Histórias da Quarentena #3
Estava tudo marcado. Casamento civil para dia 8 de Maio, festa de arromba numa quinta, dia 4 de Julho. Vinham muitos convidados de França, onde o noivo trabalha, vinham familiares, amigos, uma celebrante do Porto. O fotógrafo estava escolhido e pago, assim como o vestido de noiva, e a lua-de-mel. Quando o Presidente da República declarou o Estado de Emergência, Ana e Bruno começaram a ver a vida a andar para trás.
Estão juntos há 13 anos e têm uma filha com 11, a Inês. Nunca casaram porque a vida foi andando e não lhes fazia falta um contrato. Mas, no dia 11 de Julho de 2019, dia do aniversário de Ana, Bruno pediu-a em casamento. Ela disse que sim, e marcaram tudo para 2020. Com 13 anos inteirinhos para escolher uma data, é preciso pontaria para acertar no pior de todos.
Logo no dia a seguir à declaração de Marcelo Rebelo de Sousa, Inês não foi mais à escola. Bruno voltou de França quatro ou cinco dias depois, num dos últimos voos para Lisboa. Foi ele quem introduziu o difícil tema: "É melhor adiarmos." Ana exclamou um "não!" que parecia convicto mas era mais uma negação da evidência que se tornava maior, de dia para dia. "Vamos esperar mais um bocadinho".
Mas a Covid não mostrava jeitos de abrandar, muito pelo contrário. E havia a questão dos colegas e amigos de França, que tinham de organizar as suas vidas. No início de Abril, depois de respirarem fundo algumas vezes, adiaram a festa para 3 de Julho de 2021. Ainda pensaram arriscar Setembro deste ano, mas preferiram jogar pelo (mais) seguro. Todos os serviços envolvidos compreenderam e aceitaram (que remédio!). Ana e Bruno ainda tiveram receio que se perdessem os voos para Formentera, onde iam passar a lua-de-mel, mas tudo foi pacífico e o valor reembolsado. "Era a nossa primeira viagem a dois. Desde sempre que vamos para todo o lado com a nossa filha e, desta vez, íamos só nós." Lá está: é preciso pontaria.
Umas semanas antes da data marcada para o casamento civil, informaram-se sobre se seria possível mantê-lo. Era, mas teriam de ir sozinhos, e de máscara. E assim foi. No dia 8 de Maio, levaram as alianças, as máscaras, e assim casaram, sem testemunhas, nem aplausos, nem arroz, nem pétalas, nem beijos de parabéns, nem lágrimas de pais emocionados, nem fotógrafo para registar o momento.
Acontece que Ana e Bruno vivem num bairro de Oeiras que já aqui dei conta. Um bairro onde todos os dias do confinamento houve festa às janelas. Cantigas e danças e o hino, que aproximaram pessoas que viviam paredes-meias, mas não se conheciam pessoalmente e, muitas delas, nem de vista. Um bairro que se uniu de tal modo que foi criado um grupo de Whatsapp para que os vizinhos ficassem a par da "agenda" do dia à janela. E foi assim que Ana disse ao António, o DJ de serviço neste bairro tão particular, que ia casar naquele dia, e que contava com uma sessão musical à altura. O vizinho levou a missão muito a sério. Pediu aos noivos uma selecção de músicas que fosse relevante nas suas vidas, fez um convite de casamento que publicou no grupo e, às 20:30 de dia 8 de Maio, Ana e Bruno tiveram a boda mais estranha, divertida e emocionante que podiam imaginar. Dezenas de pessoas à janela bateram em tachos e panelas, a marcha nupcial soou aos berros pelo bairro, houve palmas, vivas aos noivos, houve canções que todos cantaram. Ana pôs uma bandelete com flores na cabeça, atou-lhe um lenço branco, para que fosse facilmente identificada como a noiva (já que o vestido está guardado para a festa, em 2021).
O noivo tinha o irmão, que vive em França, ao telefone, em videochamada, para que assistisse à festa de casamento possível. "O irmão chorou baba e ranho, o tempo inteiro." Em casa, estava a filha do casal e a mãe de Ana, ambas a chorarem de emoção. "É verdade que nos custou muito adiar a nossa festa de casamento. É verdade que esta pandemia trouxe coisas terríveis a todos nós. Mas não posso negar que a festa à janela foi tão especial que acabou por tornar o adiamento uma coisa boa. Foi mesmo comovente assistir à festa que nos fizeram, e senti que as pessoas nos davam os parabéns de forma sincera e emotiva. Cantámos, dançámos, comemos um bolo que comprámos no Auchan e que, longe de ser um bolo de noiva, tinha chantily e morangos e serviu perfeitamente. Foi lindo e inesquecível."
Para o ano, se tudo correr bem, será a festa na quinta. Ana irá vestida de noiva, virão os convidados de França, os familiares e amigos de lá e de cá, haverá fotógrafo e arroz e pétalas e bolo de noiva e beijos e abraços e o pézinho de dança que nunca pode faltar. Este ano a Covid atrapalhou-lhes os planos, mas eles deram bem a volta. Em 2021, se tudo correr bem, será como eles sonharam.