Hoje trago-vos uma entrevista que fiz a Raquel Gil-Gouveia, médica neurologista e coordenadora do Centro de Cefaleias do Hospital da Luz Lisboa, sobre Enxaqueca. Uma das maiores especialistas nesta doença, fala sobre sintomas, causas e consequências.
Começo por uma pergunta mais genérica, mas que pode ajudar muita gente a compreender melhor esta patologia: o que é, afinal, a enxaqueca?
- A enxaqueca é uma doença e é preciso reconhecê-la como uma doença. Um dos principais motivos pelos quais ainda hoje é, por vezes, incompreendida prende-se com o facto de, durante séculos, ter sido considerada um distúrbio mais psicológico mesmo pela comunidade médica. Nos anos 50-60, com uma série de experiências, começou a compreender-se que havia, de facto, uma série de disfunções e alterações confirmando que, afinal, se tratava de uma doença. Uma doença do cérebro.
O facto de se ter demorado tanto tempo a diagnosticar-se a enxaqueca como uma doença prende-se, imagino, com o facto de ela não poder ser detetada em exames ao cérebro. Ou seja: não há nada de visivelmente diferente nos cérebros das pessoas com enxaqueca?
- O facto de não haver um “marcador” que defina o diagnóstico pode contribuir para dificuldade de diagnóstico ou definição do problema. Não há nada de estruturalmente diferente, mas, ao longo do tempo, foram-se descobrindo várias diferenças no cérebro, nas crises e fora das crises (ou seja, o cérebro das pessoas que sofrem de enxaqueca funciona de forma diferente, mesmo fora das crises). É um pouco como um computador: o hardware de dois computadores pode ser igual, mas o software é diferente. E sim, isso dificultou bastante a valorização da doença, mas há outras razões... e uma das razões, infelizmente, é ser uma doença mais prevalente nas mulheres. E, como a enxaqueca está muito associada às fases menstruais, criou-se um estereótipo: de que seria uma condição hormonal, histérica... enfim. O curioso é que há descrições da enxaqueca desde os Egípcios. Só que, entretanto, a evolução da Medicina centrou-se mais na sobrevivência das pessoas e a enxaqueca não mata. Sabemos hoje que mói e muito, e felizmente os médicos começaram também a preocupar-se com a qualidade de vida.
Então, e em termos clínicos, como se manifesta esta doença?
- O cérebro espontaneamente desencadeia uma crise, com vários sintomas, o mais importante dos quais é a dor, mas não é o único. Essa crise é autolimitada, isto é, tem uma programação para ela própria acabar. As crises, por definição, duram de 4 a 72 horas, sem tratamento. Começam devagarinho e, às vezes, não é a dor o primeiro sintoma: as pessoas sentem-se mais cansadas, mais paradas, sonolentas, desconcentradas, com uma moinha que vai aumentando, podem sentir um enjoo... e depois vai em crescendo: a moinha passa a dor, tipicamente em metade da cabeça (é por isso que se chama enxaqueca, do árabe as-saqiqa, metade da cabeça), mas também pode doer toda a cabeça. Há uma intolerância à luz, ao ruído, ao movimento. A pessoa fica incapaz de se mexer, de pensar, pode ter visão turva, o pescoço dorido, e a dor torna-se mais pulsátil quando se agrava. As náuseas podem aumentar e o doente pode vomitar. Algumas pessoas (15%) podem ainda ter aura, que é um fenómeno neurológico transitório que consiste numa perturbação visual. As pessoas passam a ver metade do mundo distorcido, desfocado. Também há quem sinta os dedos dormentes, depois a mão, o braço, a cara de um lado, a língua e algumas pessoas ficam mesmo com dificuldade em falar.
Isso pode ser assustador porque facilmente confundível com outras doenças agudas.
- Sim, muitas pessoas julgam estar perante um AVC. Mas se for uma enxaqueca típica percebemos facilmente a diferença, porque há uma sequência de sintomas, enquanto no AVC é tudo abrupto.
É uma doença hereditária?
- É uma doença familiar. Ou seja: há maior propensão de passar para membros da mesma família, e não tem de ser para um filho ou neto. Agora, se uma mulher com enxaqueca tiver uma filha, há 2/3 de probabilidade de a filha ter. Entre mãe e filha a carga hereditária é muito pesada. Porque existe a parte genética e a hormonal.
Além do tal “software” diferente no cérebro das pessoas que têm enxaqueca, que provoca as crises per se, há também fatores externos, do quotidiano, que podem desencadear crises. Quais são?
- São vários: as menstruações no caso das mulheres (é o fator desencadeante mais frequente e consistente), alterações do padrão do sono, isto é, dormir pior numa noite ou dormir mais ao sábado, por exemplo. O stress é outro desencadeante, ou então até pode acontecer que a pessoa passe por um período de grande stress e não tenha nada e, de repente, relaxa e tem uma crise. Depois, há o fator alimentação: ficar muito tempo sem comer (a hipoglicémia associada ao jejum), desidratação. E há quem seja sensível a alguns alimentos ou bebidas em particular. O álcool é o mais frequente, o chocolate, para algumas pessoas também o queijo, os citrinos, alguns aditivos da comida chinesa ou indiana. E depois há quem tenha sensibilidade a coisas muito particulares. É muito variável. O exercício por vezes pode igualmente desencadear uma crise, o calor (as pessoas melhoram geralmente no inverno).
Quais são as consequências da enxaqueca na vida das pessoas?
- Ui... é toda uma panóplia. Claro que o impacto depende da intensidade das crises e da sua frequência. Obviamente que as pessoas que têm crises mais intensas e frequentes têm um maior impacto – alguém que tenha 15 ou mais dias de dores por mês, ou seja, alguém que esteja mais tempo com dor do que sem dor, tem um impacto enorme. Estes são os doentes com enxaqueca crónica, e representam 2 a 3% da população europeia. Felizmente, a maior parte não tem muitas crises. O típico são duas ou três crises por mês. As consequências são muitas: faltar ao trabalho porque não se consegue sair da cama, ter problemas familiares, sociais, ansiedade, oscilações de humor, depressão. A ansiedade de ter uma nova crise é típica, o que pode provocar por si só uma crise. As pessoas têm medo de assumir maiores responsabilidades no trabalho, têm medo de ir de férias com amigos (imagine alguém que vai uma semana de férias e fica 3 dias na cama com enxaqueca, estragando a semana a toda a gente). Começa a haver uma incapacidade “intercrítica”: não vão jantar fora, não vão de férias, não aceitam cargos de maior responsabilidade... e com isso aumenta a frustração, a sensação de fracasso. Os crónicos (os tais 2% que têm mais dias com dores do que sem dores) têm mais divórcios, mais desemprego, tomam mais analgésicos, sendo que a utilização continuada de analgésicos faz com que o cérebro, quando não está sob o efeito deles, comece a desencadear uma moinha permanente, ou seja, há uma cronificação da dor. É muito difícil.
Tem aumentado o número de pessoas com enxaqueca?
- É difícil dizer se a prevalência está a aumentar porque a verdade é que há muito mais estudos sobre o assunto. Há uma charity inglesa chamada “Lifting The Burden” que tem feito um estudo muito completo sobre a incidência mundial e, assim, hoje temos dados que antes não tínhamos.
As crianças também podem ter enxaqueca?
- Podem, podem! O problema é que há sempre uma via sacra que esses miúdos têm de percorrer até serem diagnosticados com enxaqueca. O processo é mais ou menos este: os miúdos começam a queixar-se de dores de cabeça e vão ao oftalmologista, para ver se será dos olhos. A seguir, vão ao otorrino, para descartar a sinusite. Ainda consultam o dentista, não vá ser algum desvio mandibular. E, por fim, vão ao neurologista. Mas, sim, os miúdos têm enxaqueca, é verdade. Aliás, podem ter manifestações desde bebés, através de equivalentes como a vertigem paroxística, o torcicolo paroxístico que, mais tarde, passam a ser enxaqueca. A partir dos 2, 3 anos os miúdos já conseguem explicar e dizer que têm dores de cabeça. Por vezes podem ter enxaqueca abdominal – estão enjoados, dizem que lhes dói a barriga, ficam olheirentos, quietos... é outra das formas equivalentes de enxaqueca que, mais tarde, se convertem nela propriamente dita. De qualquer forma, quando incide em crianças, é mais frequente aparecer pelos 6 anos de idade. Na puberdade, as raparigas têm um pico de incidência associado às alterações hormonais. Aos 15 anos, há 3 vezes mais raparigas do que rapazes com enxaqueca. Mas, em geral, o mais frequente é que a enxaqueca comece entre os 20 e os 30 anos. Normalmente, diminui com o avançar da idade e, 2/3 das mulheres tem um decréscimo significativo da frequência e da intensidade, depois da menopausa.
Imagino que, além dessa via sacra, ainda terão outra, a de terem os pais a acharem que é mentira, que é manha, que é para não irem para a escola... isso e os próprios professores, a pensar o mesmo.
- Isso é muito importante. Muitas vezes os pais pensam: “Ah, se calhar está a imitar-me, está a chamar a atenção”. Tenho a dizer o seguinte: normalmente quando os miúdos se queixam, é porque sentem. É muito raro, acho que nunca vi, um miúdo inventar uma coisa destas. Se diz que dói, é porque dói. Até pode não ser enxaqueca, mas também pode ser. E até pode ser enxaqueca agravado por um motivo psicológico – imagine, um miúdo que não está adaptado à escola. Como sabemos, o stress pode desencadear a enxaqueca. Há crises que são muito visíveis: as crianças ficam brancas, olheirentas, não querem comer, ficam prostradas no sofá. Depois também há as crianças que têm crises fraquinhas, que duram 1 ou 2 horas. Às vezes encostam-se um bocadinho, distraem-se e aquilo passa. Além disso, os miúdos têm uma facilidade que os adultos não têm: se um adulto se deitar com uma enxaqueca no seu início, sem tomar medicação, quando acordar estará a explodir de dor de cabeça. Os miúdos não. Por vezes basta mesmo que durmam uma meia hora e acordam ótimos. Tenho escrito bastantes recados para as escolas de crianças diagnosticadas com enxaqueca a pedir para que, quando eles se queixarem, arranjarem um espaço onde eles possam dormir um bocado. Mas, claro, por vezes é preciso mesmo medicar, porque pode não ser suficiente apenas o sono.
Porque é que se interessou por uma área que foi, durante tanto tempo, mal-amada pela Medicina?
- Na verdade, começou com um episódio particular, ainda na faculdade. Estava em Medicina, no 5º ano, e numa aula de Neurologia, o professor Castro Caldas disse que havia o mito de as pessoas terem dores de cabeça quando precisavam de trocar de óculos. Dizia ele que não era verdade, que não passava de um mito. E eu, que sempre que aumentava de graduação tinha dores de cabeça (e era por isso que ia ao oftalmologista, comprovando-se a alteração na visão), discordei, ao que ele respondeu: “Então se não concorda, prove!” E eu fui ter com a professora Isabel Pavão Martins, professora associada da Faculdade de Medicina, propus o estudo, fizemo-lo em conjunto, ainda eu era aluna, e acabou por ser publicado numa revista internacional.
Em suma, não a provoquem!
- Não me provoquem. (risos) Mas pronto, podia ter feito o estudo e ter-me dedicado a outra coisa. Mas depois fui percebendo que as pessoas com enxaqueca eram muito pouco compreendidas (ainda são, mas na altura eram ainda mais) e têm um sofrimento profundo, desvalorizado até pela comunidade médica. Acho que foi também por isso que me interessei por esta área: temos as armas, temos os doentes, vamos lá diminuir o seu sofrimento e melhorar a sua qualidade de vida.
E acha que vamos um dia ter uma cura para esta doença?
- Daquilo que sabemos, acho que é difícil haver uma cura, um tratamento único que resolva o problema de uma vez. Não é impossível, mas é difícil. Agora, vamos é ter medicamentos cada vez mais eficazes e com menos efeitos secundários – já estamos, de resto e felizmente, a entrar nessa geração. Para o bem destas pessoas que, de facto, passam por muito.
*Post em Colaboração com Dá Voz à Tua Enxaqueca, para mais informações, consultem o Facebook e Instagram.