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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mudar de vida #21: Ana Saramago

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Se começasse este texto a dizer que ela é uma gaja do car@lho , estaria tudo certo. Ana Saramago tem 55 anos e tem uma marca em que não há cá pruridos com a linguagem nem tento na língua. Os bois são chamados pelos nomes e o que não presta não é descrito como uma porcaria ou um cocó. É mesmo uma merda, que se o calão existe é para ser usado, e ela nunca foi de meias palavras. Mas já lá vamos, a esta nova vida de vocábulos rudes promovidos a arte. Primeiro, a vida anterior.

Ana nasceu no Crato (Portalegre) mas veio viver com a família para a Amadora com apenas 2 anos. É uma das filhas do meio. Tem duas irmãs mais velhas e uma mais nova, e talvez por isso seja a mais fora da caixa da família. Pelo menos é o que dizem dos irmãos "entalados". Em miúda era atinada e gostava de letras. Aos 18 anos tirou um curso de dactilografia e foi trabalhar para um escritório de contabilidade. Quando chegou a altura de ir para a universidade, tentou entrar para Filosofia mas não conseguiu vaga. Como ficou desocupada durante 1 ano, foi estudar informática. Um curso financiado, em que ia ganhar mais do que ganhava no escritório. "Os nossos professores eram todos do INESC, do Técnico... aprendemos imenso." 

Ana Saramago trabalhou nos CTT, onde operacionalizou toda a transformação dos correios para um sistema informatizado ("foi um privilégio gigante"), e a seguir foi para a PT, onde trabalhou durante 30 anos (em vários departamentos e empresas dependentes da empresa-mãe). 

Se imaginarmos o esterótipo de um informático, Ana não cabe nele. Aliás, não podia estar mais distante da imagem preconcebida de um nerd, todo ele enfiado dentro do seu monitor e pouco dado à vida em geral. Óbvio que um estereótipo não é mais do que isso mesmo, uma imagem ou conceito preconcebido, padronizado e generalizado, mas não deixa de ter graça imaginar aquela mulher com ar de rockeira e muita noite bem vivida, a fazer programação informática durante mais de 30 anos. 

Em 2010, Ana criou a Hardcore Fofo. Estávamos em plena crise e o dinheiro escasseava. Ela, que sempre gostou de manualidades e cresceu a ver a avó e a mãe fazerem colchas e mantas e tapeçarias e macramés, tropeçou nuns esquemas vintage na net e descobriu que havia um movimento de bordados subversivos. Gostou. Pesquisou em sites porno quais as expressões mais usadas e fez uma página no Facebook. O "Fuck me hard" foi um dos primeiros bordados. As amigas mais próximas duvidaram do projecto: "Mas quem é que vai querer isso?, perguntavam. Até a minha filha me dizia: 'O mãe!!!'"

Afinal, a ideia pegou, cresceu, e tornou-se a única fonte de rendimento da sua criadora que, em 2018, saiu da PT para se dedicar em exclusivo aos bordados hardcore... mas fofos. "A PT estava a ficar um embrulhanço e eu estava desanimada, desmotivada, farta. Em 2018 consegui sair com algum dinheiro que deu para limpar a minha vida e recomeçar num trabalho muito diferente. Passei a gerir o meu tempo, o que é uma responsabilidade gigante. Podes ter preguiça mas se não fazes não ganhas. De maneira que tens de ir gerindo, com inteligência, para não seres escravo mas também não ficares nas lonas." 

Nos primeiros tempos trabalhava em casa mas em Julho de 2019 surgiu a possibilidade de alugar uma mesa. Assim mesmo: uma mesa. Um espaço na Rua da Bempostinha, ao Campo Mártires da Pátria (Lisboa), com várias mesas para alugar. Ana não pensou duas vezes. "Estava cansada de estar no meu sofá. Durante os primeiros 7 ou 8 anos tinha feito o Hardcore Fofo num cestinho de fios e bordados. Ter um espaço onde as pessoas pudessem vir levantar as suas encomendas ou ver algumas peças feitas era um upgrade e, além disso, o espaço tinha um carisma muito fixe. E assim fiquei."

Ana quer ir além das camisolas, t-shirts, quadros, leques, cerâmicas. Quer fazer bilhas de Nisa, por exemplo, e não deixar morrer certas tradições, dando-lhes aquele twist ousado que lhes dão toda outra graça. Quando tem muitas encomendas, como no Natal, organiza uma comunidade de hardcore fofas, artesãs que ajudam a bordar os muitos pedidos. No Natal passado foram 22 hardcore fofas a dar aos dedos.

A sua mudança de vida, do departamento informático para os bordados subversivos, foi tudo. "Mudou tudo, até a cor do cabelo. Mudou o meu ânimo. Estou muito mais feliz. Respiro. Tenho o meu tempo. Antes, sentia que trabalhava para os outros ganharem dinheiro. Era um macaquinho, condicionado a comprar, a ter, a pedir empréstimos para casa, carro, uma vidinha à qual ficas presa e da qual ficas escrava. Se pudesse saía do sistema. Sair da PT foi um primeiro passo. Na crise aprende-se a viver com pouco e, com esta mudança de vida, senti de facto uma liberdade que talvez nunca tenha sentido. Oiço a minha música, organizo o meu tempo, e depois divirto-me muito. Se tivesse 1 euro por cada gargalhada que já dei por reacções de pessoas a peças da Hardcore Fofo... estava milionária."

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Mudar de Vida #20: Inês Saldanha e a sua Wind Family

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Há quem lhes chame loucos. Irresponsáveis. Sonhadores. Visionários. Aventureiros. Empreendedores. Destemidos. Corajosos. Inconscientes. Há quem saiba da história e pense "eu nunca". Há quem engula em seco e suspire um "quem me dera". Há quem se sinta inspirado, e quem jamais tivesse a ousadia ou até a vontade. Difícil mesmo é ficar indiferente a esta aventura.

Inês Saldanha, 37 anos e João Pisco, 44, são o casal que decidiu deixar tudo e ir com os 4 filhos (Alice, 10 anos; Manuel, 8 anos; Francisco, 5 anos; Teresa, 2 anos) numa viagem de veleiro pelo mundo fora, sem tempo definido (mas com a estimativa inicial de irem por uns 4 anos, altura em que a Alice terá 14 e os pais não querem privá-la de uma adolescência normal). Partiram hoje. E, com eles, vai o sonho e a vontade de viver uma vida que valha mesmo a pena. Num país de viajantes como o nosso, de marinheiros e descobridores, é curioso que se contem pelos dedos de uma mão as famílias que se fizeram ao mar. Talvez nos tenhamos tornado menos intrépidos, menos bravos, talvez tenhamos passado a pesar e a medir demasiado os prós e os contras e a preferir jogar pelo seguro. A verdade é que decisões como a da Wind Family (como baptizaram o projecto) são relativamente comuns em outros países da Europa, mas aqui não. 

Tudo começou há 17 anos, quando Inês e João ainda nem namoravam. "Estávamos num bar e ele às tantas diz: 'O meu sonho é ter uma família grande, com muitos filhos, ter um barco, e irmos todos a navegar mundo fora.' Aquilo atingiu-me como uma seta. Uau! É isto! É ele! Eu, que queria ter 4 filhos, fiquei logo com uma paixão assolapada que me fez terminar um namoro de 2 anos. Aparentemente fiz bem. Começámos a namorar em 2004, casámos em 2009, temos 4 filhos, e vamos agora realizar o sonho da vida do João, que passou a ser também o meu."

A conversa sobre a viagem ao mundo vinha frequentemente à baila, mas tão distante como quando sonhamos com o Euromilhões. Era um sonho longínquo mas permanecia presente. Inês, assistente social de formação, criou uma empresa de eventos com uma sócia. João, licenciado em Filosofia, foi sempre professor de fotografia (e sempre velejou, desde os 18 anos). Até que, há 7 anos, estavam de férias no Algarve, e Inês, que estava numa fase profissional de grande intensidade ("estava a bombar, com eventos a toda a hora, a achar que era a dona disto tudo, a ganhar bem, a sentir-me a maior") disse, quase irritada com a sua própria falta de iniciativa no que àquele sonho dizia respeito: "Então mas eu faço acontecer tudo e não faço acontecer este projecto? Vamos lá para a frente com isto!" E pronto. Estava dado o pontapé de saída. Ou, para usar terminologia náutica, estava o ferro levantado. "Quando eu meto alguma coisa na cabeça é um problema para ma tirar de lá."

Começaram a juntar dinheiro e a fazer listas: escolas, necessidades, destinos, barcos, procedimentos médicos. "Estou há anos a ver vídeos de como coser feridas, como agir em caso de queimadura, em caso de queda, em caso de qualquer coisa. Neste momento sinto-me uma médica, sinto-me uma enfermeira, sinto-me capaz de tudo! A verdade é que tenho de me sentir segura, mesmo que seja a fingir...", ri-se Inês Saldanha. Os preparativos foram sendo feitos, com altos e baixos, mas cada vez mais certo. De qualque modo, Inês não queria perder de vista a realização do seu próprio sonho, antes de embarcar no sonho do marido: ter 4 filhos. Já tinha a Alice e o Manel. Ainda lhe faltavam dois. 

Quando a poupança começou a ficar com um volume interessante, João começou a ver barcos e, em Maio do ano passado, houve um dia em que declarou: é este. Estava no Panamá e ia buscá-lo. "É um processo demorado e difícil. O João pediu imensa informação, vídeos, pediu para não omitirem nada porque ele ia de longe, e lá foi ao Panamá ver o barco. No dia em que me ligou a dizer para transferir uma parte do valor do barco, fiquei em pânico. Inês Saldanha, o que é que estás a fazer à tua vida? Em vez de estares a dar entrada para algo seguro, que fique, como uma casa, estás a gastar num barco? Estás a comprar um sonho? E se isto corre mal? Mas pronto, é aquele medo de dar um passo gigante, que nos vai realmente mudar a vida toda. Se não tivesse receios era completamente louca. E eu acho que sou louca mas não completamente!"

A escolha do barco teve como factor determinante o facto de ser de aço. "O maior perigo do mar nem é tanto as tempestades, que se tentam evitar, é mesmo o embate contra contentores no fundo do mar, que rasgam um barco ao meio em três tempos, ou o choque com outros barcos maiores. E o João queria um barco em aço, com monocasco e algumas especificações técnicas que não sei elencar." Quando a embarcação chegou, a família foi então fazer a primeira prova de fogo: partiram para o Algarve todos juntos, em Junho, e viveram dois meses no barco. E não podia ter corrido pior. "Foi um pesadelo. Discutimos o tempo todo. A Teresinha tinha um ano e meio e queria saltar para o mar, os rapazes trepavam os mastros, eu estava sempre aos gritos a achar que se iam matar, consciencializei que tinha de estar sempre a lavar loiça e roupa à mão, era tudo apertado, batia com a cabeça, não tinha as minhas coisas na cozinha... foi mesmo muito difícil. Foi uma passagem abrupta do sonho à realidade. No sonho é tudo romântico, idealizado, perfeito. Na vida, não. Há coisas boas mas também há coisas más. Foi isso que precisei de digerir."

Quando chegaram, em Setembro, Inês nem podia ouvir falar do barco e da viagem e do sonho. João percebeu que o melhor era deixar a poeira assentar e não proferiu nem um pio. Inês entrou em processo de reflexão. "Quando tinha 19 anos enfiei-me um ano na Amazónia, num projecto de ajuda Humanitária. Foi o ano mais duro da minha vida mas também o mais extraordinário. Foi um ano de terapia. Aprendi a conhecer-me, arrumei gavetas do passado, a relação com o meu pai, que teve as suas questões, melhorou para sempre... foi mesmo muito importante. E quando tive a crise do barco pensei muito na Amazónia e no que tinha sofrido e chorado lá, mas o quão revelador tinha sido. E concluí que tudo o que é transformador, tudo o que mexe connosco, tem de ser difícil. É preciso é saber lidar com as adversidades e retirar o melhor das coisas. E, no final Outubro, estava pronta para avançar com a fase final do projecto."

Os últimos três meses foram exigentes. Muito exigentes. Imaginem-se a fechar uma vida inteira para recomeçar outra, a bordo de um barco. Imaginem a quantidade de tarefas, de procedimentos a tratar, de coisas que não podem ficar esquecidas. O casal arrendou ambas as suas casas: uma em Lisboa e a casa onde viviam, no Estoril, e é desses rendimentos que contam viver (além das suas poupanças). Foi preciso fechar contas de bancos, vender o carro, fazer despedidas, organizar tudo o que é para levar a bordo. Em conversas com quem já fez o mesmo, franceses, holandeses, Inês ficou a saber que há quem desista nestes três meses finais. É avassalador. "Às vezes perco o fio à meada de tudo o que é preciso, e eu sou muito organizada!"

Uma das questões que faz sempre muita confusão a quem tem filhos é a escola. Talvez seja daquelas a que Inês dá menos relevância: "Matriculei os miúdos numa escola americana, com um excelente ensino off campus, com conselheiras muito disponíveis para ajudar sempre que me deparar com uma matéria mais complicada. Não admitirei que eles cheguem cá com menos de três línguas aprendidas. Vão ler muito, para que o Português seja bem trabalhado, na Matemática vão poder contar com a ajuda do pai. Acho que o que vão aprender sobre o mundo, sobre culturas, sobre tradições, sobre empatia, sobre abertura ao outro é tanto e tão extraordinário que supera todo o currículo escolar, que vão ter na mesma."

A Wind Family saiu de Cascais rumo ao Porto Santo, depois parte para as Canárias, Cabo Verde, Caraíbas, Canal do Panamá e, para Inês, é aí que verdadeiramente começa a viagem: "Quem define a rota é o João, porque ele é que sabe tudo sobre ventos, sobre o barco, sobre marés. Havia sítios onde eu queria ir e ele disse que não, por causa dos ventos. A ideia é ir seguindo a linha do Equador, sem tempo definido para ficar em cada novo destino. Quero viver em Kiribati, por exemplo. Estou com esta na cabeça. Mas posso chegar lá e achar que afinal ficamos só uma semana, assim como posso chegar a um sítio, apaixonar-me pela comunidade, envolver-me na construção de qualquer coisa que estejam a construir, uma casa de banho de uma escola, uma biblioteca, seja o que for. Imagino que isso vá acontecer muitas vezes: pensarmos que em determinado local ficaríamos pouco tempo mas, ou porque os miúdos arranjaram um grupo giro de amigos, ou porque conhecemos um casal de um barco vizinho que é porreiro e com quem bebemos um copo ao final da tarde, irmos estendendo o tempo nesse sítio até nos fazer sentido. Não temos pressa, não temos nada marcado, não temos que chegar a determinado ponto em determinado dia. É tudo ao sabor do que for acontecendo."

Quando os visitei, o barco já tinha todo o recheio essencial: copos, pratos, tachos, talheres, comida, televisões, roupa, medicamentos. Caixas de ferramentas e peças para substituir o que se avariar. Um dessalinizador para converter a água salgada do mar em água potável. Painéis solares para terem energia renovável. E um nervoso miudinho estampado no rosto dos dois, porque o grande dia estava mesmo a aproximar-se: "Claro que tenho momentos de medo. Noites passadas em claro a pensar que podemos morrer todos. Ou um de nós. Pensamentos negros que rapidamente afasto. Percebo que existam, porque sei a dimensão do que vamos fazer. Mas não vou deixar que me tolham, porque estou certa de que isto vai ser absolutamente extraordinário."

Há quem lhes chame loucos. Irresponsáveis. Sonhadores. Visionários. Aventureiros. Empreendedores. Destemidos. Corajosos. Inconscientes. Eles só querem viver a vida em liberdade, sem amarras, ao sabor do vento, ao sabor da vontade. Eu cá chamo-lhes audazes. E como se diz que a sorte protege os audazes, tenho para mim que esta viagem tem tudo para dar certo. Boa viagem, Wind Family!

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Podem acompanhar esta família de navegantes AQUI.

Covid que te pariu!

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Nos últimos anos temos recebido uma autêntica lavagem ao cérebro sobre ambiente, alterações climáticas, poluição, aquecimento global, buraco na camada do ozono, raios UV, derretimento das calotas polares, oceanos de plástico, lixo, reciclagem, fim do mundo iminente. Mudámos os nossos hábitos, fizemos das tripas coração para usar sacos de papel, de pano, levar o carrinho das compras em vez dos sacos, andámos carregados para contentores de reciclagem que ficam por vezes absurdamente longe das nossas casas, apanhámos lixo que não era nosso e colocámos no recipiente correcto, largámos os cotonetes, as palhinhas, diabolizámos os plásticos. Fizemos a nossa parte. E, muitos de nós, fizemo-lo com o empenho e a certeza de estarmos a fazer a coisa certa em nome de um planeta em claro sofrimento. 

Só que entretanto veio a Covid-19 em jeito de pandemia. E pronto. Acabou tudo. Em nome da segurança, hotéis passaram a ter produtos embalados em celofane nos buffets, supermercados voltaram aos produtos dentro de caixas de plástico e agora soube de dezenas de escolas a pedirem que não se levem mochilas mas sim sacos de plástico que possam ir para o lixo e até garrafas de plástico que tenham o mesmo destino (felizmente nenhuma das escolas que os meus filhos frequentam). Tudo porque querem evitar o leva-e-traz com a consequente viagem de eventuais vírus. Compreendo os medos mas acho um absurdo. O plástico, que até há pouco tempo era o nosso inimigo mortal, voltou sem problemas? O nosso único mal é o novo coronavírus? Não há mais nada?

Além desta questão, outra: durante anos ensinaram-nos a ser solidários. A não deitar fora o que já não queríamos mas a dar a quem possa usar. E nós cumprimos. Reunimos o que não queremos, vamos levar, ficamos felizes por poder contribuir para uma melhoria na vida de alguém. Bom, aparentemente também isso está em vias de mudar. Fiz arrumações cá em casa e tenho 8 sacos de roupa em optimo estado para entregar a quem precise. Já liguei para a Junta, já liguei para instituições. A resposta? Sempre a mesma. "Não estamos a receber". A culpa adivinha-se depressa: Covid. Portanto, por causa do bicho, quantas pessoas há que não vão beneficiar de roupa e de brinquedos e outros bens? 

Já para não falar nas consultas adiadas, nas pessoas que não vão ao médico controlar as suas doenças crónicas ou agudas com medo de apanhar a bicheza do momento, com o consequente aumento da mortalidade e morbilidade na população.

Compreendendo eu tudo, porque tendo a ser dada à tentativa de compreender sempre o outro lado, acho que há aqui um acumular de incongruências que me levam a temer todo o rol de consequências nefastas desta pandemia que eu ainda nem sequer assimilei. Julgo que estamos a retroceder décadas. Financeira, social, ambiental e culturalmente. Covid que te pariu.

Colégio/ Escola Pública

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É uma pergunta recorrente que me fazem: "colégio ou escola pública?" E também: "Como geres o facto de teres uns filhos no colégio e outros na escola pública?"

Vamos a isto, então. Quando tivemos o Manel e o Martim nem sequer considerávamos a possibilidade "escola pública". Três principais razões para isso:

1 - Ambos andámos a vida inteira em colégios e não queríamos dar menos do que os nossos pais nos deram a nós (o que assenta no pressuposto errado de que a escola pública é menos que os colégios, o que nem sempre é verdade).

2 - Tínhamos ambos preconceitos em relação à escola pública (como, de resto, é fácil perceber pelo ponto anterior).

3 - Podíamos pagar.

Depois, tivemos a terceira filha e metemo-la também no colégio. Ainda conseguíamos aguentá-los financeiramente mas já considerávamos a possibilidade de fazer a mudança. Porquê? Porque sentíamos que, se era verdade que podíamos mantê-los a todos no colégio, a verdade também era que não poderíamos fazer muitas das coisas que queríamos, se os mantivessemos: viagens em família, idas ao teatro, a concertos, experiências especiais que são caras (e a massa estaria toda alocada ao colégio). Ponderávamos mudá-los mas a ideia custava tanto como se os estivéssemos a meter num instituto correccional (tais eram as ideias que tínhamos impressas na cabeça). Houve um ano que os inscrevi e eles entraram. Fiquei com o coração tão apertado que não fui capaz de levar a matrícula adiante. Ficariam mais um ano no colégio. No ano seguinte, voltei a tentar. Só o Manel ficou colocado. E então, depois de muitas conversações e depois de bem medidos os prós e os contras, decidimos que ele iria sair do colégio e entrar na escola perto de casa. 

E foi então que o meu preconceito começou paulatinamente a ser destruído. A escola do Manel foi uma muito agradável surpresa. O director de turma era muito atento e enviava emails com frequência, a comunicação casa-escola nunca foi tão directa e acessível, nunca tive aquelas cenas de professores a faltar e sem substituto, e o Manel houve um dia que disse: "Parece que me abriram as janelas, mãe. Agora respiro!"

No ano seguinte, voltei a tentar. Só entrou a Mada (para outra escola do mesmo agrupamento, não para a do irmão). Então, lá foi ela. Mais um passo no caminho de um voto de confiança dado à escola pública, mais um passo contra um dos meus derradeiros preconceitos. E voltou a correr maravilhosamente. A escola era óptima, com direito a horta e grandes janelas e muita luz. A educadora que lhe tocou era simplesmente maravilhosa (beijinho, educadora Manuela, onde quer que esteja!) e ela adaptou-se de imediato e nós também. 

Acho que ainda tentámos mais uma vez que o Martim entrasse mas não conseguimos (nem com dois irmãos no mesmo agrupamento). E então desistimos. Achámos que era mais benéfico para o Martim continuar no seu colégio de sempre (onde andava desde os 3 anos). Pelas suas características, por ser muito introvertido, por estar com os seus amigos de sempre, por haver ali uma rédea curta que considerámos importante manter durante alguns anos mais críticos. Deixámos o Manel e a Mada na escola pública e o Martim no colégio. Nunca me pesou na consciência por achar que estava a dar mais a um do que aos outros, porque quando os outros começaram na escola pública depressa tirei da ideia que tinham menos do que ele. Poderá haver colégios que oferecem uma panóplia de actividades e viagens e eventos desportivos que, efectivamente, as escolas não oferecem. Mas, tirando isso, a matéria é a mesma. As orientações programáticas são definidas pelo Ministério e todos acabam por aprender as mesmas coisas. A questão prende-se mais com a exigência e com um certo "nivelar por baixo" que algumas escolas públicas praticam, por terem alunos que provêm de famílias complicadas, muito desestruturadas, e com muitas dificuldades. Acontece que, aqui onde vivo, tenho a sorte de ter escolas maioritariamente frequentadas por miúdos como os meus filhos. Uns com mais condições, outros com menos, mas diria que está ela por ela. Provavelmente, se vivesse numa zona em que a escola fosse maioritariamente frequentada por miúdos de bairros onde a polícia passa a vida a prender pessoas, teria de pensar duas vezes (ou três) antes de os meter lá. Precisamente por esse "nivelar por baixo" a que os professores são obrigados, se não querem ter só chumbos nas suas turmas (e, vezes demais, cargas de pancada dos pais como consequência).

Entretanto tivemos o Mateus, que foi para um colégio maravilhoso chamado Tutor T (e que foi, sem sombra de dúvida, a melhor escolinha onde já tive crianças). Ou seja: passámos a ter 2 filhos em colégios, e 2 filhos em escolas públicas. 

Este vai ser o ano de viragem total. Tentámos colocar o Martim na escola pública mas como escolhemos apenas 3 escolas, todas elas fora da nossa área de residência, não tínhamos qualquer expectativa que entrasse. Acontece que... entrou. Achámos que tinha chegado a uma idade (15 anos - 10º ano) em que já tem uma maturidade diferente para não precisar tanto da rigidez do colégio, por um lado, e também não sentir tanto a falta da grupeta de amigos que tem desde o infantário. De resto, eles combinam frequentemente encontros e deslocam-se perfeitamente de metro e de bicicleta para irem ter uns com os outros, de maneira que pode sempre manter essas relações e, ao mesmo tempo, ganhar outros amigos. Também creio que será importante, agora que escolheu a área, ir para uma escola em que pode "começar do zero", onde ninguém o conhece, com um novo estímulo. Assim como se fosse um livro em branco, onde pode escrever da melhor forma possível, sem o olhar dos outros a condicionar. Acho mesmo que pode ser bom para ele.

O Mateus também sai da Tutor T este ano, e isso sim está a custar. Só quem teve um filho neste colégio pode perceber como custa tirá-los de lá. Mas é giro: já não é por ir para a escola pública (porque já não tenho esse preconceito). É mesmo por sair daquele ninho bom, uma espécie de família para onde ia todos os dias, quase como a extensão da sua casa, do seu conforto, do seu porto seguro. 

E é isto. Até podíamos ter mantido todos no colégio. Conseguíamos, com esforço. Mas não tínhamos ido com eles a Madrid, a Nova Iorque, aos Alpes para fazerem ski, ao Brasil, a Marrocos. Não lhes tínhamos proporcionado uma série de experiências enriquecedoras (nomeadamente um gap year ao Manel, com direito a um mês inteiro na ilha do Príncipe e um mês inteiro em Nova Iorque). Não tínhamos feito, nós os dois, as nossas viagens a dois. E, para nós, tudo isso faz também parte da educação que lhes queremos transmitir. A educação, para nós, não se esgota na escola. Nada contra quem aposta tudo na educação curricular (até porque há quem não viva em zonas com boas escolas públicas). Nada mesmo. É uma opção tão válida como outra qualquer e, se não tivéssemos tido sorte, o mais certo era ser essa também a nossa escolha. Felizmente correu bem. Esperemos que continue assim.

 

Regresso às aulas em tempo de pandemia

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Ponto prévio: sou obviamente parte interessadíssima em controlar a disseminação da Covid-19 e não embarco em nenhuma teoria chalupa da conspiração do tipo "isto é tudo um esquema para nos manter manietados", e que "a vacina vai ser um chip que nos vão introduzir no cérebro para nos monitorizar", ou outras convicções do mesmo grau de alucinação que já vi por aí. A todo esse pessoal: as melhoras. 

Feito o ponto prévio, e sublinhando desde já que não saberia como agir se estivesse na DGS ou no Ministério da Educação perante uma pandemia e que acredito ser um trabalho mesmo complexo, dizer que estou muito preocupada com algumas coisas que tenho lido sobre o regresso às aulas e que temo que a escola deixe de ser um espaço de liberdade e de comunhão e partilha para passar a assemelhar-se muito a um estabelecimento prisional.

A começar pelo primeiro dia de aulas. Para muitos já foi e já se confrontaram com isso, mas eu estou só na parte do sofrer por antecipação. Deixar uma criança à porta, numa escola onde entra pela primeira vez, deixá-la com um estranho que a recebe de máscara, e a leva para um sítio que nunca viu cheio de gente que nunca vislumbrou parece-me verdadeiramente assustador. Acho que seria importante haver um espaço de entrega das crianças à sua educadora, feita com serenidade e segurança, e não - como já ouvi que ia ser - à entrada, a quem estiver na porta, seja um segurança, uma auxiliar, seja quem for. Durante anos frisou-se o importantíssimo papel dos pais nesta ponte, para que a criança se sentisse segura, e agora estamos a cortar toda esta importância por um "bem" maior. Repito: compreendo perfeitamente que uma situação excepcional implique medidas excepcionais, mas não deixo de me inquietar com tudo isto. 

Outra das normas será a imposição de distanciamento físico entre crianças. Como assim? Quando o Joãozinho se aproximar da Luisinha alguém grita? Usam uma vareta comprida para os afastar, tipo gado? Vai ser cada um a brincar por si? 

Também já li que há escolas que vão reduzir os intervalos para 5 minutos e que não vão permitir idas à casa de banho durante os intervalos mas apenas durante as aulas. Say WHAAAAAT? Portanto, deixa ver se percebi: se um dos meus filhos tiver uma dor de barriga durante um intervalo tem de se aguentar estoicamente até que a próxima aula comece. O que vale é que não será uma longa espera: 5 minutos de intervalo? A sério? Cinco minutos?

Estou com muito medo de que, uma vez mais, não se esteja a ter em conta a saúde mental, como se nós fôssemos apenas corpo, e como se os males da alma não nos afectassem também o corpo - como se isto não estivesse tudo ligado. Conciliar a segurança física com a segurança emocional é um desafio, sem dúvida, mas era importante que não se perdesse de vista. A bem das crianças. A bem de todos nós.

Histórias da Quarentena #5

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Conheceram-se no hospital onde ambas trabalham. Ali, em ambiente hospitalar, recebem casos complexos, difíceis, desafiantes. Mas elas queriam fazer mais, chegar mais longe. De experiências trocadas, partilhas feitas, desabafos, ambas sentiram que podiam aproveitar melhor as suas competências. Mas foi com a chegada da Covid-19 e todas as suas consequências psico-emocionais que as duas especialistas tiveram ainda mais a certeza do desejo de ajudarem mais e melhor. Com outro tempo, outro espaço. E se a união faz a força, e se duas cabeças pensam melhor do que uma, juntaram o sonho à vontade e decidiram abrir a sua própria clínica.

Diana Cruz, psicóloga clínica, e Catarina Ribeiro, neuropsicóloga, nunca pensaram que fosse preciso uma pandemia para que finalmente decidissem arregaçar as mangas e dar um passo em frente, no sentido de abrirem um espaço privado, para lá do trabalho que já desenvolviam quer no hospital quer em outras clínicas. Mas foi assim que aconteceu. "Sentimos que há muitas pessoas descompensadas com tudo isto. Que o confinamento foi mau para muitas pessoas, que o desconfinamento foi péssimo para outras, que há medos que se tornam enormes e que bloqueiam vidas. E também percebemos, por outro lado, que muitas pessoas que até aqui tinham sentido o estigma de recorrer a um psicólogo, agora sentem que o seu pedido de ajuda é justificado por algo maior, algo que é comum à Humanidade, e que nos perturba a todos, a uns mais, a outros menos. E de repente achámos que esta era uma excelente oportunidade para ter em consultório pessoas que ainda tinham o preconceito, e puxar por esse fio, sendo que a pandemia é o pretexto, mas depois há uma série de sub-camadas que podem ser esmiuçadas e, assim, ajudarmos estas pessoas (e as que já eram abertas às terapia, claro) a viverem vidas mais equilibradas."

Depois de muitas conversas uma com a outra, falaram também com a família. Diana disse que, em casa, já esperavam que mais dia menos dia se metesse num projecto seu. Catarina também não encontrou resistências. E depressa começaram à procura de um espaço e não tarda estavam com o sítio escolhido em obras. "Queríamos que fosse um consultório confortável, aconchegado, que garantisse a confidencialidade dos nossos pacientes... que fosse assim uma espécie de uterozinho" - explica Diana Cruz. "O primeiro consultório em que trabalhei, com 2005, de um psicólogo sénior que me ensinou imenso, era exactamente o protótipo do que eu queria. E acho que conseguimos fazer um ninho parecido, ali na Praça de Alvalade (Lisboa), onde estamos a prestar serviços diferenciados nas áreas da Psicoterapia, da Neuropsicologia e da Terapia Familiar." O projecto de Diana e Catarina foi batizado por MITO, "porque mitos são, no fundo, narrativas simbólicas que evoluem no tempo e dão sentido de pertença e significado às pessoas, tal como as psicoterapias." 

Mas a ideia não se ficou por aqui. Quando o novo espaço já estava em obras e o entusiasmo de ambas estava ao rubro, Catarina pensou que não seria mal pensado se agradecessem ao "universo" por tudo o que lhes estava a dar. Ambas riem da expressão, se bem que a verdade é muito essa: devolver a sorte, retribuir os fortúnios. E foi então que surgiu a ideia de dar aos outros um pouco das duas. "Decidimos oferecer consultas a pacientes recuperados de Covid-19 ou pessoas em luto por causa da pandemia. Achamos que esta doença trouxe consigo muitas dificuldades psicológicas e queremos fazer a nossa quota parte. Sabemos que há por aí muitos ex-doentes que ficaram com mazelas emocionais, seja por terem estado entre a vida e a morte, seja por terem lutado sozinhos, e também estamos em crer que surgirão lutos patológicos, porque as pessoas não puderam despedir-se condignamente dos seus. Fizemos ambas voluntariado durante o período crítico do confinamento, ficámos no atendimento telefónico ao fim-de-semana e feriados, mas queremos fazer mais. E esta é a oportunidade para o fazer. Claro que não vamos poder oferecer consultas a todas as pessoas que nos aparecerem, somos só duas, não dá para tudo. Mas queremos pedir para que nos enviem a sua candidatura por email, e depois nós escolhemos um determinado número de pessoas que acompanharemos por mês, durante um determinado período de tempo."

E assim fica a informação: se vivem em Lisboa, tiveram a doença e ainda não recuperaram psicologicamente, ou se perderam alguém e sentem que não conseguiram fazer o luto, a Diana e a Catarina aguardam o vosso contacto. O email é mito.na.pandemia@gmail.com. Pode ser que consigam ser uns dos escolhidos. Quanto a todos os outros, que se sentem perdidos, incompreendidos, deprimidos, quem sabe se não encontram junto delas o apoio que faltava? Porque as dores da alma não devem ser negligenciadas, tal como as dores do corpo. Porque não há qualquer vergonha em pedir ajuda para curar a mente, assim como não há embaraço em curar uma perna partida. 

MITO: Praça de Alvalade nº6
2º fte, sala 6
1700-036 Lisboa

 

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Férias. Tão bom que foi

Uma vez escrevi aqui, há uns anos valentes, sobre a profunda tristeza que baixava em mim quando as férias terminavam. Alguém aproveitou para dizer que talvez a minha vida de todos os dias não fosse feliz, daí que valorizasse tanto as férias, já que ela (essa pessoa que comentou) voltava sempre feliz para o seu quotidiano, por saber que essa era a regra e as férias a excepção, e ela (a comentadora) era feliz na regra e na excepção.

Aquilo deu-me que pensar e marcou-me, como se pode ver, uma vez que já se passaram anos e ainda escrevo sobre isso. Pensei muito sobre a possibilidade de ela ter razão. Seria o meu quotidiano triste? Que diabo! Analisei, escrutinei, esmiucei. E concluí que não. Não se trata de uma infelicidade na regra. Trata-se de um encontro maior com uma ideia de felicidade, na excepção. O dia-a-dia pode ser tormentoso e quem disser que é feliz todos os dias está a mentir. Não pode. Ninguém é. A vida mói, massacra, esmigalha. Os afazeres, os horários, os almoços e lanches e jantares que não se preparam sozinhos, os regressos às aulas com as inseguranças e medos e angústias deles e nossas. Os dias chuvosos, os dias em que nada corre bem, o trabalho a complicar-se, os conflitos fora e dentro de casa, e agora também a pandemia a pesar na já complicada equação da vida. A monotonia que consegue esmagar: acordar, banho, pequenos-almoços, levar à escola, trabalhar, fazer o almoço, ir buscar à escola, lanches, banhos, estudos, jantar, dormir, acordar, banho, pequenos-almoços, levar à escola, fazer o almoço, ir buscar à escola, lanches, banhos, estudos, jantar, dormir, e repeat. Às vezes é difícil encontrar laivos de felicidade nesta linha de montagem, mas é essa - talvez - a maior sabedoria de todas. Encontrá-los. Tentar encontrá-los todos os dias. Um sorriso, uma mão quentinha na nossa, um jantar com amigos, um telefonema que nos encheu a alma, um sucesso de um filho, uma conquista nossa, uma roupa que nos fica bem, uma corrida que nos fez sentir melhores. 

Nas férias, não há sabedoria nenhuma em encontrar a felicidade. Ela entra-nos pelos olhos, atira-se a nós como gato a bofe, espeta-se-nos na cara, agarra-se-nos às pernas. Estamos com os nossos, na praia, com tempo, com sol, com mar, com mergulhos e gargalhadas. Os problemas ficam em casa, no trabalho, longe da vista e do coração. As férias são como uma brecha no tempo e no espaço, uma espécie de suspensão do normal e elevação exclusiva do prazer. 

Por isso, não, a leitora não tinha razão. O meu quotidiano não é infeliz. Tem é momentos menos felizes, como todos os quotidianos. E as férias são só alegria e, por isso, voltar dói sempre um bocadinho. 

A família cresceu

Para quem não me segue no Instagram ou no Facebook, a novidade ainda não terá chegado. Em bom rigor, a novidade aconteceu há pouco tempo (apesar da decisão já ter sido tomada há um mês), e ao meu cérebro chegou mesmo ainda mais recentemente (demorou a cair-me a ficha).

No dia 21 de Julho, saí de casa de manhã para ir dar a voltinha costumeira com o Mojito, quando vi à porta de casa um certo aparato: havia um cão, havia um polícia, uma senhora com uma criança, uma lata de comida, uma tigela de água. Estavam todos com aquela postura corporal de quem tem algo em mãos que não sabe ainda como resolver mas, nem sei porquê (provavelmente era o meu instinto a dizer-me para não me meter em sarilhos), não perguntei o que se passava e continuei na minha vidinha.

Dei a volta com o Mojito, de caminho ainda tomei café com a minha mãe, e quando regressei já só estava a senhora e a criança e... o cão. A senhora tinha um olhar perdido, o telemóvel na mão, e aí já não consegui ignorar. Perguntei o que se passava, se precisava de ajuda, e é então que a senhora me explica que tinha encontrado aquela cadelinha, que estava perdida e assustada, mas que não a podia levar para casa porque tinha um cão bebé que ainda nem tinha tomado as vacinas. A senhora estava mesmo à toa, sem saber o que fazer, porque tinha de se ir embora mas não estava a imaginar-se a deixar ali a bicha. Foi então que me cheguei à frente: a minha casa era mesmo ali, eu tinha plataformas digitais que chegam a muita gente (para procurar os eventuais donos) e então levei-a.

Pus a foto nas redes e aguardei. Foi então que começou o massacre.

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A minha filha Mada (que alterou o seu nome na minha lista de contactos para "filha lindinha") estava em casa dos avós, de férias, e iniciou um verdadeiro ataque, com centenas de mensagens onde pedia, implorava, descabelava-se por uma cadela. Primeiro achei graça, achei que lhe passava, achei que quando os donos aparecessem ela ia acabar por desistir. Tremendo engano. Os donos apareceram, levaram-na, e a torrente de mensagens continuou.

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Uma nota: "Nós pensámos em ter uma cabra" deve ser traduzido para "ela pensou em ter uma cabra e eu diverti-me a imaginar a bicha aos pinotes por todo o lado". 

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De repente, sem perceber bem como, já havia um autêntico movimento #teamMada e havia gente a enviar fotografias de cães bebés, cães adultos, cães pretos, brancos, castanhos, cães de pelo curto, médio e comprido. Cães de olhar triste, de quem já viveu o horror, cães mais felizes, cães de orelha murcha, cães atrevidos. De repente, já o tema não parecia estranho e estava eu própria a ver os cães e a ter vontade de os trazer a todos para casa. De repente estava na Associação Java, na Lourinhã, onde a Mada tinha visto a foto de uma cadelinha com cerca de 3 anos e outras fotos de cães bebés, e foi então que se deu o encontro das duas, o olhar tristíssimo da Molly a arrebatar o coração da Mada, que sentiu uma espécie de chamamento para lhe mudar a vida, o destino, o futuro. De repente, o Ricardo já não dizia nada e até mostrava um sorriso de abertura, coisa nunca antes pensada ou imaginada, e de repente estávamos a dizer na associação que sim, ficávamos com a Molly, íamos só de férias e quando voltássemos íamos buscá-la. 

E assim foi. Durante as férias, o amor foi sendo alimentado pelas fotografias e vídeos que as queridíssimas voluntárias da associação enviavam (obrigada Sofia, obrigada Cláudia). 

A Molly veio para casa este domingo, dia 30 de Agosto. É uma cadelinha muito traumatizada. Estava há um ano no canil, e foi encontrada ali perto, ao abandono (não sei em que estado). Não sei que diabo lhe fizeram, mas palavra de honra que gostava que essa criatura do demónio recebesse sofrimento em dobro. A Molly tem medo da própria sombra, baba-se muito (sinal de stress), deita-se quando alguém se aproxima, e quando vai à rua está desatinada a olhar para todos os lados, como se temesse que a ameaça chegasse a qualquer momento. Só fez xixi na terça-feira de manhã (relembro que chegou no domingo) e cocó também, ambos na rua. Fiz uma festa. Escolheu o hall para se refugiar, porque é o lugar da casa mais parecido com a "assoalhada" onde ela vivia. É um quadrado pequeno, longe do nosso olhar, encostado à porta da rua. Levámos para lá a cama dela e respeitamos o seu espaço. Ainda assim, de vez em quando vamos até lá para uma sessão de mimos. Quando ouve o Mojito, levanta-se, espreita e, às vezes, aparece no corredor e cruza a sala e até já foi ao terraço (mas sempre por brevíssimos instantes - mal se dá por ela já está de regresso ao seu micro-lugar).

O Mojito ignora-a e tem medo dela (tem medo dos cães em geral e só confia mesmo quando tem provas de que é para confiar) e ontem estava particularmente stressado (andava de um lado para o outro, babava-se, espreguiçava-se a toda a hora - tudo sinais de inquietação). Ela mete-se com ele amistosamente quando estão ambos de pé, nos passeios ou nos raros momentos em que ela se aventura pela casa. Mas quando está deitada e estamos a mimá-la e ele aparece... rosna-lhe e ameaça morder. A primeira vez que aconteceu fiquei destroçada e fui a correr confortar o Mojito. Senti que tinha trazido para casa uma ameaça ao nosso cão e doeu-me. Mas rapidamente fui ler e percebi que isto é só medo. Que a melhor defesa é o ataque. E que mal ela perceba que nenhum de nós, seja cão ou humano, lhe quer fazer mal, tudo ficará bem. Entretanto, estamos a reforçar a confiança do Mojito, dentro dos nossos conhecimentos (felizmente aprendemos algumas coisas nestes 6 anos com ele), e estou certa de que vai entender que o amor não se divide, multiplica-se. Tenho 4 filhos e sei bem que há sempre ciumeiras, com os cães não há-de ser muito diferente. Com equilíbrio e amor, suponho que tudo vá ao sítio.  

Quanto à Mada... acho que vai conseguir tudo o que quiser da vida, por exaustão. Nunca conheci outra pessoa assim. É a maior chata persistente do mundo.

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