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Há quem lhes chame loucos. Irresponsáveis. Sonhadores. Visionários. Aventureiros. Empreendedores. Destemidos. Corajosos. Inconscientes. Há quem saiba da história e pense "eu nunca". Há quem engula em seco e suspire um "quem me dera". Há quem se sinta inspirado, e quem jamais tivesse a ousadia ou até a vontade. Difícil mesmo é ficar indiferente a esta aventura.
Inês Saldanha, 37 anos e João Pisco, 44, são o casal que decidiu deixar tudo e ir com os 4 filhos (Alice, 10 anos; Manuel, 8 anos; Francisco, 5 anos; Teresa, 2 anos) numa viagem de veleiro pelo mundo fora, sem tempo definido (mas com a estimativa inicial de irem por uns 4 anos, altura em que a Alice terá 14 e os pais não querem privá-la de uma adolescência normal). Partiram hoje. E, com eles, vai o sonho e a vontade de viver uma vida que valha mesmo a pena. Num país de viajantes como o nosso, de marinheiros e descobridores, é curioso que se contem pelos dedos de uma mão as famílias que se fizeram ao mar. Talvez nos tenhamos tornado menos intrépidos, menos bravos, talvez tenhamos passado a pesar e a medir demasiado os prós e os contras e a preferir jogar pelo seguro. A verdade é que decisões como a da Wind Family (como baptizaram o projecto) são relativamente comuns em outros países da Europa, mas aqui não.
Tudo começou há 17 anos, quando Inês e João ainda nem namoravam. "Estávamos num bar e ele às tantas diz: 'O meu sonho é ter uma família grande, com muitos filhos, ter um barco, e irmos todos a navegar mundo fora.' Aquilo atingiu-me como uma seta. Uau! É isto! É ele! Eu, que queria ter 4 filhos, fiquei logo com uma paixão assolapada que me fez terminar um namoro de 2 anos. Aparentemente fiz bem. Começámos a namorar em 2004, casámos em 2009, temos 4 filhos, e vamos agora realizar o sonho da vida do João, que passou a ser também o meu."
A conversa sobre a viagem ao mundo vinha frequentemente à baila, mas tão distante como quando sonhamos com o Euromilhões. Era um sonho longínquo mas permanecia presente. Inês, assistente social de formação, criou uma empresa de eventos com uma sócia. João, licenciado em Filosofia, foi sempre professor de fotografia (e sempre velejou, desde os 18 anos). Até que, há 7 anos, estavam de férias no Algarve, e Inês, que estava numa fase profissional de grande intensidade ("estava a bombar, com eventos a toda a hora, a achar que era a dona disto tudo, a ganhar bem, a sentir-me a maior") disse, quase irritada com a sua própria falta de iniciativa no que àquele sonho dizia respeito: "Então mas eu faço acontecer tudo e não faço acontecer este projecto? Vamos lá para a frente com isto!" E pronto. Estava dado o pontapé de saída. Ou, para usar terminologia náutica, estava o ferro levantado. "Quando eu meto alguma coisa na cabeça é um problema para ma tirar de lá."
Começaram a juntar dinheiro e a fazer listas: escolas, necessidades, destinos, barcos, procedimentos médicos. "Estou há anos a ver vídeos de como coser feridas, como agir em caso de queimadura, em caso de queda, em caso de qualquer coisa. Neste momento sinto-me uma médica, sinto-me uma enfermeira, sinto-me capaz de tudo! A verdade é que tenho de me sentir segura, mesmo que seja a fingir...", ri-se Inês Saldanha. Os preparativos foram sendo feitos, com altos e baixos, mas cada vez mais certo. De qualque modo, Inês não queria perder de vista a realização do seu próprio sonho, antes de embarcar no sonho do marido: ter 4 filhos. Já tinha a Alice e o Manel. Ainda lhe faltavam dois.
Quando a poupança começou a ficar com um volume interessante, João começou a ver barcos e, em Maio do ano passado, houve um dia em que declarou: é este. Estava no Panamá e ia buscá-lo. "É um processo demorado e difícil. O João pediu imensa informação, vídeos, pediu para não omitirem nada porque ele ia de longe, e lá foi ao Panamá ver o barco. No dia em que me ligou a dizer para transferir uma parte do valor do barco, fiquei em pânico. Inês Saldanha, o que é que estás a fazer à tua vida? Em vez de estares a dar entrada para algo seguro, que fique, como uma casa, estás a gastar num barco? Estás a comprar um sonho? E se isto corre mal? Mas pronto, é aquele medo de dar um passo gigante, que nos vai realmente mudar a vida toda. Se não tivesse receios era completamente louca. E eu acho que sou louca mas não completamente!"
A escolha do barco teve como factor determinante o facto de ser de aço. "O maior perigo do mar nem é tanto as tempestades, que se tentam evitar, é mesmo o embate contra contentores no fundo do mar, que rasgam um barco ao meio em três tempos, ou o choque com outros barcos maiores. E o João queria um barco em aço, com monocasco e algumas especificações técnicas que não sei elencar." Quando a embarcação chegou, a família foi então fazer a primeira prova de fogo: partiram para o Algarve todos juntos, em Junho, e viveram dois meses no barco. E não podia ter corrido pior. "Foi um pesadelo. Discutimos o tempo todo. A Teresinha tinha um ano e meio e queria saltar para o mar, os rapazes trepavam os mastros, eu estava sempre aos gritos a achar que se iam matar, consciencializei que tinha de estar sempre a lavar loiça e roupa à mão, era tudo apertado, batia com a cabeça, não tinha as minhas coisas na cozinha... foi mesmo muito difícil. Foi uma passagem abrupta do sonho à realidade. No sonho é tudo romântico, idealizado, perfeito. Na vida, não. Há coisas boas mas também há coisas más. Foi isso que precisei de digerir."
Quando chegaram, em Setembro, Inês nem podia ouvir falar do barco e da viagem e do sonho. João percebeu que o melhor era deixar a poeira assentar e não proferiu nem um pio. Inês entrou em processo de reflexão. "Quando tinha 19 anos enfiei-me um ano na Amazónia, num projecto de ajuda Humanitária. Foi o ano mais duro da minha vida mas também o mais extraordinário. Foi um ano de terapia. Aprendi a conhecer-me, arrumei gavetas do passado, a relação com o meu pai, que teve as suas questões, melhorou para sempre... foi mesmo muito importante. E quando tive a crise do barco pensei muito na Amazónia e no que tinha sofrido e chorado lá, mas o quão revelador tinha sido. E concluí que tudo o que é transformador, tudo o que mexe connosco, tem de ser difícil. É preciso é saber lidar com as adversidades e retirar o melhor das coisas. E, no final Outubro, estava pronta para avançar com a fase final do projecto."
Os últimos três meses foram exigentes. Muito exigentes. Imaginem-se a fechar uma vida inteira para recomeçar outra, a bordo de um barco. Imaginem a quantidade de tarefas, de procedimentos a tratar, de coisas que não podem ficar esquecidas. O casal arrendou ambas as suas casas: uma em Lisboa e a casa onde viviam, no Estoril, e é desses rendimentos que contam viver (além das suas poupanças). Foi preciso fechar contas de bancos, vender o carro, fazer despedidas, organizar tudo o que é para levar a bordo. Em conversas com quem já fez o mesmo, franceses, holandeses, Inês ficou a saber que há quem desista nestes três meses finais. É avassalador. "Às vezes perco o fio à meada de tudo o que é preciso, e eu sou muito organizada!"
Uma das questões que faz sempre muita confusão a quem tem filhos é a escola. Talvez seja daquelas a que Inês dá menos relevância: "Matriculei os miúdos numa escola americana, com um excelente ensino off campus, com conselheiras muito disponíveis para ajudar sempre que me deparar com uma matéria mais complicada. Não admitirei que eles cheguem cá com menos de três línguas aprendidas. Vão ler muito, para que o Português seja bem trabalhado, na Matemática vão poder contar com a ajuda do pai. Acho que o que vão aprender sobre o mundo, sobre culturas, sobre tradições, sobre empatia, sobre abertura ao outro é tanto e tão extraordinário que supera todo o currículo escolar, que vão ter na mesma."
A Wind Family saiu de Cascais rumo ao Porto Santo, depois parte para as Canárias, Cabo Verde, Caraíbas, Canal do Panamá e, para Inês, é aí que verdadeiramente começa a viagem: "Quem define a rota é o João, porque ele é que sabe tudo sobre ventos, sobre o barco, sobre marés. Havia sítios onde eu queria ir e ele disse que não, por causa dos ventos. A ideia é ir seguindo a linha do Equador, sem tempo definido para ficar em cada novo destino. Quero viver em Kiribati, por exemplo. Estou com esta na cabeça. Mas posso chegar lá e achar que afinal ficamos só uma semana, assim como posso chegar a um sítio, apaixonar-me pela comunidade, envolver-me na construção de qualquer coisa que estejam a construir, uma casa de banho de uma escola, uma biblioteca, seja o que for. Imagino que isso vá acontecer muitas vezes: pensarmos que em determinado local ficaríamos pouco tempo mas, ou porque os miúdos arranjaram um grupo giro de amigos, ou porque conhecemos um casal de um barco vizinho que é porreiro e com quem bebemos um copo ao final da tarde, irmos estendendo o tempo nesse sítio até nos fazer sentido. Não temos pressa, não temos nada marcado, não temos que chegar a determinado ponto em determinado dia. É tudo ao sabor do que for acontecendo."
Quando os visitei, o barco já tinha todo o recheio essencial: copos, pratos, tachos, talheres, comida, televisões, roupa, medicamentos. Caixas de ferramentas e peças para substituir o que se avariar. Um dessalinizador para converter a água salgada do mar em água potável. Painéis solares para terem energia renovável. E um nervoso miudinho estampado no rosto dos dois, porque o grande dia estava mesmo a aproximar-se: "Claro que tenho momentos de medo. Noites passadas em claro a pensar que podemos morrer todos. Ou um de nós. Pensamentos negros que rapidamente afasto. Percebo que existam, porque sei a dimensão do que vamos fazer. Mas não vou deixar que me tolham, porque estou certa de que isto vai ser absolutamente extraordinário."
Há quem lhes chame loucos. Irresponsáveis. Sonhadores. Visionários. Aventureiros. Empreendedores. Destemidos. Corajosos. Inconscientes. Eles só querem viver a vida em liberdade, sem amarras, ao sabor do vento, ao sabor da vontade. Eu cá chamo-lhes audazes. E como se diz que a sorte protege os audazes, tenho para mim que esta viagem tem tudo para dar certo. Boa viagem, Wind Family!
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Podem acompanhar esta família de navegantes AQUI.