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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Que a pandemia não dê cabo da fantasia

O confinamento, a pandemia, e todo este estado de sítio em que vivemos tem-nos roubado muito. Mas as crianças têm de continuar a ser crianças. E, apesar de afastadas umas das outras, apesar dos muitos distanciamentos impostos e necessários, é importante não perder de vista as brincadeiras, o faz de conta, a diversão.

O Carnaval é uma altura em que eles podem disfarçar-se, assumir outras personalidades, serem heróis, bandidos, mudar de sexo, deixar a imaginação voar. E... caramba, se precisamos de voar! Acho que até eu me mascaro, este ano!

O Mateus tem oscilado entre ser polícia e ser ladrão (o bem e o mal a definirem-se na sua cabecinha). Como a tia disse que lhe ia oferecer um fato de polícia, escolhi no Centroxogo este fato de ladrão, para que possa experimentar os dois lados da moeda. :) E se não é o gatuno mais fofo de sempre. 

Deixo-vos algumas sugestões de fatos de carnaval para criança que vi lá e que fizeram as delícias cá de casa. Também podem encontrar disfarces para bebés muito fofos e até conjuntos para mascarar toda a família!

Mesmo que não gostem do Carnaval, se puderem, não deixem passar em branco. Os nossos miúdos precisam! E o Centroxogo envia para casa, num instante. Acho que até eu vou mascarar-me este ano!

 

 

 
 
 

 

Empatia precisa-se

Com isto da pandemia, constato que há, grosso modo, dois tipos de pessoas. Aquelas que, na tentativa de diminuirem o sofrimento do outro, para que ele não padeça tanto, tendem a mostrar que existem sofrimentos muito superlativos, e as outras que, na tentativa de ganharem o campeonato do sofrimento, atiram as suas dores à cara das demais, fazendo-as sentirem-se mesquinhas por terem ousado, sequer, queixar-se. A umas e a outras, ainda que com graus distintos, falta algo que vai rareando na sociedade: empatia.

Por vezes, caio no erro do primeiro grupo de pessoas e, menos frequentemente, no do segundo. Lembro-me perfeitamente de ser adolescente, ter uma amiga que era particularmente queixosa, e de lhe dizer coisas como: "Mas queixas-te de quê? Tens uma casa boa, uma família, estudas num colégio, és gira e tens amigos e saúde. O que farias se vivesses numa barraca, tivesses a roupa da cama roída por ratazanas, o teu pai te tivesse abandonado, fosses violada por um padrasto nojento enquanto a tua mãe bêbada dormia, e não tivesses o que comer?" Eu achava que aquele relato faria com que a minha amiga olhasse para as coisas em perspectiva, e tinha a certeza de estar a fazer o melhor para ela. Hoje, tenho muitas dúvidas. 

Quando fiz terapia, disse muitas vezes ao meu terapeuta que não devia estar ali a lamentar-me, que até parecia mal, o que estaria ele a pensar de mim, tanta gente com problemas a sério e eu, tão privilegiada, ali com mariquices. Dele obtive sempre a mesma resposta: "Os nossos problemas nunca são menores. São os nossos. E se nos fazem sentir mal, têm de ser tidos em conta, têm de ser conversados, para poderem ser ultrapassados." Foi então que comecei a ver as coisas por outro prisma. Cada um tem as suas dores, e isto não é uma competição. Há quem passe por momentos dilacerantes com uma perna às costas (pelo menos aparentemente) e há quem passe por momentos comparativamente menos violentos com uma dificuldade dos diabos. Se uns são fortes e outros fracos? Não creio. Uns têm ferramentas para lidar com as crises, outros não terão. Uns terão tido uma determinada educação, outros outra. Uns aguentam-se bem mas podem soçobrar mais à frente. Uns extravasam mais, outros menos.

Com a pandemia, tenho lido barbaridades que me doem, enquanto ser humano. Quando uma pessoa porventura se lastima por estar fechada em casa, logo vem alguém parecido comigo na adolescência: "Só lhe é pedido que esteja em casa e está nesse estado? Que gente! O que dirão os profissionais de saúde, horas infindas nos hospitais, a salvarem vidas, correndo eles mesmo risco de vida, sem poderem voltar a casa para não infectarem a família! Que dirão os doentes, entubados, a lutar pela sobrevivência? Tenha juízo!" 

Esta falta de empatia para com o outro seria admissível numa adolescente, a tentar fazer o melhor pela sua amiga com dramas existenciais. Mas em adultos é pungente. O que é que esta pessoa, que critica assim quem desabafou, sabe sobre a sua vida, sobre as suas circunstâncias? 

Este é o princípio da desvalorização da saúde mental. Nos dias que correm, as pessoas que não estão bem nem se sentem no direito de o expressar o que sentem. E, de silêncio em silêncio, vão deixando o monstro da depressão crescer descontroladamente dentro delas, esperando que passe, porque é uma vergonha sentirem o que sentem quando há gente tão pior. 

Haverá sempre gente pior. Há pessoas a viver debaixo de explosões de morteiro no exacto momento em que escrevo este texto. Ainda assim, os nossos dramas são os nossos. Ninguém saberá nunca que estilhaços estão a deixar dentro de nós. Por isso, tenhamos todos um pouco mais de empatia. Se não temos nada para dizer, calemo-nos. Por vezes, basta escutar. 

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Casas onde a Cocó não se importava de morar #108

É só ver a noite eleitoral, fazer as malas, e rumar à casa nova. É esta. Espero que gostem. Trata-se de uma moradia em Campo de Ourique (Lisboa), com duas salas de estar, uma sala de jantar, quatro quartos, um escritório, e uma piscina que dá ali para uma das salas de estar. Olhem, apareçam, sempre que sentirem vontade. Mi casa es tu casa.

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O Cocó faz anos! Viva o Cocó!

Fez ontem 13 anos que criei este espaço. Não é incrível? Treze anos! Comecei por insistência da Ana Garcia Martins (já então A Pipoca Mais Doce), que trabalhava comigo na revista Time Out Lisboa. Comecei por contar as peripécias dos meus filhos, então só dois, e rapidamente a coisa cresceu. Lembro-me bem de ir de férias a dois para as Maldivas, logo nesse ano da criação do blogue, e de ser chamada de tudo e mais alguma coisa por não levar "os meninos" comigo. Má mãe, egoísta, quem é que consegue deixar os filhos pequenos para ir com o marido divertir-se?, têm filhos para os outros criarem, entre outras pérolas que me deixaram a pensar que vivia na Idade Média e não sabia. 

Treze anos depois, ainda há quem pense assim mas, felizmente, apareceram muitos outros blogues onde vemos mães com vidas diferentes, com vozes diferentes, e que ajudaram algumas almas a compreender que a sua forma de serem mães não tem de ser a única, não tem de ser a certa, não tem de ser a melhor. Cada um exerce a parentalidade como acha que deve exercer e não há melhores nem piores, há diferentes. Quer dizer, há umas formas de parentalidade que são realmente obsessivas e absolutamente centradas na criança, sem deixar espaço para que mais nada cresça e se desenvolva (nomeadamente a própria mãe e/ou pai, e a relação do casal) mas isso já são casos patológicos e eu não sou terapeuta para falar sobre eles.

O que me importa dizer é que, ao longo destes 13 anos, este espaço foi mudando, foi-se adaptando à minha vida, aos meus ritmos, às diferentes fases da minha vida. Já foi muito centrado nas histórias dos miúdos, já foi mais sobre a vida familiar, depois passou a contar histórias de outras pessoas, com rúbricas como o "Mudar de Vida", o "Mulheres do Caraças", as "Histórias da Quarentena", e também alguma ficção lá pelo meio (rubrica "Conta-me"). Fiz parceria com marcas para criar rubricas como a "Receita Perfeita", em que cozinhava com uma selecção de leitores convidados; o "Consultório", onde conversava com o pediatra Paulo Oom sobre a saúde das crianças, o "Casas comigo", para mostrar casas de sonho, o "Clube de Leitura", onde uma vez por mês me juntava com um grupo para falarmos dos livros que tínhamos lido (a minha preferida, onde fiz amigos, e de que sinto imensa falta), entre outras. Tenho imensas ideias para outras rubricas, às vezes falta-me é tempo, dinheiro e alguma força anímica para as pôr em prática. Mas continuo sempre com projectos, ainda que muitos não saiam da gaveta.

O blogue já me permitiu viajar muito, ficar em hotéis de sonho, fazer experiências estupendas. Fui convidada para ir duas vezes ao Parlamento Europeu, com outros criadores digitais de vários países da Europa, para discutir novas formas de comunicação com os jovens, para estimular a cidadania e a participação cívica. Continuo ligada aos organismos europeus, no sentido de alertar para situações que se passam no nosso espaço europeu e para as quais muitas vezes há um desconhecimento ou - pior ainda - uma indiferença que têm de ser combatidos.

Às vezes não tenho sido justa para com os leitores deste blogue, desaparecendo por largos períodos de tempo, estabelecendo-me mais pelo Instagram, que é onde têm pedido mais a minha presença, comercialmente falando (e as coisas são como são, a malta tem de ganhar a vidinha). Mas sabe-me a pouco. É muita imagem, pouco texto, e do que eu sempre gostei foi de escrever. Ainda assim, no Instagram também criei uma espécie de rubrica, as "Histórias num Minuto", histórias infantis para contar em vídeo nos 60 segundos que o Instagram nos concede (sem ser em formato IGTV), que já se converteram em dois livros: Histórias Viradas do Avesso I e II, da editora Zero a Oito.

Têm sido 13 anos muito intensos, muito vivos, muito felizes. Criar este blogue permitiu-me acompanhar de perto o crescimento dos meus filhos, porque trabalho em casa e, assim, estou sempre cá para eles. E isso... isso talvez seja, de tudo, aquilo que mais valorizo. Estou certa de que a relação que tenho com cada um deles seria outra, se não fosse isto. Não estou a dizer que seria pior (o que seria altamente penalizante para quem não tem a possibilidade de dar aos seus filhos este acompanhamento), estou a dizer que seria outra. E eu não queria outra, queria esta relação, tal e qual como está. 

Obrigada a todos os que estão por aí desde o primeiro dia. 

Obrigada aos que chegaram entretanto. 

Obrigada.

Pandemia: o ser humano em carne viva

Quando li algumas pessoas a dizerem que isto da pandemia nos ia tornar melhores pessoas, sorri. Talvez seja isto, também, envelhecer. Tornamo-nos mais cínicos, menos benevolentes, menos crentes. E a verdade é que não, isto da pandemia não nos tornou em nada melhores. 

Vejo gente a criticar os outros por tudo e por nada. Porque jantaram com uma amiga, porque apareceram numa fotografia abraçados a uma mãe, porque foram uns dias para uma viagem pelo país, porque foram para fora do país, porque foram ao teatro, porque andaram sem máscara numa rua onde não estava absolutamente mais ninguém. O apontar de dedo ao outro tornou-se, à falta de melhor, o desporto nacional de eleição. Já não há estádios para onde ir descarregar as frustrações? Descarregam-se em quem faz a sua vida; e mesmo que seja alguém que tem todos os cuidados e siga todas as regras, basta que ponha um pé em ramo verde (entendendo-se aqui o "ramo verde" por aquela zona cinzenta em que a lei não proíbe mas os arautos da moral covidiana consideram errada) e lá vem a matilha, sedenta de sangue, pronta a estraçalhar a sua mais recente presa.

Repugna-me, tudo isto. Repugna-me a ponto de ficar à beira da náusea. Porque tudo isto é contra-natura, porque é natural que não estejamos sempre 100% certos, porque somos animais sociais e porque sentimos saudades da vida como sempre a conhecemos, ainda que saibamos que o perigo espreita. Quem nunca sente que errou, durante este quase 1 ano que já levamos disto? Quem foi sempre absolutamente exemplar? E ser exemplar é o quê, exactamente? Cumprir o que nos manda o Governo, no desgoverno que tantas vezes revelou (desgoverno esse que, para mim, é facilmente compreensível)? Cumprir mais do que as regras ditadas em cada estado de emergência, sendo mais papista que o Papa? E deixar avós sem ver netos, pais sem abraços e sem visitas, terá mesmo sido sempre o melhor? Estarão uns (os que cumprem até mais do que lhes pediram) e outros (os que de vez em quando, de máscara posta, não conseguiram evitar um abraço a uma mãe, a um pai) 100% certos? 100% errados?

O maniqueísmo voltou em força. De um lado estão os bons, do outro os maus. E é tudo mentira. Somos humanos. Todos erramos, todos fazemos merda, mas andamos, na maioria dos casos, a tentar o melhor que sabemos. Entre a assepcia e o contacto físico que nos falta. Entre o distanciamento e a proximidade. Tentamos, falhamos, voltamos a tentar. Somos humanos a fazer o possível dentro do impossível que nos aconteceu. 

Outra coisa que me encanita é o aproveitamento político disto tudo. Malhar no Governo tornou-se outra das actividades lúdicas da turba. Os que são de direita aproveitam para criticar aquilo que "só podia vir de um governo de esquerda". Os de esquerda apontam as falhas que "só podiam vir de um governo que não é suficientemente social". O Governo abre as portas ao Natal e muitos sentem aquele alívio por poderem juntar quatro ou cinco gatos pingados da sua família, e a seguir vem tudo apedrejar o Governo por ter permitido orgias natalícias servidas com fatias douradas. O Governo fecha e é apupado, o Governo abre e é desfeito. Juro-vos que tenho uma enorme consideração por quem tem de decidir, nesta fase tenebrosa das nossas vidas. Preso por ter cão e preso por não ter é algo a que já me habituei, é certo, mas na minha micro-escala. Não consigo nem imaginar o que será à escala nacional. A verdade é que a manta é demasiado curta. Se puxamos para cima, destapamos os pés, se puxamos para baixo temos frio no peito. A saúde e a pressão nos hospitais, por um lado; a Economia, por outro. Não me lixem (para não dizer pior)! Vocês, treinadores de bancada, é que faziam tudo certo, não é? P*ta que pariu, tanto excelente putativo ministro que Portugal tem, fora do Parlamento!

Durante muito tempo, levei isto na maior. Juro. Tenho a felicidade de ter uma boa casa, uma família estruturada e feliz, e acho que durante todo este tempo temos conseguido estar mesmo bem, juntos. Lemos, vimos filmes em família, fizemos jogos, almoços no terraço, jantares, gargalhadas, parvoíces. Acho que tive este equilíbrio porque achei que era temporário, mais temporário do que se revelou. Mas agora estou farta. Estou cansada, como todos nós. Quero a minha vida de volta. Quero, não escondo. Mas quero sobretudo deixar de assistir a este estado de policiamento geral, a este constante auto de fé, em que a gente até tem medo de dar um passo, não vá virem os lobos raivosos morderem-nos as canelas. A cada dia que a pandemia se mantém, perco mais a fé na humanidade. Não, isto não nos tornou melhores. Isto só nos revelou como somos. E digo-vos uma coisa, a respeito do que acho que somos: cada vez gosto mais dos meus cães.

Entrevista a Carlos do Carmo (Lisboa, 2002)

Agradeço ao Pedro Rolo Duarte (e sempre agradeci enquanto ele viveu, felizmente) pelos melhores anos profissionais da minha vida. Dez anos inteiros de realização profissional diária. Depois disso, tive outros belos e intensos momentos mas, na verdade, podia não ter tido. Podia não ter tido mais nenhum. Porque foram dez anos inteiros de uma aprendizagem, de uma intensidade, e de uma beleza que não conseguirei nunca descrever-vos. Senti, durante dez anos, que não trabalhava porque precisava de trabalhar. Sentia que trabalhava porque amava o que fazia, e morreria se não o fizesse. Sentia que não ia para o trabalho, mas sim para casa. A minha casa, a minha família. Senti que o que fazia era valorizado, e esforçava-me como uma louca para nunca defraudar expectativas. Quando o meu trabalho não estava bem, ensinavam-me a fazê-lo melhor. E assim cresci, sempre a aprender, que é a melhor forma de crescer. Quem é que pode, na sua vida, dizer que teve esta sorte, dez anos seguidos?

Ao longo desses dez anos, fiz algumas entrevistas. Não tantas como, por exemplo, a minha querida amiga Anabela Mota Ribeiro, ou como o Luís Osório, porque eles eram muito melhores do que eu nessa área. E porque eu sempre preferi a reportagem. Ainda assim, fiz algumas entrevistas que me deram um enorme prazer e verdadeiro orgulho na minha profissão. Uma delas foi esta entrevista ao Carlos do Carmo, alguém que eu escutava desde criança, e que pude conhecer em 1996, num jantar no Gambrinus, para uma rubrica também do DNA. Esse jantar, que foi um encontro entre João Braga e Carlos do Carmo, terminou às 6h da manhã, no Snob, e quando dei por mim estava no carro do Charles du Charme, que insistiu em levar-me a casa. Imaginem o que é para uma miúda de 23 anos (mas com a maturidade de uns 16) ser levada a casa por um dos seus ídolos. Não dormi. Tinha começado a trabalhar havia um ano e já me acontecia uma enormidade destas. O que esperar dos próximos? E a verdade é que foram estupendos.

Seis anos depois, mais crescida, já casada e mãe do Manel, senti-me com coragem para lhe fazer a grande entrevista. Surpreendentemente, e apesar de o suplemento já existir, então, há seis anos, ainda ninguém a tinha feito. Fiz eu, mais uma sorte. E ela aqui fica, agora que a nossa voz maior partiu, para quem quiser ler. As fotografias foram tiradas pelo Augusto Brázio.

 

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Entrevista de Sónia Morais Santos

Fotografia de Augusto Brázio

 

Eram três da tarde e chovia e estava um vento de soprar caixotes pelo ar. Toquei no botão à frente do número 10, uma voz perguntou "Quem é?", respondi quem era. Entrei. O elevador transportou-me até ao 10º andar onde um sorriso me esperava atrás de uma porta. Judite, mulher de Carlos do Carmo, pediu-me que aguardasse um momento, perguntou-me o que queria beber, indicou a cadeira onde podia pôr-me à vontade, enquanto esperava o fadista. Lá fora, a chuva e o vento fustigavam as vidraças, os caixotes bailavam dez andares abaixo, pequenos, insignificantes, um casal de pombos procurava na varanda o resguardo da intempérie.

Carlos do Carmo chegou pouco depois. Barba bem feita, rosto liso, camisa irrepreensivelmente engomada. Já nos conhecíamos, dispensámos a fase gélida das apresentações para nos sentarmos juntos a ouvir o seu último trabalho. O disco chama-se "Nove Fados e Uma Canção de Amor" e é absolutamente delicioso, arrojado, diferente. Ouvi-o como quem saboreia devagarinho uma caixa de bombons. Faixa a faixa, um prazer renovado. 

Depois, a conversa. Carlos do Carmo tem 62 anos e uma voz rara. Era para ter sido advogado, seu desejo de menino, depois gestor de hotelaria (desejos dos pais que, sem grandes condições, o enviaram para um colégio de milionários na Suíça) mas quis o destino que se tornasse fadista. Em Janeiro fará 40 anos de carreira. Este é o retrato de um homem. Fadista, marido, pai, filho da grande Lucília do Carmo, neto da Palmira e do Alfredo, do Francisco e da Georgina. Esta é a história de um homem de bairro, companheiro da Judite, sem a qual a sua vida não seria o que é. E o que seria de nós?

 

Tenho estado deliciada a observar a forma como a sua Judite, ao fim de todos estes anos de vida em comum, lhe rodeia cada passo. Atenta sem ser invasiva, preocupada sem ser sufocante. A palavra que me ocorre é dedicação. O que acha de começarmos por aí, por ela?

- Parece-me muito bem. Até porque, digo-lhe desassombradamente, sem a ter encontrado na minha vida eu não seria o homem que sou, nem teria a carreira que tenho. A Judite é uma mulher especial. Muito especial. Uma mãe exemplar, uma mulher dedicada - a palavra que lhe ocorre serve muito bem -, uma amiga atenta. É um ser humano de eleição.

 

Continua apaixonado por ela.

- Completamente. Perdidamente apaixonado por ela.

 

Como é que se conheceram?

- Ela queria conhecer um homem que tinha ouvido na rádio contar a "Estranha Forma de Vida", que foi um fado que eu gravei em 1963 com a orquestra do maestro Joaquim Luís Gomes (felizmente ainda vivo, um grande lírico desta terra, um grande músico, uma pessoa de grande talento, infelizmente muito esquecida). Bom, então uma noite, lá foi ela ao Faia, veio ter comigo e pediu-me para cantar.

 

Com o charme que já na altura devia ter, imagino que não tenha recusado o pedido de uma senhora...

- Cantei os três únicos fados que sabia de cor. No final - estou a ver a cena -, ela estava encostada à parede do bar, com um vestidinho negro de veludo cotelê e uma casaquinha...


Ainda se lembra de como estava vestida?!?

- Sim, sim, lindíssima. E disse-me: "Então muito obrigado por ter cantado". E eu respondi: "Não tem nada que agradecer. Basta que embrulhe os seus olhos aqui no meu lenço". E tirei do bolso o lenço de linho. Diz-me ela, com um sorriso: "Mas, se eu embrulho aí os meus olhos, como é que depois posso ver?" E eu tornei a responder: "Através dos meus."

 

Calculo que ela se tenha rendido imediatamente.

- Seis meses depois estávamos casados. Um ano e meio depois tínhamos a nossa filha.

 

Isso é que é eficiência! Que idade tinha quando foi pai pela primeira vez?

- 26 anos. Queria muito ter uma menina. Podiam vir os rapazes que viessem mas pelo menos uma menina eu queria ter. Assim que a minha sogra me telefonou para o Faia aos gritos "Carlos, é uma menina, é uma menina!" foi uma coisa incrível, inesquecível.

 

Chorou de emoção?

- Não creio. Não. Eu não sou muito de chorar. Nem de alegria nem de tristeza. É raro. Comovo-me mas chorar não. Acho que fiquei assim desde a morte do meu pai. O meu pai morreu quando eu tinha 22 anos de idade, com um ataque de coração. Foi uma coisa fulminante. Fiquei tão chocado, tão chocado que não consegui chorar. Foi um soco no estômago que me deixou sem respiração. Estive 15 dias fora de mim. Não conseguia chorar.

 

E chegou a conseguir?

- Muito tempo depois. Curiosamente, agora com a morte da minha mãe foi diferente. Em privado, com a minha mulher, chorei a morte da minha mãe. Mas não consegui chorar a morte do meu pai. Foi uma coisa tão violenta, tão violenta, que julgo que me dominou em relação ao choro.

 

Perdeu-o muito cedo.

- Muito. Tenho muitas saudades do meu pai. Nunca tomei nenhuma decisão importante da minha vida sem conversar com ele. Imagino sempre de que forma ele reagiria, o que pensaria de mim.

 

O seu pai não chegou a conhecer o artista.

- Não. Lembro-me sempre de o ouvir dizer: "Artista, espero ter aturado este e não aturar mais nenhum!". Porque não era fácil a relação com a minha mãe, como calcula, não é fácil a relação com um artista. E, de facto, o meu pai morreu antes de conhecer o artista. Pergunto-me muito como é que ele reagiria a tudo isto. Fez tantos sacrifícios para me pôr a estudar na Suíça, num colégio extraordinário, e depois eu acabo artista, precisamente aquilo que ele não queria que eu fosse. Meu pobre pai...

 

Tenho a certeza que teria muito orgulho em si.

- Talvez. Não sei. Não sei. Tenho tantas saudades dele. Fez-nos falta, à minha mãe e a mim. A minha mãe ficou viúva nova e tinha muitos projectos com ele, ainda. Sabe que eu tinha uma visão muito romântica da aposentação da minha mãe e do meu pai. Os dois velhinhos e eu a cuidar deles, eu a ganhar a vida para os ter bem. Para lhes retribuir o esforço imenso que eles fizeram. Sabe o que é dois sujeitos que não tinham meios para isso, porem o filho a estudar num colégio de milionários na Suíça? É uma loucura completa. E eu queria retribuir isso, percebe? Queria tê-los ao meu lado, velhinhos mas muito bem cuidados. Era um dos meus planos de vida. Esse plano falhou.

 

Não falharam outros.

- Pois não.

 

Nasceu na Mouraria, viveu no bairro da Bica até casar... 

- Homem de Lisboa, homem de bairro, fadista! E trabalhei até aos 40 anos no Bairro Alto. 

 

Lembra-se da casa da sua infância?

- Muito bem. Passámos por períodos muito difíceis, mas tenho recordações muito agradáveis. Viver num bairro antigo, à época, era como viver numa aldeia. Lembro-me que os meus pais saíam à noite para ir trabalhar e eu ficava sozinho. E, às vezes, o padeiro, o senhor Artur - lembro-me tão bem! - ajudava-me a descer da janela para ir brincar com os outros miúdos para a rua. Depois punha-me outra vez lá em cima. Tudo sem os meus pais sonharem. Tudo isto só era possível vivendo daquela forma fraterna, solidária. Muitas vezes recebo amigos de outros países e vamos juntos percorrer o bairro da Bica a pé. Lá vêm os meus contemporâneos à janela perguntar: "Então o menino está a mostrar o nosso bairro?". É essa a Lisboa que eu amo. Essa Lisboa muito profunda.

 

Além dos seus pais, que outras pessoas fazem parte da sua infância?

- Os meus quatro avós, de quem guardo uma imensa saudade. A Palmira e o Alfredo, pais do meu pai. Morreram era eu criança mas recordo-os perfeitamente. O meu primeiro contacto com a morte dá-se com o meu avô Alfredo e é um contacto violento. O meu avô tinha um cancro na garganta e sentiu-se mal. Morreu-me nos braços enquanto a minha mãe saiu de casa a correr para ir chamar o médico. Foi o meu primeiro contacto com a morte. 

 

Que idade tinha?

- Uns seis, sete anos. Foi muito violento, muito marcante. Ele era um avô austero, o meu avô Alfredo. Um homem especialíssimo. Bastante introvertido mas com uma grande integridade. Para ter uma ideia, ele era fiscal da lota do peixe na Praça da Ribeira, e em casa comia-se o peixe mais barato. Quando, à época, os fiscais das lotas de peixe tinham todos prédios em Lisboa (e não era com certeza do ordenado!). Portanto, está a ver de quem sou neto, não é? Esse senhor, por sua vez, era casado com a dona Palmira, uma pessoa encantadora. Ainda hoje digo à minha mulher: ninguém fazia pastéis de bacalhau e arroz de tomate como a minha avó, ninguém! Além disso, era uma camiseira criativa de uma famosa camisaria de Lisboa, a Carnaval de Veneza! Fazia camisas à mão. Era uma artista!

 

Faço ideia do primor com que andava vestido.

- Eu?! E o meu pai? A minha avó fazia umas camisas especiais para o meu pai. Camisas e gravatas especialmente esmeradas para o seu menino. Essa minha avó foi uma pessoa que me ensinou uma máxima para a vida inteira. E disse-me uma coisa que eu nunca mais esqueci: "Menino, temos que ter sempre a nossa personalidade. Se alguém nos quiser pôr a pata em cima, a gente não deixa. Nem que para que ganhar a vida a gente tenha que lavar escadas." É por isso que algumas pessoas me chamam arrogante. Não sou. É apenas um problema de postura. Não ponho o pé em cima de ninguém, mas ninguém tente pôr o pé em cima de mim. 

 

E os outros avós?

- Os meus avós maternos: a minha avó Georgina e o meu avô Francisco. O meu avô morreu já eu estava casado e era pai de filhos. Gente tão bonita, tão especial...Foram tão importantes no meu edifício. Vou contar-lhe uma história do meu avô Francisco. Uma história notável. Ele já estava muito velhinho e sentia-se diminuído. A minha filha casou e eu insisti muito com ele que viesse ao casamento. Mas ele disse-me que não. "Ó neto, não leves a mal. Não me vou sentir à vontade. Já não estou muito bem. Mas gostava de lhe dar uma prenda." Ele tinha, na altura, 50 contos. Era todo o seu dinheiro. Diz-me ele: "Achas bem que eu dê isto à tua filha?" E deu tudo o que tinha como prenda de casamento à minha filha.

 

Isso diz tudo. 

- Diz, não é? A minha avó Georgina era outra pessoa muito bonita, tão bonita quanto vai ouvir. Ela morreu estupidamente atropelada por um autocarro da Carris, em frente ao cinema Império. A notícia em primeira mão veio ter comigo. E eu fui dando essa notícia aos seus filhos, um a um. Sabe o que cada filho me disse? "De quem ela gostava mais era de mim". Não houve nenhum dos seis que não me dissesse isso. Essa era a Georgina. 

 

São, juntamente com os seus pais, os seus pilares, a sua estrutura. Porque somos também o resultado de toda a matéria-prima que nos cerca.

- O meu edifício é bom. 

 

Consegue distinguir cheiros da sua infância? Pergunto-o porque os bairros antigos são geralmente ricos em odores vários. Tem um memória olfativa da sua infância?

- Nem por isso. Só se for o arrozinho de tomate da minha avó, os pastelinhos de bacalhau... E, claro, guardo sempre aquele cheiro do rosmaninho, o cheiro a alecrim das festas dos bairros populares. Pouco mais.

 

E tons?

- Sem a querer desiludir, tenho de lhe dizer daltónico. Não sei combinar cores. Se a minha mulher não me ajudar a vestir é uma desgraça. Mas gosto muito de azul, é a minha cor de eleição. E gosto de uma rosa vermelha.

 

Costuma oferecer?

- Sim senhor. A minha Maria Judite de vez em quando recebe uma, assim de surpresa. E se estamos num restaurante - agora é muito comum aparecerem a vender - ah, eu se posso gosto logo de oferecer às senhoras que estão na mesa!

 

Não foi à toa que o Ary [dos Santos] o alcunhou de Charles du Charme...

- Sei lá, se calhar sou. Conhece artistas que não sejam? Um artista é um sedutor. Em palco é das coisas de que mais gosto, seduzir as pessoas. Mas seduzir para as coisas boas da alma. Estarmos ligados. 

 

Falávamos em cheiros e em tons. E que sons tinha a sua infância? Imagino que, inevitavelmente, guarde na memória a voz da sua mãe a cantar.

- Claro. A voz dela a ensaiar em casa. O meu pai é que lhe ensinava os fados. Era o mestre. Ensinava-lhe a dicção, ensinava-lhe como se cantava. O meu pai sabia muito de fado, como pouca gente. Além da minha mãe habituei-me a ouvir velhos fadistas que não deixaram registo fonográfico. Ia pela mão dos meus pais às verbenas, ouvi-los. Tenho registo de memória de grandes fadistas desaparecidos, de quem, infelizmente, não há  registo sonoro. 

 

Fale-me da sua mãe.

- A minha mãe era uma pessoa, a vários níveis, especial. Era uma pessoa com uma personalidade fortíssima, com uma intuição rara. Era uma pessoa que se tivesse tido a possibilidade de estudar, teria sido brilhante. Mas posso dizer-lhe com muita vaidade que quem sabia de fado naquela geração, gostava muitíssimo da Lucília e considerava-a o paradigma do fado.

 

Mas, e como mãe? Perguntava-lhe pela sua mãe, não pela Lucília do Carmo, fadista.

- Acho que nós artistas dificilmente somos bons pais. Muito dificilmente. É complexo. Há sempre um conflito entre o nosso narcisismo, o nosso culto da personalidade inevitável, a nossa carreira, e a disponibilidade real para os outros. Há-de reparar que os filhos de artistas, de uma maneira geral, dificilmente se equilibram. Os meus filhos tiveram a sorte de terem a mãe que têm. É nela que está grande mérito. Eu tive essa sorte do lado do meu pai. O meu pai ajudou-me a conseguir algum equilíbrio porque, efectivamente, a minha mãe, sendo artista, era uma pessoa muito virada para ela própria. Naturalmente que, ao dizer isto, não estou a criticá-la! 

 

E se estivesse? Que mal tem criticar aqueles que amamos?

- Nenhum. Aliás, ao falar dos artistas em geral estou a criticar-me a mim próprio também. Eu e a minha mãe tivemos, por morte do meu pai, necessidade de trabalhar juntos. Eu fiquei a gerir a casa de fados e, depois, comecei também a cantar. Inicialmente, a nossa relação de trabalho foi tensa, difícil, ralhada. É normal. Éramos duas pessoas de gerações diferentes, os dois a mandar, nem sempre dava certo. Claro que, depois, houve pessoas mal intencionadas que especularam sobre isso, disseram que havia uma má relação entre nós... 

 

Disseram até que a saneou.

- Exacto. Tenho uma má recordação sobre isso. Feia, muito feia. Uma calúnia, um boato muito feio, muito feio. Foi um momento em que, para se deitar uma pessoa abaixo, valia tudo. Sei que a minha mãe tinha uma imensa vaidade em mim. 

 

Mostrava-lhe ou sentia-o?

- Sentia-o. Tal como o sentia da parte do meu pai. Ele gostava que eu intuísse as coisas, que reflectisse sobre elas. Vou contar-lhe uma história que nunca contei. Eu tinha 12 anos e o meu primeiro professor de História Universal foi o professor José Hermano Saraiva. Um homem que contava a História de uma forma empolgante, inesquecível. E um dia, numa das aulas, de uma forma inflamada, o professor falou do Salazar como sendo a pessoa mais importante do mundo. À hora do almoço, sentado à mesa com os meus pais, entusiasmadíssimo com a lição, desatei a dizer maravilhas sobre o Salazar. O meu pai, que nunca até então me tinha batido, levantou-se, deu-me duas grandes bofetadas e não me disse mais nada. Morreu quando eu tinha 22 anos de idade e nunca me disse porque é que me deu aquelas bofetadas. 

 

Quis que descobrisse sozinho a razão.

- E assim construiu um antifascista. 

 

Com a ajuda do professor Hermano de Saraiva, o que não deixa de ser uma ironia. Continua a auto-intitular-se um "amigo do Partido Comunista"?

- Continuo.

 

Apesar de toda a convulsão interna, apesar da saída de nomes como Carlos Brito?

- Entristece-me muito ver a família comunista desavinda e publicamente não quero fazer mais nenhum comentário.

 

Muito bem. Há dois anos e meio apanhou um enorme susto, soube que tinha um aneurisma na aorta. Como recebeu essa notícia?

- Foi terrível. Fui para o hospital com uma crise renal e acabo por descobrir que tenho também um aneurisma na aorta com quase 10 cm. 

 

O que sentiu?

- Deixei de sentir dores nos rins. (Risos). A sério! Fiquei de tal modo gelado que a crise renal passou para segundo plano. Um aneurisma na aorta com quase 10cm? Se aquilo rebenta, não há nada a fazer. 

 

É, literalmente, a morte do artista...

- Nem mais. Depois desse susto inicial, foi-me dito que só tinha hipótese de sobreviver num hospital especializado neste tipo de intervenções cirúrgicas, em Houston, nos EUA. E assim foi, estive quase dois meses à espera de partir para ser operado. 

 

Como foram esses dois meses?

- Angustiados. Muito acarinhado pela minha mulher, pelos meus amigos, pelos meus filhos. Muito protegido. Mas muito angustiado. Queria de uma vez por todas fazer a operação e ver se resolvíamos de uma vez por todas esta situação. Tinha 4 hipóteses: ou morria na operação, ou ficava paraplégico, ou ficava tontinho, ou sobrevivia. A primeira operação correu mal, a segunda operação correu mal...

 

Correr mal significa o quê?

- Já me tinha acontecido antes, quando fui operado ao baço. Faço infecções. Portanto, cada vez que fui operado surgiu uma infecção. Guardo disso uma memória muito gira e até cómica! À terceira operação, o cirurgião, o maior especialista em aneurismas deste mundo, e um homem que tem todo o ar de quem não gosta de perder nem a feijões, sentou-se aos pés da minha cama, olhou para mim com ar severo - todo eu era tubos por todo o lado, tubos na boca, no nariz, nos ouvidos - e diz: "Bom, acabou-se! Já não vai ter mais nenhuma operação, você vai recuperar, e sabe porquê? Porque você é um homem cheio de sorte, você é um homem cheio de saúde!"

 

Ele estava furioso consigo, como quem diz: "Deste-me luta, mas venci-te!"

- E venceu. À terceira venceu. Tudo isto acontece em dois meses. Três operações de anestesia geral, de alto risco. Numa das vezes até a extrema-unção recebi. Foi muito complicado. Mas já lá vai. Já lá vai.

 

Custa-lhe falar nisto?

- Não. Não me custa nada falar. É até um bom exercício de humildade, esta coisa da finitude, a gente confrontar-se com ela. Para dizer a verdade, eu já tinha feito o curso geral dos liceus, quando caí do palco e fui operado ao baço e estive a morrer. Desta vez completei a licenciatura e o doutoramento. Estou um especialista em confrontos com a morte. 

 

Achou que ia morrer?

- Achei. Senti-me a morrer. Despedi-me da minha mulher. Tenho plena consciência disso. Ela negou, agitou-me, sacudiu-me as mãos e disse que não, nem pensar. Tive uma conversa com ela: "Olha, os filhos estão criados, tu és uma mulher muitíssimo capaz, e pronto, está a chegar o momento, não consigo resistir a isto, não tenho capacidade, já não sou capaz de lutar mais." E tive bem a consciência que estava a morrer. Claro que depois, o ter tido a possibilidade de recuperar, alterou profundamente a minha filosofia de vida. 

 

O que é que mudou?

- Muita coisa. Para começar estou muito mais calmo, vivo mais devagar. Pela primeira vez na minha vida, tenho juízo. Há momentos em que não me reconheço. De resto, sou um homem mais tolerante, vejo menos a vida a preto-e-branco do que via. Vivo melhor.

 

Como reagiu a sua família a este susto?

- Foi imbatível. A minha mulher esteve sempre ao meu lado. Sempre, sempre. Levou daqui uma mala cheia de livros e um telemóvel que não parava de tocar. E acompanhou-me constantemente, a todo o momento. Estou convencido que não teria sobrevivido se não a tivesse sempre ao meu lado. Tenho poucas certezas na vida mas deixe-me dizer isto com alguma certeza: sem ela não teria sobrevivido.Ela viveu durante dois meses, dia e noite, intensamente só para mim. E os filhos iam e vinham. E muitos telefonemas, muitos telefonemas. Senti-me muito apoiado. 

 

Disse há pouco tempo "perfeitamente preparado para morrer". Isto é realmente possível quando se ama a vida?

- Continuo a dizê-lo. Não foram palavras de circunstância. Assimilei profundamente a finitude. Estive tão próximo, senti de tal forma que a morte é uma realidade, que já não faço disso um drama da minha vida.

 

Fazia?

- De certa forma. Não se esqueça que vi como a minha mãe acabou. A minha mãe terminou com Alzheimer, uma doença sinistra. Terminou com 25kg de peso, sem reconhecer nada nem ninguém, dobradinha como se fosse um feto. É sinistro. Eu dizia: "Deus me proteja desta situação". Nesse aspecto é que eu posso ainda temer a morte. O sofrimento que antecede a morte. Mas, repare, o facto de estar preocupado não quer dizer que não queira continuar vivo por muitos e longos anos. Quero, pois! Tenho a minha mulher, os meus filhos, os meus netos que são a minha paixão...

 

Os netos provocam quase sempre esse arrebatamento nos avós.

- Temos tempo, temos outro tempo. Vivemos com os netos coisas que a vida não nos permitiu viver com os filhos. É muito grave que assim seja, mas é. Daí que ser avô seja uma espécie de resgate. Resgate dentro do amor. É muito particular. As coisas que eles dizem...

 

Mas acha que eles dizem coisas que os filhos não diziam ou agora é que está disponível para ouvir...

- A relação não é igual. A relação com os netos é mais irresponsável. Somos um complemento. Com os meus filhos, apesar da excelente relação que temos, não tive tempo. Estava muito ocupado. Quando me dei conta que os dois mais velhos saíam de casa, aos 21 anos, para casar, nem queria acreditar. Quando a minha filha disse que ia casar, tive uma neura que andei um mês intratável!

 

Se pudesse voltar atrás dava mais do seu tempo aos filhos, teria sido um pai mais presente?

- Completamente! Essa é uma grande lacuna na minha vida. 

 

Mas sendo um apaixonado pelo trabalho, pela carreira, sendo um artista com todos os conflitos de que falava há pouco, como é que podia fazer diferente?

- Era uma questão de gestão. Também fui muito boémio. Muito boémio...

 

Era um malandro...

- Pode quase dizer-se que sim. Quase malandro. O prazer da noite que, aliás, se mantém. Sou um homem que continua a deitar-se tardíssimo. Simplesmente, não vou é para bares até às tantas com malta de vinte anos, armado naquilo que não sou, não é? Mas fui muito boémio, um disparate.

 

E a sua Judite perdoava-lhe sempre as noitadas?

- Oh, caramba! Esta mulher tem uma capacidade de me perdoar absolutamente espantosa.

 

Tenciona retirar-se, deixar de cantar?

- Não queria planificar a minha retirada, mas tenho consciência que não está muito longe. Não queria fazer como o Sinatra, que anunciou a retirada e depois voltou. E eu percebi porque é que voltou. E fiquei muito contente porque ele cantava muito bem. Quem gosta muito disto é capaz de não ter muita facilidade em deixar. Eu gosto muito daquilo que faço mas tenho um pavor do ridículo que é superior. Portanto, serei capaz de, no momento certo, parar.

 

E depois?

- Depois? Estou neste momento a tirar um curso intensivo de uma coisa que vou praticar muito: a preguiça! 

 

Ah, a preguiça...

- Assumida! Disponibilidade, tempo. Todo o tempo. Foram 60 anos sem parar. Sempre a correr. Agora sabe-me bem quando me perguntam "o que vai fazer hoje?" dizer "nada". Ficar assim, a fazer coisa nenhuma, com a barba por fazer. 

 

Aqui há uns anos largos, anunciou a sua retirada. Dizia: "Aos 50 anos deixo de cantar". Porque é que o fez?

- Porque senti vontade. Naquela altura senti vontade de o dizer. Fui franco. 

 

Mas porquê aos 50? Sentia-os como uma espécie de "deadline"?

- Houve um período da minha vida em que tinha o pânico de morrer até aos 56 anos, porque o meu pai morreu aos 56. A minha pobre mulher levou uma vida inteira a ouvir-me dizer que ia morrer novo. Quando ultrapassei os 56 anos respirei de alívio. Depois, houve outro tabu que tive de ultrapassar. A minha mãe, aos 60 anos, cantava maravilhosamente, melhor que nunca, e deixou pura e simplesmente de cantar. Nunca mais cantou. E eu devo ter metido na cabeça que aos 50 seria uma boa altura para deixar de cantar. 

 

Seria o tal medo do ridículo, de achar que aos 50 anos já não teria voz para continuar?

- Talvez. Mas nessa matéria sei que estou protegido. O meu núcleo duro familiar e o meu núcleo duro de amizades está suficientemente atento para me dizer: "Carlinhos, chegou o momento". 

 

No ano passado, quando voltou depois de 14 meses de interrupção (por causa da doença), cantou no Casino Estoril... 

- ... pela mão do meu muito querido amigo Mário Assis Ferreira, que é uma pessoa de uma grande sensibilidade e que sabe tratar os artistas como pouca gente sabe nesta terra. 

 

O que acha desta ideia do casino no Parque Mayer?

- Com ele à frente não me repugna nada. Porque ele gosta tanto de nós artistas e de música como gosta de tomar conta do lugar que toma. O pior é se quem vem a seguir só gosta do lugar que tem. 

 

Que opinião tem do presidente da Câmara Lisboa e mentor deste projecto para o Parque Mayer, Pedro Santana Lopes?

- Sabe uma coisa? Tenho apreço por sedutores. E acho que ele conseguiu algo que mais ninguém conseguiu neste país. Seduziu os artistas. E quem seduz os artistas é vencedor seja onde for. Gosto realmente de sedutores. 

 

E eu gostei muito de conversar consigo.

- Obrigado. Eu também gostei muito desta nossa conversa. 

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