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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

A fronteira da liberdade

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Todos nós temos a tendência para achar que "no nosso tempo" é que era. Já vi gente dizer isto quando, no "seu tempo" havia falta de quase tudo, nomeadamente de afecto parental e de cuidados de saúde primários. Mas enfim, deve fazer parte dos mistérios da memória selectiva, que nos leva a enlevar o passado, obnubilando todos os detalhes ruins. Esforço-me por não cair na tentação, ainda que sinta que, em alguns aspectos, tive mais sorte que gerações posteriores à minha (mas noutros, é óbvio, elas ficam a ganhar).

Um dos aspectos em que creio que tive mais sorte tem a ver com a liberdade. Apesar de viver numa cidade, brinquei muito na rua. Ia horas para a rua, para casa de vizinhas, para as traseiras do meu prédio, e estava tudo bem. E eu tinha uma mãe completamente paranóica com os perigos (ainda hoje, se me vir ao sol, a primeira ideia que lhe vem é a de uma meningite), mas ainda assim era como se brincar na rua fosse parte integrante da infância, como gatinhar ou meter na boca tudo o que aparece quando se é bebé. Claro que tinha os tradicionais discursos de não falar com estranhos, nunca dizer onde morava, nunca ir com ninguém, nunca comer nada que me oferecessem, nunca uma série de coisas que, de tanto ouvir, já me entravam a 100 e saíam a 200 (tanto que, um dia, já ia toda feita com um homem para lhe mostrar onde morava uma enfermeira, e quando a minha mãe apareceu aos gritos, o homem fugiu a correr, e eu percebi que... foi por um triz). 

Hoje os miúdos, sobretudo nas cidades, raramente têm este tipo de liberdade. Os meus tiveram uma coisa mais ou menos parecida, porque vivemos num condomínio fechado (e por isso tiveram uma liberdade controlada, assim um "faz de conta que"), mas há imensos miúdos que não brincam, pura e simplesmente, na rua. Ou melhor, não brincam sozinhos ou uns com os outros, sozinhos, na rua. Podem até estar na rua, mas os pais estão sempre por perto, vigilantes. 

Não sei quando é que isto aconteceu mas inclinar-me-ia a dizer que, por cá, tudo mudou com o caso Rui Pedro. Para mim, pelo menos, foi um turning point. Na minha perspectiva, até então Portugal era um sítio mais ou menos tranquilo, onde havia assaltos, sim, onde de vez em quando uns e outros se matavam por questões de violência doméstica ou por quezílias relacionadas com propriedades, havia violações (disso falava-se bastante, tanto que houve uma altura em que achei que ser violada era tão certo como a morte), mas pouco mais. O caso Rui Pedro mostrou-nos um Portugal que achávamos que só acontecia "lá fora". Aquele miúdo desapareceu, enquanto brincava na rua, bem pertinho de casa, numa zona completamente calma, bem mais calma do que Lisboa, onde eu vivi toda a minha vida. Durante anos, o caso assombrou-me. Entrevistei a mãe dele, escrevi sobre aquelas vidas. Espelhei para a minha realidade aquele drama, e pronto. Nunca pude ser uma mãe tão descontraída como seria se aquele horror não tivesse acontecido (e outros parecidos, que entretanto aconteceram também). E - atenção - eu acho-me muito mais descontraída que a maioria. Mesmo. Mas há ali uma linha em que as sirenes tocam e começo a sentir palpitações. E se? 

Mas, a verdade, é que as coisas quando têm de acontecer acontecem, mesmo debaixo do nosso nariz, mesmo dentro de casa. Vejamos este exemplo: um dia, a Mada foi a uma festa de aniversário de uma amiga, numa quinta. Quando a fui buscar, ao fim do dia, a mãe da amiga e a própria Mada contaram que tinha havido um "percalço". Os miúdos estavam a brincar, dentro de propriedade privada, e começaram a correr para mais longe da casa, para umas vinhas (da propriedade, fechada). A Mada ter-se-á afastado mais do que os outros, ficado sozinha, e nisto surgiu um homem que ficou estático a olhar para ela. Felizmente, o homem não tinha bom aspecto, o que fez soar-lhe todos os alarmes. Ela começou a andar mais depressa na direcção oposta, e o homem começou a andar mais depressa atrás dela. Sentindo o coração a latejar nas veias, ela correu e ele correu atrás dela. Também felizmente, ocorreu-lhe (ou foi só sorte) correr em direcção à casa da família, e não para outro lado qualquer da propriedade. Quando se aproximou da casa e o homem viu pessoas, fugiu na direcção oposta. Enquanto ouvia o relato (e sentia as pernas a tremer) não conseguia deixar de pensar que, naquele dia, tínhamos ganhado o Euromilhões. A sorte esteve do nosso lado. Mas podia não ter estado.

Foi o primeiro dia em que a minha filha percebeu que era uma "presa". Ela esteve para ser caçada mas conseguiu fugir. E esta ideia é terrível mas é assustadoramente comum à maioria das meninas, seja em crianças, seja em adolescentes, seja quando já são adultas. O Rui Pedro não era uma menina, bem sei, mas este tipo de situação é, como sabemos, mais comum nas raparigas do que nos rapazes, o que não nos deve - de todo - deixar menos vigilantes quando se trata de filhos do sexo masculino.

Todo este preâmbulo para desembocar nisto: qual é a fronteira entre a protecção dos nossos filhos e a limitação abusiva e perniciosa da sua liberdade? Como traçar essa linha, sem que sejamos pais negligentes num mundo que é tudo menos de fiar, mas em que também não caiamos no extremo oposto, de sermos pais-ansiosos, paranóicos, angustiados, que passam para os filhos uma ideia de mundo cruel que, à primeira distracção, vai dar cabo deles? 

Se esperavam que vos desse agora a resposta, lamento a desilusão. Não a tenho. Acho que tenho sido uma boa doseadora da liberdade, com cautelas, falando dos perigos mas referindo que são a excepção, não a regra. Não quero que saiam de casa a olhar por cima do ombro, mas também não acho que vivamos numa bolha cor-de-rosa bonita. No meu bairro, há uns meses, foi violada uma mulher que saía, de manhã, de um ginásio. Em plena luz do dia, numa avenida muito movimentada. Fica difícil deixar a Mada vir sozinha da escola de bicicleta, o que me custa imenso porque acho que fazia todo o sentido. Mas. Sempre ali aquele mas. 

Ainda assim, acho que vou soltando a corda com equilíbrio, mais do que por vezes vejo pais de amigas da Mada fazerem (os outros, mais velhos, já têm toda a liberdade, com responsabilidade, como é natural). A verdade é que há por aí gente muito assustada, que não permite que os filhos ponham um pé fora de casa sem supervisão, e falamos de miúdos já bastante crescidos. Não consigo censurar, mesmo que vá fazendo o contrário disso, devagarinho. O horror de perder um filho ou de o ver arruinado para sempre é maior do que qualquer coisa, qualquer desejo de liberdade. Mas também não conseguiria ser assim, tão absolutamente aterrorizada, porque a vida é, toda ela, feita de riscos. Toda. Os filhos, desde que nascem, estão em risco. Apanham vírus e bactérias que podem ser mortais, têm quedas aparatosas, metem os dedos nas tomadas, fazem desportos arriscados, andam de mota (às vezes os pais não os deixam ter mota e eles acabam espatifados quando iam na mota de um amigo), tiram a carta e andam de carro, convivem sabemos lá nós com quem, têm discussões, na noite, que podem acabar mal, etc, etc, etc. Não é possível, por mais que tentemos, protegê-los de tudo. Talvez a maior protecção seja, justamente, dar-lhes liberdade, dar-lhes mundo e, ao mesmo tempo, dar-lhes informação, ferramentas para que se defendam o melhor possível. É um equilíbrio difícil. Será sempre um equilíbrio difícil. Ser mãe, ser pai, é ter este coração fora do peito para sempre. O ideal é tentar que, apesar de fora do peito, não nos caia aos pés, nem nos suba pelos ares. Ninguém disse que era fácil.

A minha vida dava um filme

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Quero contar mais histórias. Às vezes, são histórias que não cabem na rubrica Mudar de Vida, nem na rubrica Histórias da Quarentena, nem em nenhuma das outras que fui criando. São histórias de vida que podem ser tudo: complicadas, descomplicadas, bonitas, tristes, alegres. Histórias de amor, histórias de superação (as minhas preferidas, confesso). Histórias de quem lutou, de quem se deixou vencer, histórias que nos fazem rir, que nos emocionam, que nos inspiram.

Se acham que posso contar a vossa história, enviem um email para aminhavidadava.umahistoria@gmail.com

Obrigada!

 

 

Histórias da Quarentena #9

Imaginem uma criança pequena sempre a dançar. Como uma boneca numa caixinha de música, aos rodopios pelas assoalhadas de casa. A tentar erguer o corpo nas pontas dos pés, a imitar as bailarinas de verdade, com pliés, jetés, adagios. Ainda tudo pouco técnico, só mais movido pela vontade, por uma vontade indómita, que nem se sabe bem de onde nasceu. Imaginaram? Agora, imaginem a criança mais crescida, no Conservatório, crescendo em anos a fio de trabalho intenso, o corpo a ser moldado para voos impossíveis, a graciosidade apurada pela insistência, persistência, teimosia, quase loucura. E depois os palcos, as coreografias mais míticas, os bailados mais desejados, O Quebra Nozes, Raymonda, Pedro e Inês, A Sagração da Primavera. Imaginaram? Agora, suponham que, de um dia para o outro, tudo cessa. Luzes apagadas, sapatilhas penduradas, pano descido, salas de espectáculos fechadas. Silêncio. E a menina feita mulher fechada entre quatro paredes, com espaço limitado para rodopios (quanto mais voos!), sem saber o que fazer ao bicho carpinteiro que lhe cresceu agarrado ao corpo, impelindo-a para um movimento perpétuo, para um constante desafio dos limites do esqueleto, agora obrigatoriamente limitado.

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Andreia Mota, 26 anos, é a menina que vos pedi para imaginarem. Desde que se lembra de ser gente que dança. Sempre dançou e sempre que lhe faziam a pergunta da praxe, "O que é que queres ser quando fores grande?", respondia o mesmo: bailarina. Não sabe bem de onde vem a pancada. Não existem outras bailarinas na família, apesar de haver uma certa tendência para o desporto: a irmã Margarida é altleta de alta competião, uma prima faz Trampolins e outra foi para o Atletismo. Ballet, nada. Só ela cresceu a sonhar com Arabesques. Aos 13 anos, saiu de Tomar para o Conservatório de Lisboa. Não veio sozinha. Aproveitou a boleia da irmã, que veio para a faculdade, e ficou a viver com ela e mais umas colegas, num apartamento em Alvalade. "Ao início foi muito complicado. Sou muito chegada aos meus pais e vinha de um meio completamente diferente. Estava sempre desejosa que fosse sexta-feira para ir para casa, passar o fim-de-semana. Pensei desistir algumas vezes, confesso. Ao mesmo tempo que sentia falta de casa, ainda havia a exigência do Conservatório, que não é brincadeira. Aquilo é mesmo para quem quer muito. Porque a adolescência... a adolescência não é, de todo, igual à das outras pessoas. A minha irmã tinha muito mais amigos, fazia coisas fora da faculdade. Nós não. Éramos poucos e não havia vida para lá daquilo. É duro. Mas quando se gosta..."

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E Andreia gostava. Muito. Tanto que, ainda estava no 12º ano, e a directora da Companhia Nacional de Bailado a convidou para ir fazer algumas produções. Acabou a assinar contrato com a CNB mas também fez algumas audições para fora, para outras companhias. Fez tournée pela Suécia, Noruega, Letónia, com O Quebra Nozes, a convite de uma companhia estrangeira. De tudo o que já fez, destaca uma coreografia de Vasco Wellenkamp que era uma homenagem à sua falecida mulher, Pedro e Inês, de Olga Roriz. Também relembra a primeira vez que foi a bailarina principal, no Raymonda. "Foi no Festival ao Largo, no Chiado. Estava nervosa como nunca. Preparei-me muito e adorei a sensação. E também n'O Quebra Nozes, em que dançava do início ao fim, duas horas e tal, com muita técnica, coisas muito difíceis, no Teatro Camões. Na Sagração da Primavera, coube-me o papel principal. Fazia de eleita, era a rapariga que é escolhida para morrer. Esse bailado são 140 e tal saltos num solo... Foram 3 meses de preparação intensa."

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Andreia recorda tudo com o olhar nostálgico de quem ainda nem acredita que já não sobe a um palco há meses. A pandemia pendurou-lhe as sapatilhas mas não a vontade de fazer, de criar. Confinou em Tomar, em casa dos pais. De manhã, nestes meses de clausura, fez aulas em casa, com a barra e outros exercícios para se manter em forma. Mas faltava-lhe ocupação para o resto do dia. Leu vários livros, mas faltava-lhe a criação. E então lembrou-se dos pais e da sua fábrica de costura, que faz, entre outras coisas, as roupas para os espectáculos da Disney. E pensou: "E se eu aprendesse a fazer maillots de ballet?" Os pais reviraram os olhos, tentaram dissuadi-la, que isso era coisa mesmo complexa, difícil a valer. Mas quê? Como explicar a palavra difícil a quem consegue fazer Fouettés? 

Andreia, que até então só sabia coser a direito, sentou-se ao lado da mãe e dispôs-se a aprender. Tinha uma ideia, tentava desenhar a ideia, estudava o molde certo com a mãe, e depois ela ensinava-a a fazer. "Ensinou-me tudo. A cortar o tecido, a juntar peças, a coser. E eu fui aprendendo e aperfeiçoando. E como sou bailarina e sei que há marcas que não me ficam bem e sei exactamente, na pele, o que gostamos e não gostamos, acho que consegui fazer maillots que encaixam mesmo bem. O meu pai, que está no negócio há 30 ou 40 anos, disse que eu nunca havia de conseguir. Ao fim de um mês, e depois de ver a minha persistência e evolução, ofereceu-me uma máquina de costura para levar quando voltasse para Lisboa."

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E assim nasceu a Terpsi (em homenagem à deusa da dança, Terpsichore), uma marca de maillots feitos por esta bailarina confinada, à procura de ocupação. A marca ainda nem tinha página de Instagram e já Andreia não tinha mãos a medir. "Cada bailarina tem 70 a 80 maillots em casa e queremos sempre mais um. De maneira que só com as encomendas dentro da companhia fiquei logo afundada em trabalho. Depois vieram os homens, muito invejosos, pedir também maillots e leggins. Agora, com a criação da página de Instagram, a coisa é mais séria, a ideia é mesmo projectar o negócio."

Em breve, Andreia espera poder voltar aos palcos e a outro tipo de acção, aquela com a qual sonhou toda a vida, e que é a sua grande paixão. Mas quer continuar a desenhar e a fazer nascer as suas peças. Afinal, há novas vidas que nascem, mesmo em períodos de escuridão. 

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