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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

A minha história com a Igreja Católica

Tive um tio padre, monsenhor na Diocese da Guarda. Era o monsenhor Alfeu. Lembro-me de ficar transido sempre que, quando nos reencontrávamos, na aldeia do meu pai, me perguntava se sabia rezar e a resposta era sempre a mesma: não. Ensinou-me o Pai Nosso, a Avé Maria, que ainda sei, e outras orações que entretanto esqueci. Lembro-me de estarmos à mesa e de ter de parecer muito mais boa menina do que era. Nessas noites, recordo o olhar desapontado que o tio Alfeu deitava ao meu pai, seu sobrinho protegido, que chegou a estudar no seminário da Guarda. Agora, o seu sobrinho querido era um homem divorciado, ateu, a viver «em pecado» com outra mulher, sem educar a filha (na altura era ainda filha única) segundo os princípios cristãos.
Nessas férias, sentia-me muito importante por ter em casa o homem mais venerado da aldeia. Quando saíamos de casa para irmos com ele para a igreja, era como se fosse ali o Clooney ou coisa parecida. E eu era, na aldeia, a sobrinha do Clooney. A adoração das pessoas da vizinhança fazia-me acreditar que devia ir ali um homem bom. E, assim sendo, fazia um esforço genuíno por aprender o que ele insistia em ensinar-me.
A irmã dele, Constança, era quem fazia as hóstias para a Igreja. Ensinou-me a dizer, quando nos sentávamos à mesa para as refeições: «Graças vos dou meu Deus, que me deste comer sem o merecer. Dai-me o Céu quando morrer», seguido de uma Avé Maria. Eu era minúscula e lembro-me perfeitamente de achar que não fazia sentido estarmos para ali a dizer que não merecíamos o jantar. Ficava a pensar: «Graças vos dou meu Deus que me deste de comer sem o merecer?» E aquilo não me fazia sentido. Eu era tão pequenita e já não merecia comer? A tia, que era tão velhinha e trabalhava tanto nos campos, também não mereceria comer? Que raio de coisa...
A tia era tão beata, tão beata que sempre que se magoava dizia «Graças a Deus». Nunca me hei-de esquecer da marrada que deu, certo dia, na lareira da casa, que lhe rachou a cabeça num lanho cheio de sangue, e de ficar incrédula a ouvi-la gemer, enquanto desmaiava devagarinho: «Ai, graças a Deus, graças a Deus. Ai, graças a Deus, graças a Deus.» Eu era pequenina e pensava que seria seguramente por culpa da minha pequenez que não conseguia entender como é que Deus poderia tê-la feito enfiar a testa na lareira e, pior, como é que ela ainda lhe agradecia.
Dentro de mim, não vos sei explicar porquê nem como, fervilhou desde sempre incompreensão pelo lado submisso e subjugado de todas as rezas. Na missa, faltava-me o ar. Não é metáfora, é mesmo verdade. Invariavelmente, quando chegava a parte do «Glória a Deus nas alturas» eu passava mal. Perdia os sentidos. Muitas e muitas vezes tive de ser levada da igreja para fora, branca como as paredes. Aquelas vozes sofridas, implorando a Deus piedade, sufocavam-me até ao desfalecimento. «Nós vos louvamos. Nós vos bendizemos. Nós vos adoramos. Nós vos glorificamos. Nós vos damos graças, por vossa imensa glória. Senhor Jesus Cristo, Filho Unigénito. Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai. Vós que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Vós que tirais o pecado do mundo, acolhei a nossa súplica. Vós que estais à direita do Pai, tende piedade de nós.» E eu, tau, estendida ao comprido ou a pedir por favor para sair antes que atabafasse de vez.
Também detestava a parte em que tínhamos de nos saudar. Os beijos molhados das velhotas deixavam-me à beira da náusea e tinha muita dificuldade em perceber porque é que aquelas duas vizinhas se beijavam, quando na véspera uma tinha dito cobras e lagartos da outra, debaixo da janela do meu quarto. Eu era uma miúda de laçarotes no cabelo mas já sentia que ali dentro havia uma bondade aparente que, depois, não correspondia à verdade.

Esta era a minha realidade, sempre que ia de férias para a aldeia da beira alta. Mas a minha história com a Igreja Católica não se ficou por aqui.
A minha avó paterna, Aida, também era muito católica. Muito mesmo. Não estávamos juntas muitas vezes mas recordo-me de haver terços lá por casa e relógios que tocavam o «Avé, avé, avé Maria...». Um dia, levou-me à missa. Teria uns 6 anos. Devia ser hora do lanche e eu tinha muita fome. A certa altura, começaram todos a levantar-se para irem comer a bolachinha que o senhor padre dava. A minha avó disse: «Tu ficas. Não és baptizada, não te confessaste, não podes comungar.» Não percebi nada daquilo mas achei de uma injustiça inominável. A minha prima foi, a minha avó foi, trouxeram a bolacha grande na boca e eu, que tinha tanta fome, fiquei de fora daquilo. Foi a primeira vez que me senti profundamente discriminada. E não gostei.

Uma das minhas melhores amigas, que cresceu no prédio em frente ao meu e era filha de uns amigos da minha mãe, era católica. Baptizada, com a primeira comunhão e o crisma e todo esse percurso de católica praticante. Muitas vezes tínhamos de interromper as brincadeiras porque ela ia para a catequese. Não gostava que ela tivesse que ir e ficava sempre a pensar porque é que ela preferia ir falar de Jesus, que já tinha morrido há tantos anos, do que ficar a brincar comigo, que estava ali tão viva. Fiquei curiosa e pedi-lhe para me explicar. Foi o meu período mais interessado. Li algumas coisas, conversei muito com ela, fiz-lhe muitas perguntas a que não me soube responder. Eu queria perceber porque é que Deus era tão bom e omnipotente e, depois, havia tanta desgraça no mundo. Ela respondia atabalhoadamente, como as crianças, pondo as culpas no diabo. Mas então se Deus era omnipotente... Ao fim de algum tempo percebi que me faltava qualquer coisa. Uma espécie de dispositivo com o qual ou se nasce ou não se nasce. Como o equipamento de série, dos carros.

Mais tarde, quando comecei a trabalhar, interessei-me sempre por temas pesados. Gosto de perceber como é que as pessoas reagem quando a vida as põe à prova. Se são fortes, mais fortes do que tinham imaginado, ou se sucumbem. Se são combativas ou desistentes. Se inventam estratégias para saltar obstáculos ou se se jogam para o chão. E, por isso, fiz dezenas (centenas?) de reportagens sobre pessoas que passavam por autênticas provações da vida. Uma das coisas que sempre me impressionou foi quando alguém que tinha passado pelo maior dos pesadelos, continuava a acreditar em Deus. Pessoas que tinham perdido filhos, pessoas que tinham ficado tetraplégicas, amputadas, doentes terminais, gente que havia perdido tudo, sem culpa nenhuma de nada. Gente boa profundamente castigada pela vida. E sempre aquele amor a Deus, para mim incompreensível. Tal como era incompreensível quando a tia Constança marrava com a cabeça na lareira e dizia «Graças a Deus».
Uma das coisas que me deixa boquiaberta é o facto de Deus ter as costas sempre tão largas. Se há um acidente com um autocarro que levava 30 pessoas e morrem 29 mas salva-se uma criança, um católico dirá sempre que foi um grande milagre. Nessas alturas, então, ensandeço: «Um milagre??? Morreram todos menos um!! Foi uma desgraça! A criança teve foi uma sorte do caraças!»
É isto, o que nos divide. A fé e o modo de olhar as coisas. Para mim, não há Deus. Estamos entregues a nós próprios e à nossa sorte. Como daquela vez que, em reportagem, estava no consultório de um neurologista, a assistir a uma aula com alunos de Medicina. E o professor, neurologista, disse: «Agora vai entrar um senhor que tem um tumor no cérebro. Está num sítio inoperável. Vai morrer em breve.» E o meu colega, Augusto Brázio, incomodadíssimo, perguntou: «Mas... havia alguma coisa que ele pudesse ter feito, ou não ter feito, para não ter este tumor?» O médico sorriu e respondeu: «Nada. Teve azar. Podia não ter tido tumor algum, ou podia ter um tumor num local operável. Teve azar.» Para mim, a vida é isto: no que toca ao que não controlamos, temos sorte ou temos azar. Depois, naquilo que nos compete, é fazer o melhor que podemos e sabemos.

Este é um tema inesgotável. Sinto um claro fascínio por ele tal e qual como sinto por tudo aquilo que não entendo. Tenho respeito por quem acredita, não quero nunca desrespeitar as opiniões ou credos de ninguém. Não tenho essa arrogância. Até porque há muita gente demasiado inteligente que crê, para que eu possa ter essa arrogância. Mas a fé para mim é, de facto, algo que creio que jamais acontecerá. Não é por mal. É apenas porque não.

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