A aviltante normalidade da vida
Além do pior de tudo, que é saber que já cá não estás, há ainda o mais inacreditável e ofensivo: o mundo continua, a vida continua, o dia prossegue indiferente a seguir à noite, a noite persiste implacável a suceder-se ao dia. Nas ruas, há casais que se abraçam, homens de casaco e cachecol passeiam cães que mancham de amarelo as esquinas dos prédios, há gente a sair da mercearia com sacos onde seguem legumes, iogurtes, pacotes de arroz.
Os meus filhos continuam a jogar à bola na sala, a discutir uns com os outros, a falar alto demais, a rir. E eu tenho de levar adiante as minhas tarefas de mãe porque há sempre refeições e banhos e estudos e carinhos e repreensões que têm de seguir o rumo dos dias, incapazes da decência de parar de se sucederem uns aos outros, numa cadência inexorável.
E depois há os amigos que celebram aniversários e convidam para jantares, e há o trabalho que tem de ser feito, e não tarda vai ser Natal. Os jornais e os telejornais exibem notícias que interessam e outras que não interessam sobre pessoas e acontecimentos, o que só prova que é mesmo verdade: o mundo foi incapaz de se deter apesar de tu teres saído dele.
Além do pior de tudo, que é pensar na irrealidade (na total irrealidade, diria) da tua ausência, há esta aviltante normalidade da vida, que me ofende, que me agride e que, para já, me recuso a aceitar.