mal mas porque, sendo detentores de um sentido a mais, talvez sentissem que detinham um poder que estava vedado aos outros, nomeadamente o de serem seus monitores), a verdade é que um dia depois de terem chegado já todos tinham compreendido que o sentido que falta a alguns é compensado pelo desenvolvimento de outros sentidos e capacidades, e que ninguém ali é superior a ninguém.
É giro ver as amizades que se formam, de dia para dia. Entre visuais, entre cegos, e entre uns e outros. Isso e os amores. Afinal, falamos de jovens, o mesmo é dizer, de hormonas, sangue quente, coração pronto a disparar. Há olhares que se cruzam e que são indisfarçáveis a quem vê. E há tons de voz e conversas e toques que são indissimuláveis a quem apenas escuta e sente. São 24 horas por dia durante seis dias, em clima de férias, de descoberta, de felicidade. A intensidade das relações tem outra dimensão do que na vida de todos os dias. E estas são relações que nascem de um gesto único: o de ver a vida com outros olhos.
Jorge Pina já chegou e está no pavilhão, pronto para falar à audiência de crianças e jovens do Camp Abilities, antes de dar início à aula de boxe propriamente dita. Os miúdos sentam-se no chão, ele coloca-se diante deles, e começa a contar a sua história, num tom informal e próximo: "Um dia, perdi um combate de pugilismo e fiquei cheio de raiva. Quando voltei soube que o tipo que me ganhou não ia jogar mais porque se jogasse podia ficar cego. E eu, que estava zangado porque ele me tinha derrotado, disse: 'Bem feito!' Afinal... quem ficou cego fui eu. Aprendi a nunca mais desejar mal a ninguém. A cegueira mudou a minha vida. Fiz várias cirurgias e a última correu mesmo mal. Nunca me revoltei contra Deus. Consegui sempre ter mais força e fé. Agradeci sempre por estar vivo e pelas pessoas que se cruzam no meu caminho. Sabem? Antes de tudo isto tive um passado de drogas e álcool. Muitas vezes andamos iludidos. Há coisas muito melhores do que isso. Eu era pobre, tinha uma vida complicada. Aprendi que é na humildade, é no amor, é na gratidão que somos felizes. Porque essas ninguém nos rouba. Os homens tendem a catalogar, a julgar. Nós podemos ser deficientes mas também somos eficientes em muita coisa! Dediquei-me ao Atletismo, tornei-me atleta paralímpico. Ganhei mais do que perdi. Aprendi tanto! Por isso, acreditem em vocês. Nós conseguimos tudo. Basta ter força de vontade. Basta querer."
O aplauso é geral e é sentido. Há uma força no discurso que vem da verdade de quem a viveu e que passa, como num contágio, para quem escuta, imóvel, cada palavra. Rita Costa tenta sempre ter nestas colónias campeões paralímpicos para darem o seu testemunho. Diz que faz toda a diferença: "Os miúdos cegos sentem que, se aquelas pessoas conseguiram, então eles também podem conseguir. Há uma identifiação e uma projecção. Já tive aqui vários casos de jovens a inscreverem-se em modalidades por terem ouvido o discurso motivador de alguém que aqui veio e por terem experimentado aqui algo que jamais lhes tinha passado pela cabeça experimentar. São depoimentos muito fortes e motivadores."
Depois de ouvirem Jorge Pina, é chegado o momento de praticar boxe. Dois a dois e, alguns, com a ajuda do próprio ex-pugilista. Há risos mas também choro. Bruna oferece alguma resistência a participar em actividades desportivas em geral. Jorge Pina intervém, quer saber o que se passa. Ela diz que não gosta daquilo e o atleta fica diante dela, como se a enfrentasse com o olhar, mas não é preciso ver para lhe sentir a energia: "Não gostas disto? Achas que vais fazer só o que queres na vida?" Ela protesta: "Estou cansada!" O atleta volta à carga: "Estás? Sabes a que horas acordo todos os dias? Às 6h. E deito-me à meia-noite ou mais tarde. E trabalho muito! Sabes porquê? Porque adoro viver! Quero viver o máximo que puder. Estás aqui, com esta oportunidade única de experimentar imensa coisa. Vive-a! Sente-a!" Daí a pouco a miúda já ensaiava os primeiros uppercuts sem qualquer protesto e até com satisfação. Às vezes basta saber falar, explicar, motivar e tudo corre pelo melhor.
Jorge Pina à conversa com Bruna
Vasco e Mariana
Braima e Pedro
Abulai e Madalena
Margarida com a T-shirt mais simbólica do campo, este "Don't Quit" (Não desistas) em letras desfocadas
À tarde, alguns vão fazer o baptismo de mergulho. Outros vão andar de semi-rígido. A experiência de conduzir, para quem não vê, roça o inexplicável. No rio, o militar leva o semi-rígido para fora do porto, para uma zona onde o risco de embate em qualquer outra embarcação seja quase nula. A seguir, passa o volante para um dos cegos e é então que se faz magia. Gabriel roda para a direita, gira para a esquerda. Pedro, um dos visuais no barco (que há-de também experimentar navegar porque a actividade não é só para cegos mas para todos), agarra-se com mais força. Olha-me como que em busca de uma certeza de que tudo correrá bem, cerra os dentes, deixando escapar um sorriso nervoso. O "comandante" da embarcação está a rir com a sensação de ter o corpo a oscilar para a direita e para a esquerda, ao sabor da sua condução. Depois, inclina o volante todo para a esquerda e acelera. Os salpicos batem-nos a todos na cara, a embarcação está toda inclinada e a desenhar círculos na água. Gabriel está a "curtir" os peões que só terá oportunidade de fazer neste campo de férias. Ao longo da sua vida nunca poderá fazê-lo em terra sem pôr a sua vida (e a de outros) em perigo. Na água, em ambiente controlado, é possível. E é emocionante. De novo a água e a liberdade que proporciona. De novo a água-mãe a acolher e a permitir que o corpo "voe".
Noutro barco, Afonso, de 8 anos, que começou por entrar ao colo, apavorado com a insegurança de um meio que não domina, navega fazendo o mesmo tipo de experiência: esquerda, direita, curvas largas, curvas apertadas. Tem um sorriso imenso, os cabelos no ar da velocidade, e o difícil será tirá-lo dali. "Consegui! Fui muito depressa e não tive medo nenhum! Viste? Conduzi muito bem! Foi tão fixe!"
Todas as noites, antes de irem para as respectivas camaratas, há uma cerimónia chamada "Reunião das Flores". Sentam-se os 44 participantes do campo em círculo e todos recebem duas flores de feltro. A ideia é que cada um ofereça as duas flores a dois companheiros e que explique por que razão as entrega a cada um. A energia que se gera é quase palpável. As razões apontadas para se entregar cada flor, o momento de alguma tensão que antecede a escolha dos dois eleitos, o abraço entre quem oferece e quem recebe... Mais: quando há um cego que quer oferecer uma flor a um visual e se trata de um cego mais autónomo, e que portanto quer ser ele a entregá-la (e não a ficar sentado, esperando que o ofertado venha recolher o seu "presente"), o visual escolhido começa imediatamente a bater palmas. O cego só tem de seguir na direcção do som. Esse encontro entre quem avança "às escuras" e o guia sonoro desses passos é tão comovente que é quase impossível segurar as lágrimas. Falamos de crianças e jovens numa idade em que os elogios públicos são parcos, falamos de rapazes e raparigas para quem um abraço em público pode ser um embaraço, um desconforto, ou até um sinónimo de algo mais do que uma gratidão do momento. Mas ali não. Ali há uma genuinidade e um despudor em ser grato que são raros. A reunião das flores é um momento de rever o dia, de agradecer uma ajuda, uma conversa, uma partilha. É o momento em que os melhores guias são destacados, aqueles que sabem a medida certa entre ajudar e ficar a uma distância de segurança, aqueles que não se impõem, aqueles que estão lá sem estarem demasiado lá. Na noite em que assisti à cerimónia, Vasco C. recebeu uma quantidade impressionante de flores, bem como Maria F. e o Thadeus. Um reconhecimento que repetiram outras noites porque se revelaram pares excepcionais. Em relação a Maria, não foi uma surpresa para Rita Costa, presidente da AAMA: "Foi uma miúda que, na entrevista, quando lhe perguntei por que razão queria fazer a colónia, respondeu: 'Porque quando crescer quero ter a minha ONG."
Outro dos momentos altos (são tantos) do Camp Abilities Portugal é a Noite de Talentos. Uma noite em que cada criança se inscreve para ir tocar um instrumento, ou cantar, ou tocar e cantar, ou representar, ou o que quiser. Nessa noite há algumas surpresas. Miúdos que passaram o tempo calados, sem revelarem qualquer tipo de extroversão, de repente oferecem-se para tocar ou cantar, ainda que não o saibam fazer. Há os que têm aulas de instrumento e que fazem um brilharete mas talvez a maior surpresa tenha sido o Abulai. O miúdo sorridente e carinhoso, que dá festinhas aos outros mas sempre sem proferir uma palavra, protegido na sua concha de silêncio, aceitou ir para o órgão, e inventou uma música ali mesmo, baloiçando o corpo ao som da sua própria composição. O espanto dos companheiros revelou-se em gritos uníssonos: "A-bu-lai! A-bu-lai! A-bu-lai! A-bu-lai!" Em seguida, levantou-se, ouviu os aplausos, escutou os a opinião dos jurados (trabalhadores da UPS que quiseram participar no campo e foram convidados para serem membros do júri) sempre com um sorriso e uma expressão de orgulho tímido.
Ao longo de uma semana houve também jogos de futebol, tiro com arco, capoeira, voltinhas de bicicleta, trotineta, skate, patins, houve atletismo, goalball, culinária. Houve partilhas, desabafos, confidências. Houve meninas fechadas na casa de banho a chorar. Rapazes a falar de raparigas, raparigas a falar de rapazes. Houve piadas, conselhos, promessas de amizades para sempre. Houve mudanças que podem ser mesmo para sempre. Em alguns cegos menos autónomos, sobretudo aqueles que foram pela primeira vez, pode ter-se semeado a ideia - verdadeira - de que podem fazer mais do que pensavam. Pode ter-se plantado a vontade de fazerem desporto e, quem sabe, tornarem-se atletas paralímpicos. Pode ter-se alterado a perspectiva de que os visuais são pessoas distantes que não querem amizades com eles. Nos outros, os que fazem tudo quase sem limitações, nos que têm mais amigos que vêem do que amigos que não vêem, pode não ter mudado tanta coisa mas nasceram, de certeza, novas amizades. Para os que vêem mudou muito. Rita Costa diz que é sobretudo nesses que muda tudo: "São esses que entram aqui umas pessoas e saem daqui outras. É por isso que este campo é tão rico: os cegos têm oportunidade de perceber que conseguem fazer tudo e de mostrar isso mesmo aos visuais. Mas os visuais têm uma experiência que os abala por dentro de um modo profundíssimo."
Lourenço, 15 anos, garante que sim, Rita tem razão. Conversamos enquanto caminhamos e ele passa o tempo a pedir-me que tenha cuidado porque há um degrau, porque há um poste, porque há uma irregularidade no solo. Depois, quando se lembra que não está ao lado de uma cega, pede desculpa. "É o hábito!" Sobre as lições que leva do campo, diz que são inúmeras: "Uma das coisas que mais me impressionou, logo nos primeiros momentos de socialização, foi quando um colega da minha camarata, o Armindo, fez a cama super rápido e sem ajuda. Olhei para o lado e os visuais ainda andavam ali às voltas, e a cama ficou toda mal feita, nem sequer tinha os lençóis entalados. Achava que todos precisavam de ajuda para tudo e percebi que depende da autonomia que lhes foi dada. Até me esqueço que o Armindo não vê. Acho que recebi muito mais do que dei. Recebi valores, lições de vida."
Guilherme, 16 anos, tem os olhos a brilhar quando faz o resumo da sua semana no campo: "Quando disse aos meus amigos que vinha eles perguntaram se eu ia receber algum dinheiro para vir ajudar os cegos. Quando lhes expliquei que não, que até pagava para vir fazer o campo, exclamaram: "grande treta!". Só tenho a dizer-lhes que nem sabem o que perdem. Marcou-me tanto esta semana... tanto. Saio daqui uma pessoa diferente. Absolutamente. Aprendi que é possível ver sem olhos. Acho que vou agradecer todos os dias pela dádiva de ver, mas a verdade é que eles também vêem. De outra maneira."
E a futura criadora de uma ONG? O que tem a dizer sobre esta experiência? Maria, 15 anos, não é estreante no que toca a ajudar outras pessoas. Faz frequentemente voluntariado num centro comunitário, já fez também em lares de idosos. Ainda assim, deixou-se maravilhar por esta semana de Camp Abilities: "Adorei. Acho que é uma experiência de vida muito, muito, muito intensa. Estou com as emoções à flor da pele. Cresci muito, aprendi mais do que ensinei. Tenho muita pena de não poder repetir. Mas os meus filhos vêm. De certeza absoluta! Ainda não os tenho mas já decidi!"
Armindo, 16 anos, é cego e esta é a 4ª ou 5ª vez que vem, já nem sabe. Sempre que vem aprende qualquer coisa. Gosta de mostrar aos que vêem como é o mundo dos que não vêem. "O nosso mundo não é igual. Podemos fazer as mesmas coisas mas são mundos diferentes. É importante que eles conheçam um bocadinho da nossa realidade para estarem mais despertos. Adoro vir para aqui. E nem é pelas actividades. Podíamos ficar só aqui sentados que já era bom. Porque o importante é a relação que criamos uns com os outros. As conversas. Custa-me muito ir embora. Por muito que seja autónomo, que ande de autocarro sozinho, que faça vários desportos... não é a mesma coisa. Acabo por ficar muitos dias em casa. Sabe o que custa? Saber que só posso vir mais uma vez. No ano em que se faz 18 anos já não dá. Custa muito. Este ano fiz bons amigos, que espero que perdurem. O Lourenço foi um deles, sem dúvida. À noite temos sempre uma conversa séria sobre política, sobre o ambiente, sobre o mundo. Mas também gostei muito do Bilal, do Tadheus, da Maria. Incrivel alguém tão novo ser tão determinado e dizer que quer ter a sua ONG. Desejo-lhe muita sorte, muito sucesso."
Na última noite, juntaram-se todos numa roda, sentados no chão. Era suposto terem uma fogueira no meio mas o vento forte impediu-os de juntar o elemento fogo à festa. Pedro Vicente, um dos coordenadores, levou a guitarra da praxe e cantaram e abraçaram-se e alguns choraram com a antecipação do fim.
Os coordenadores sabem que todos os anos este é um momento intenso (não são todos?) e até para eles, às vezes, é difícil imaginar o instante em que alguns saem daquela bolha feliz para regressar a realidades não tão felizes assim. Carina, 28 anos, é coordenadora no Camp Abilities, desde a primeira colónia, há 5 anos: "É uma experiência única. Estes jovens ensinam-nos muito. Tanto os que não vêem, que conseguem mais do que pensamos, que ensinam outras maneiras de se ver, como os jovens visuais, que nos dão uma renovada esperança na Humanidade. Às vezes aqui nem nos apercebemos do impacto que isto teve neles mas, no ano seguinte, quando são convidados a vir dar o seu testemunho aos que vêm pela primeira vez, descrevem de forma emocionada o quanto isto os mudou, o quão mais responsáveis ficaram, e isso é muito especial."
O mesmo diz Pedro Vicente, o coordenador que ainda há pouco estava de guitarra na mão (algo que faz muito, porque além destas lides, é músico): "Aqui só há ganhos. Não há perdas. Só se for a perda dos medos e dos preconceitos. Ganhar ganham todos. Quando isto termina não me desmacho mas ir embora é duro. Vê-los partir é duro. O que me alimenta é a esperança de os voltar a ver (aos cegos) no ano seguinte. O que me alimenta é a esperança de que eles continuem a lutar por manter o que conquistaram aqui: os que não vêem e os que vêem. E... para o ano há mais."
Para o ano há mais, graças à força de vontade de Rita Costa, que deu de caras com o Camp Abilities enquanto fazia o mestrado em Actividade Motora Adaptada, nos EUA, em 1999, ficando irremediavelmente apaixonada pelo conceito e não descansando enquanto não o implementou em Portugal. Para o ano há mais, com a força e a dedicação de toda a equipa com que a Rita trabalha, a Carina, o Pedro, a Mariana, o Eduardo, a Maria João, o Bruno. Com muito esforço de todos para conseguirem apoios, porque proporcionar tudo o que se proporciona a estes miúdos não é fácil... nem barato. Mas eles agradecem cada mão, cada empurrão, cada pequena luz ao fundo do túnel. Por amor, por carolice, por acreditarem que, de semana em semana, podem ajudar a mudar o mundo. E podem. E mudam.
Para o ano há mais. Uma semana de cada vez.
Informações úteis
As crianças/jovens interessados pagam 100€ por esta semana extraordinária de aprendizagem e convívio (excepto as crianças cegas provenientes de famílias carenciadas, que não pagam). Para saber mais:
AAMA – Associação de Actividade Motora Adaptada
Junta de Freguesia de Carnide
Largo das Pimenteiras, 6 A
1600-576 Lisboa
Tel. 217 121 330
emails: secretaria.aama@gmail.com
campabilitiesportugal@gmail.
Site: http://www.associacaoama.org/
Contactos da Direcção
Drª. Rita Gomes da Costa
tlm: 916 288 340
email: ritacosta.aama@gmail.com
Este ano, a Câmara Municipal de Lisboa suportou cerca de 50% dos custos da colónia através do programa de acção social.
A farmacêutica Biojam e a construtora Alves Ribeiro dão bolsas para crianças carenciadas poderem fazer a colónia.
O Pingo Doce oferece a inscrição ao filho (cego) de um funcionário.
A UPS também contribuiu financeiramente.
A Junta de Freguesia de Carnide cede uma sala gratuitamente através de um protocolo com a AAMA (para todo o trabalho logístico pré-colónia) e dá uma ajuda financeira também.