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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Fui (finalmente) à faca - Parte II

Acordei no recobro do Hospital St Louis, mas desse espaço só recordo o teto. As luzes no teto. E a dor. Lembro-me de abrir os olhos, naquele pestanejar lento de quem está a despertar de um sono fundo que não é o normal, e de procurar nos arquivos da minha memória a palavra certa para pronunciar em voz alta. Levei mais tempo do que seria costume, porque toda a gente sabe que não se abrem gavetas com facilidade quando se está ensonado (e sob o efeito de drogas), mas finalmente descobri o vocábulo que me faltava. E comecei então a repeti-lo numa cadência de quem não pretendia desistir:

- Dor! Dor! Dor! Dor! Dor! Dor!

Parecia que tinha obnubilado todas as palavras do dicionário, agarrando-me àquela que, subitamente, encontrei como a mais relevante para que me pudessem ajudar.

Veio alguém depressa, e creio que voltei a apagar, não sem antes agradecer mentalmente o tubo de ar quente que senti aos pés da cama, aquecendo-me quando tremia tanto, tanto (tantoooo) de frio. Não sei se foi nessa altura que dei conta de que tinha as pernas enfiadas em duas mangas (talvez devesse antes chamar-lhes perneiras) enormes que, de segundos em segundos insuflavam, apertando-as, para logo de seguida desinsuflarem, libertando-as (forma de estimular a circulação e evitar a formação de trombos), mas é possível que só tenha dado conta disso mais tarde.

Daí a pouco alguém veio informar-me que íamos subir para o quarto. Lembro-me da enfermeira ou auxiliar se debruçar para mim e dizer: "Vamos lá, que o seu marido já está à sua espera no quarto. Quer dizer, ele está há horas aqui à porta, parece um cãozinho abandonado, de maneira que vai gostar de a ver." Sorri. O meu querido. Só eu sei como ele tinha estado nas semanas anteriores. Só eu podia supor como ele estaria naquele momento. 

Quando a cama andou, vi as luzes do teto passarem, uma atrás da outra, e depois uma porta a abrir-se e depois o Ricardo. Sorriso enorme, de ambos, que dizia tudo: sobrevivi, caraças. Sobreviveste, caraças. A primeira parte já está. 

Ele fez o seu caminho e chegou ao quarto primeiro do que eu. Quando lá cheguei, vi-o a ele e à minha querida amiga Inês Queiroz. Acho que ainda protestei por ela estar ali àquela hora (sabia lá eu as horas), empatando a sua vida, mas todas as memórias que tenho desse período são realmente fugazes, uma espécie de flashes intermitentes de consciência. Recordo-me do Ricardo a contar-me qualquer coisa que eu queria mesmo ouvir e de o ver rir-se quando comecei a fechar os olhos. "Eu quero ouvir-te, juro que quero, mas está mesmo difícil."

Dormi o resto do dia, excepto quando vinham dar medicação (se bem que o estado em que ficava quando falavam comigo não era bem o de acordada, era mais uma espécie de limbo atordoado), dormi toda a noite. Sem dores. Às 5 da manhã acordei. Aflita para fazer xixi. Oh diabo. Se estou algaliada, por que raio sinto vontade de fazer xixi? E aí entra a minha mente hipocondríaca em acção: "Na volta isto é o saco que está cheio e o xixi está a voltar para trás, para os rins. E agora? Se o xixi volta para os rins isto pode dar aqui um embróglio do caraças, e a verdade é que eu quando estou bem me levanto 2 e 3 vezes por noite para ir à casa de banho, por isso eles se calhar não previram isto e agora o saco está cheio e..." A insanidade a crescer. Eu a transpirar, num início de desmaio. Silêncio total nos corredores. "E agora vou acordar estas desgraçadas, que estão a dormir, apenas porque sou uma anormal e estou a imaginar coisas? Vou aguentar". E aguentei. Uns 10 minutos. Depois, enchi o peito de ar (talvez não tenha enchido porque custa um bocadinho encher o peito de ar quando se teve a pele da barriga toda cortada e repuxada), e toquei por fim à campainha.

Veio uma auxiliar. Expliquei a minha inquietação. Ela olhou o saco e admitiu que já estava a ficar cheio, porém ainda não no limite. Entretanto, veio a enfermeira, para fazermos o levante (palavra usada para designar o momento em que nos levantamos da cama pela primeira vez). Viu-me a abanar-me (eu estava a ter um fanico vagal pelo tempo que estive a inventar cenários na minha cabeça) e perguntou o que tinha. Eu não disse nada e tentei cumprir as ordens: sentar primeiro. Esperar um pouco. Pôr de pé. Só que o filme que eu tinha feito na minha cabeça ainda estava a fazer o seu efeito, e eu comecei a ver tudo a andar à roda. Sentei-me. A enfermeira não percebeu: "então?"

-Ah, não me sinto muito bem. Acho que estou a ter um desmaio. Se me puder dar um bocadinho de sumo... 

- Não se sente bem? 

- É uma reacção vagal.

- Humm. Vagal? (geralmente - com todos os perigos decorrentes das generalizações - o pessoal da saúde não aprecia lá muito que o doente se refira a sintomas com termos técnicos. Não lhes podemos levar a mal, eles estudaram a porra de uma vida inteira, quem raio nos julgamos nós para virmos agora empregar a terminologia que é deles por direito e mérito?) Vamos medir a tensão. A senhora está toda a transpirar. Tem calor?

- Não. Tive um fanico (eu a regressar rapidamente ao vocábulo leigo, a ver se a nossa relação se recompunha), mas aposto que melhora se me der um bocadinho de sumo.

- A cozinha está fechada, não sei se encontro sumo para lhe dar.

- Encontra. Está ali na minha mesa de cabeceira, que eu há pouco não o bebi. 

- Mas é diabética?

(eu só queria mesmo que ela se calasse, mas sempre que não lhe respondia ela tornava a atirar-me uma pergunta)

- Não. Já lhe explico. 

Bebi o sumo. Abanei-me mais um pouco. Comecei a sentir que a normalidade regressava. E então expliquei:

- Sou hiponcondríaca. Estava aqui há um bom tempo a sentir vontade de fazer xixi e achei estranho, porque geralmente, com a algália, não se chega a sentir vontade. Vai daí e comecei a traçar um cenário maluco que metia danificação de rins, hemodiálise, e eu sei lá. Depois, logo a seguir veio a senhora enfermeira para me levantar. Cheia de drenos e costuras e o raio. E a minha cabeça sempre gráfica. E pronto. Senti-me desmaiar. E sei que se deixar passar um pouco e se comer algo doce, a coisa repõe-se. Foi isto.

- Ah, isso são ataques de pânico. Devia ir ao médico porque isso pode dar-lhe a conduzir.

- A menos que esteja algaliada, com soro nas veias, ou a barriga recém aberta... acho que isto não me dá a conduzir. 

Foi um momento meio sinistro mas compreensível. A enfermeira tinha de se assegurar de que eu não estava a ter outra porra qualquer (tipo uma trombose, ou coisa que o valha) e felizmente nem sequer aventei essa hipótese no momento, caso contrário podia ter fanicado outra vez. 

Mais tarde, tiraram-me a algália, que é sempre aquele momento em que uma pessoa pensa que talvez a vida pudesse terminar logo ali (depois, na prática, não custa assim tanto, mas quando se tem uma cabeça muito visual e pessimista tudo vira coisa complexa), e fiz o primeiro levante, com dois ou três passos e regresso à cama e às perneiras que incham e desincham sem parar.

De manhã, apareceu um anjo. O enfermeiro Victor Santos. Percebi logo que era excepcional quando entrou pelo quarto adentro, com um enorme sorriso, e atirou esta pérola:

- Então???? Que tal esta noite louca aqui no Bairro Alto, hum?? Boa?

Ri-me muito, o que foi agridoce, porque rir com uma costura na barriga de uma anca à outra é um pequeno suplício. Fizemos o levante com muita calma, eu e os meus 5 drenos, que mais não são que tubos que saem de pontos vários da carne e terminam numas bolsas de plástico (parecidas, na forma, com granadas de mão) para onde os líquidos excedentes são enviados. Dei os primeiros passos, à rasquinha, e daí a pouco fui à casa de banho e tudo na maior (tirando alguns detalhes sanguinários a que vos poupo). Mas dores, sinceramente, poucas. Tudo muito aliviado por doses cavalares de drogas nas veias, benza-as a santa Medicina.

O meu marido chegou pouco depois, tão aliviado por me encontrar já pessoa falante, ainda meio baralhada das ideias (bom, isso também já é algo costumeiro), mas sobretudo viva. Eu vi-o entrar como quem vê entrar o sol, perdoem-me a pirosice, mas foi mesmo, que isto de uma pessoa ter tanto medo de quinar faz com que a vida e aquilo que é realmente importante ganhe uma força do catatau (como diria o meu saudoso Pedro).

O enfermeiro Victor tentou ensinar o Ricardo a despejar os drenos, para o fazer em casa, mas ele começou a recuar até ao sofá, onde se depositou com estrondo, levando-me a pensar que tinha caído para o lado. Afinal não, mas pouco faltou, o que fez o enfermeiro rir e comentar que afinal quem ia despejar as cenas era mesmo eu. E assim foi, pois claro. Sexo fraco, hum? Right. 

O Dr. Tiago Baptista Fernandes veio ver-me para dar alta, com aquela boa disposição de quem está sempre em festa, autorizou a saída dos drenos das mamas (yuhuuu!), e despediu-se de mim com um "até já", uma vez que dali a ideia era sair dali directamente para a Up Clinic. O dreno da mama esquerda doeu um bocadito a sair, o da direita nem senti. 

Saí devagarinho, amparada no Ricardo, e fomos para a clínica de carro. O Bairro Alto precisa de obras no pavimento, porra, que cada abanão de cada buraco eram facas espetadas em mim toda. Fica a nota para as autárquicas. 

Na clínica, subi até ao 2º piso e fui calorosamente recebida pela Alexandra Fernandes, fisioterapeuta, e foi amor à primeira vista. Que pessoa querida, que sorriso, que simpatia. Mas... eu nem queria acreditar que a primeira sessão de drenagem linfática ia ocorrer logo ali, no dia seguinte a ter sido toda aberta, aspirada e cosida de novo (abdominais cosidos, inclusive). Achei que ia ter de bater na fisioterapeuta, ou morder-lhe ou terminar de qualquer outra forma abrupta e violenta uma relação acabadinha de começar (e com alguém que me fez de imediato soar as campainhas da empatia) mas ela foi tão suave, tão delicada e cuidadosa que não tive de recorrer à violência. O mesmo posso dizer da enfermeira (que ou era a Joana Oliveira ou a Daniela Ferreira - já estive com ambas, queridas as duas, e não consigo lembrar-me qual me chegou primeiro), que viu pensos e trocou coisas com imenso cuidado. 

E pronto. Cheguei a casa. Feliz e contente por estar de volta. Mais leve, mais curvada, carregada de medicação para tomar quase de hora a hora, e com três granadas de mão sempre penduradas em mim (uma nas costas, e duas na zona púbica). A recuperação pós-cirúrgica estava só a começar.

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Eu, ainda inchadíssima da cirurgia, com o chapéu "Cocó da Sorte", oferecido pelos sempre presentes condes de Manike. 

 

(to be continued...)

 

Se não formos nós, todos nós, o Camp Abilities este ano não acontece

Não sei se se lembram mas no ano passado fiz uma reportagem aqui no blogue sobre um campo de férias muito especial: o Camp Abilities. Se não tiveram oportunidade de ver... convido-vos mesmo a tirarem um bocadinho do vosso dia para lerem e para se emocionarem com aquilo que alguns seres humanos fazem pelos outros. Basicamente, trata-se de um campo de férias, cheio de actividades, para crianças/adolescentes cegas e para crianças/adolescentes que vêem. Sendo que - e isso é que faz toda a diferença - os meninos que vêem são os monitores dos que não vêem. Mas, no final, muitos dos monitores admitem que aprenderam muito mais do que ensinaram. Que achavam que os cegos tinham limitações impossíveis de vencer e que ficaram impressionados com a sua resiliência e força de vontade. Mais: os cegos experimentam fazer coisas que nunca na vida sonharam sequer fazer (surf, tiro com arco, capoeira, judo, boxe, mergulho, atletismo, skate, futebol, espectáculos de música, canto, dança, teatro...). E, no final, há quem engula em seco porque já acabou (todos) e os miúdos que vêem garantem que saem dali outras pessoas, e que aquela semana mudou as suas vidas. Isto dito assim é profundamente redutor, por isso é que gostava tanto que lessem a reportagem

 

Ora bem. Este ano, o Camp Abilities está em risco de não acontecer. A organização não é apoiada pelo Estado (apesar de fazer, quanto a mim, verdadeiro serviço público) e, sem apoios de qualquer espécie, não é possível fazer acontecer, por muito boa vontade que a Rita Costa e a sua equipa tenham (e têm). Todas as actividades que os miúdos fazem são feitas por empresas que se deslocam ao local onde o campo de férias se realiza e cobram pelos seus serviços. O próprio local onde tudo se passa cobra pela permanência destas crianças lá (onde dormem e comem e praticam as tais actividades), e o valor não é baixo. Além disto, existem os coordenadores, que são especialistas, e que têm naturalmente de ser pagos pelo seu trabalho - inventar programas, ajudar nas tarefas, orientar os miúdos, ajudar nas refeições, estar atento a quaisquer necessidades, etc., etc.

Foi por perceberem que pode não haver campo de férias este ano que lançaram um Crowdfunding. Só precisam de 5000 euros. Ok, parece muito, aos olhos de quem se governa com muito menos do que isso por mês. Mas esta é uma semana intensa para 44 crianças, 22 das quais não têm a mesma sorte que nós, a de podermos ver o mundo com os olhos. Elas vêem-no com outros sentidos, sem dúvida, mas nem sempre têm ao dispor tudo aquilo que experienciam naquela semana. E mesmo para as crianças e jovens que vêem... acreditem: aquela semana é transformadora. Saem de lá melhores pessoas, gente com o coração no lugar certo. E de grupo em grupo, todos os anos, acredito que o Camp Abilities está a contribuir para formar gerações melhores, menos umbiguistas, menos preconceituosas, mais abertas à inclusão.

Se puderem ajudar, nem que seja com 1 euro, eu agradeço-vos muito. 

Crowdfunding AQUI

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