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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Prisão segura/ liberdade mortal

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Há uma história da minha infância que por vezes revisito, com ternura, e que espelha bem quem sou, desde tenra idade. Teria uns 5 ou 6 anos e lembro-me de passar muito tempo a olhar para uma gaiola que a minha avó materna tinha na cozinha. Inquietava-me a vida daquele periquito, angustiava-me o inútil bater das suas asas, fazia-me falta de ar o seu cárcere sem crime. Um dia, empoleirei-me numa cadeira, abri a gaiola e dei-lhe um empurraozinho para a liberdade. “Vai!”

Sucede que em casa da minha avó havia uma gata, chamada Pirulita. Atenta, mal vislumbrou o pássaro fora das grades, impulsionou as felinas patas traseiras e abocanhou a ave no seu voo inaugural, deixando-me perplexa, triste e esmagada pela culpa. Por minha causa, o periquito tinha morrido.

Seguiram-se algumas infantis considerações sobre o que seria melhor, a vida em cativeiro ou um único voo, ainda que para a morte, considerações que talvez não tenha feito logo mas que fui elaborando ao longo dos anos, sempre que recordava este episódio. De qualquer modo, aquela foi uma lição que levei para a vida e que se aplica até a estes dias de confinamento: não gosto de estar presa, ninguém gosta, mas neste momento a liberdade pode significar coisa pior. Aninho-me na gaiola e vou cantando, como fazia o pássaro da minha avó na sua prisão segura. Melhores dias virão, com voos sem gatos à espreita.

Pandemia da procrastinação

Ainda não apanhei Covid mas fui atacada por um vírus terrivelmente aborrecido. Um vírus que me tolhe pernas e braços, pés e mãos, e pior do que tudo, cérebro. Os dias passam e não faço nada de jeito. Quer dizer, ponho máquinas a lavar, arrumo loiça da máquina, aspiro, arrumo, tento entreter os miúdos, mas tirando isso, pouco. Não me apetece escrever, não me apetece fazer reformulações na casa (quer dizer, até apetece mas depois... já não), não me concentro para ler. Parece que tenho uma esponja no lugar da massa cinzenta, tudo é meio vazio e desinteressante. Tento contrariar este estúpido estado, relembrando-me que cada dia de vida conta, e que não tarda posso ter uma macacoa qualquer e andei a desperdiçar dias como se fosse imortal. Mas quê? O vírus parece superior à minha vontade. Acordo cedo, tomo banho, visto-me e até me pinto, para contrariar a neura latente, encho o peito de ar numa atitude de "bora lá!", mas depois caio na mesma procrastinação, que é a palavra moderna para preguiça, modorra, indolência, desleixo.

O Mateus queixa-se que não há nada para fazer, a Madalena também, o Martim passa os dias no computador, o Manel arrasta-se entre estudos e coisa nenhuma. As vozes deles ecoam por toda a casa, todo o dia, tenho saudades do silêncio, tantas, tantas saudades do silêncio. E sinto-me péssima mãe porque há dias em que não só não dou avanço ao meu trabalho como também não os ajudo a lidar com o tempo todo que têm ao dispor e a pouca habilidade que demonstram em saber o que fazer com ele.

Mas está tudo bem, claro, não tenho um ventilador enfiado pela glote abaixo, nenhum dos meus foi seriamente apanhado pelo bicho (por esse, pelo menos), não sou dona de discoteca, nem de restaurante, nem de cabeleireiro, nem de livraria, nem sou artista, nem tenho a minha actividade suspensa, está tudo bem, impecável, espectacular, tirando este entorpecimento físico e mental, estes dias tão iguais uns aos outros que mais parecem o mesmo dia, eterno e imutável.

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