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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Clube de Leitura de Lisboa: foi na sexta e a seguir jantámos

(Não admira que tenha demorado uma vida a escrever este post, caraças! Agora que publiquei é que vi o tamanho deste lençol)

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Foi dos bons. Vá, sou franca: nunca há dos maus. Mas, claro, uns acabam a ser melhores do que os outros, às vezes nem sei bem porquê, até pode ser da minha própria disposição.  Este foi dos bons porque teve alguns regressos (Célia e Diana), elas que costumavam vir sempre e já não vinham há tanto, tanto tempo. E teve pessoas novas, o que é sempre refrescante e sinal de que continuamos em reta ascendente. E a Ana Maria Inácio, que nos tinha oferecido uns marcadores lindos em tecido, acabou a aparecer também mas só para dar um beijinho e para que todos os presentes pudessem agradecer-lhe de viva voz o miminho tão querido e desinteressado. Havia vinho, tarte de amêndoa, bolinhos, salgados...

A Sara leu Anatomia de um Escândalo, de Sarah Vaughan e gostou, mas não com aquele entusiasmo que esperava sentir, sobretudo depois de ler algumas das entusiasmadas descrições que vêm no próprio livro. Basicamente, James é um pai dedicado, uma figura pública carismática, um bom homem que, de repente, se vê acusado de um crime terrível. A sua mulher acredita na sua inocência mas a advogada de acusação está segura de que ele é culpado e deve pagar pelos seus crimes. Quem terá razão? Sophie ou Kate? A Sara já sabe mas diz que não foi particularmente entusiasmante descobrir. Também leu Antes de Te Conhecer, de Lucie Whitehouse, e fez com que qualquer pessoa da sala arrepiasse caminho se porventura pensava lê-lo. "Zero emoção", foi assim que se referiu ao livro. E ainda leu (raça da rapariga, que lê que se farta) Os Vizinhos do nº 9, de Felicity Everet, mas também não ficou arrebatada. Dois casais vizinhos tornam-se inseparáveis e, de repente, a relação torna-se muito complexa, com consequências devastadoras. Pergunto à Sara se não se sente também ela devastada quando lê livros que não a arrebatam nem sequer minimamente. Ela explica que não. "Só poderia saber se eram bons ou não lendo-os. E de qualquer maneira são leituras nos transportes, são daquelas leituras que não fazem com que sintamos que perdemos tempo. A alternativa era ir a olhar para o ar..." Bem visto (se bem que a olhar em redor pode aprender-se imensa coisa, atenção!).

A Paula leu Uma Chuva de Diamantes, de Sveva Casati Modignani. Que sim, levezinho, lê-se muito bem (já eu, quando oiço isto, fico assim meia desconfiada, parece a descrição de um comprimido que não é muito grande e, por isso, se engole bem 😂​). Um grande editor morre deixando aos filhos e netos um enorme património e um mistério inquietante: uma parte significativa da herança está pura e simplesmente desaparecida. A leitura do testamento desencadeia uma desenfreada caça ao tesouro. A Paula leu também A Casa na Praia, de Anita Shreve, e sentiu que tudo fluiu bem. É a história de uma mulher que tem pavor que o seu marido, piloto, morra num acidente de aviação e que, por isso, se divorcia dele. A seguir, Sydney casa com outro, um jovem médico, e o destino, que é um grande sacana, faz com que o marido morra subita e inesperadamente no hospital onde trabalha. Mas a viúva ainda tinha muitas aventuras para viver. É assim mesmo, acrescento eu!

O Ricardo, homem entre as mulheres, leu o primeiro volume d'Os Pilares da Terra, de Ken Follett, e está a ler o segundo. Adorou. Ainda nunca tinha lido Ken Follett e ficou rendido a este arrebatador romance histórico que se revelou ser uma obra-prima. É uma história épica, cheia de intrigas, aventura e luta política. A trama centra-se no século XII, em Inglaterra, onde um pedreiro persegue o sonho de edificar uma catedral gótica. À volta desta ambição, o leitor vai acompanhando um período da Idade Média carregado de personagens, poder, vingança e traição.

A Beatriz Mendes leu Normal People, de Sally Rooney (traduzido em português para Pessoas Normais) e gostou muito. Pessoas Normais é a história de um casal que tenta separar-se mas que acaba por entender que não o consegue fazer. Mostra-nos como é complicado mudar o que somos e revela muito sobre sexo e poder, desejo de magoar e ser magoado, de amar e ser amado. Fiquei com vontade de ler, sobretudo depois de ter lido que o The Times o considerou o melhor romance do ano. Mas, como sempre, a Beatriz leu mais do que um livro. E trouxe-nos também O Sentido do Fim, de Julian Barnes, que só por ser de Julian Barnes já leva o carimbo de qualidade (li o Nada a Temer e gostei muito). A Beatriz descreveu este livro como sendo uma pequena maravilha, porque é a história de uma grupo de amigos que, chegados a velhos, recordam o que ficou para trás, descobrindo que a memória é, afinal, uma coisa altamente imperfeita. Além de ouvir a Beatriz dizer que é um livro imperdível, além de ter gostado muito de Barnes, ainda li o que escreveu no Expresso sobre este livro o José Mário Silva, que trabalhou comigo no DNA: "A escrita de Barnes – com as suas frases perfeitas, por vezes a raiar o sublime – faz deste livro uma obra-prima." Lá terá de ser. A Beatriz ainda leu Jesus Cristo Bebia Cerveja, de Afonso Cruz, O Optimismo Aprendido, de não sei quem e A Vida que Floresce, de Martin Seligman. Está toda viradinha para a psicologia positiva e agora é só copos meio cheios, que é o que é preciso.

A Andreia, que tem uma página sobre livros, com a irmã, chamada As Miúdas dos Livros, e veio da Suiça, onde está emigrada, de propósito para assistir ao clube (mentira, estava cá a passar uns dias mas não interessa), leu vários livros nos últimos tempos e, como agora não se sabe quando volta, falou desses vários: O Rouxinol, de Kristin Hannah, de que gostou muito (um livro sobre a segunda Guerra Mundial, incidindo sobre uma parte da história que raramente é vista: a guerra das mulheres); bem como A Grande Solidão (da mesma autora). A Grande Solidão é sobre a ida de uma família para o Alasca, numa tentativa (vã) de fugir aos fantasmas do pai, ex-combatente no Vietnam. Por lá, mãe e filha descobrem que estão sozinhas. Um retrato da fragilidade e da resiliência humanas, do amor e da perda, da luta pela sobrevivência e da rudeza que existe tanto no homem como na natureza. Fiquei com muita vontade de ler este. A Andreia está ainda a ler Voar no Quarto Escuro, de Márcia Balsas; Sophia, a Menina do Mar, de Jorge Lima e Cristina Falcão (sobre Sophia de Mello Breyner). E, como esta é uma primeira vez (e sabe-se lá quando será a próxima), a Andreia ainda relembra um livro que leu, chamado Dez Anos Depois, de Liane Moriarty, que conta a história de uma mulher que, aos 39 anos dá uma aparatosa queda no ginásio e a última década da sua vida apaga-se por completo da sua memória. Tem novamente 29 anos, está apaixonadíssima pelo marido e à espera do primeiro filho. Só há um pequeno problema: tudo isto se passou há dez anos… No presente, Alice é mãe de três filhos, enfrenta um difícil processo de divórcio e está de relações cortadas com a irmã, que adora. Conseguirá alguma vez reencontrar a mulher que foi na fase mais feliz da sua vida? Uma nota para a Diana que, ao ouvir a Andreia contar a parte em que a mulher cai no ginásio, interrompe para dizer, com imensa graça: "É por isso que eu não vou ao ginásio". Muito rimos todos.

A Beatriz Couto leu O Contador de Histórias, de Jeffrey Archer, e não me pareceu assim muito entusiasmada. O livro reúne13 histórias distintas, sendo oito delas inspiradas em acontecimentos reais. Aqui podemos ler a história sobre todos os habitantes de uma pequena cidade italiana que quiseram assumir a culpa do assassinato do respetivo Presidente da Câmara, ou a de um homem que enriqueceu a explorar um parque de estacionamento que não lhe pertencia, durante anos a fio.

A Vera, que foi pela primeira vez ao clube, diz que está a tentar voltar às leituras, ela que tem três filhos, o mais pequeno dos quais ainda mama (e ela está de licença de maternidade), razão pela qual teve de sair de repente, como um relâmpago, para ir alimentar a cria. A Vera leu Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, deixando-nos a todos (ou a muitos, vá) com alguma saudade dos clássicos portugueses. Ela adorou o livro, cuja trama decorre à volta de um namoro, entre João Garcia (filho de uma família nova-rica sem títulos) e uma menina de seu nome Margarida Clark Dulmo (elemento mais novo de uma família respeitável, aristocrática, com origens estrangeiras novas, mas em quase falência), cujas famílias estão afastadas por antigas questões e ressentimentos. Diz quem sabe que a obra apresenta uma panorâmica da sociedade açoriana e também de problemas que animam todos os seres humanos tais como paixões, medos, entusiasmos e angústias. David Mourão Ferreira descreve-a como a obra "mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil em toda a nossa história literária".

Em Teu Ventre, de José Luís Peixoto, foi o livro lido pela Ana. Uma reflexão sobre Portugal, a partir das aparições de Nossa Senhora a três crianças, em 1917. A questão da maternidade é apresentada em múltiplas dimensões, nomeadamente na constatação da importância única que estas ocupam na vida dos filhos. A Ana, que se encanta com os temas da maternidade, deixou-se deslumbrar por este livro sensível e surpreendente de José Luís Peixoto.

A Diana, que já não vinha há tanto tempo que ainda nem conhecia o nosso "novo" poiso (o fantástico Brown's Hotel), ainda trouxe a sua opinião sobre o Crime e Castigo, de Dostoiévski (que não foi grande coisa, por lhe terem escapado alguns desvarios literários que lhe pareceram extemporâneos), e está a ler Cakes And Ale, de William Somerset Maugham (estranhamente traduzido em português para Destino de um Homem) e a gostar muito

Por Favor Cuida da Mamã, de Shin Kyung-Sook, foi um dos livros lidos pela Susana, que já tinha ido uma vez (salvo erro foi só uma) e agora nos honrou de novo com a sua presença. E que bom que foi. Fiquei cheia de vontade de ler este livro. É a história de uma mulher de 69 anos que, chegada de uma pequena aldeia do interior à movimentada Seul, é separada do marido pela multidão, numa estação de metro, e desaparece sem deixar rasto. A família inicia então uma busca desesperada por toda a cidade. E, de repente, dão por si a pensar: até que ponto conhecessem essa mulher a quem chamam "mãe"? O livro é narrado por 4 personagens distintas: a filha, o filho, o marido e a própria mãe desaparecida. Por Favor Cuida da Mamã, apesar de ter um título miserável em português (que me afastaria do livro se não soubesse nada sobre ele), revela-nos a intensidade da vida familiar e a fragilidade dos seus laços. É um retrato da sociedade coreana contemporânea e uma história universal do amor que une uma família. A Susana também leu O Livro do Destino, de Parinoush Saniee, que é a história de uma adolescente iraniana que descobre o amor mas que é obrigada pela família a casar-se com um homem que nunca viu. O marido é um dissidente político e acaba por ser executado. Quando, ao fim de 32 anos, o seu primeiro amor reaparece, os seus três filhos olham-na com indignação, incluindo os dois que vivem no estrangeiro. Deverá ela colocar os seus sentimentos em primeiro lugar, ou submeter-se aos preconceitos dos filhos? Uma história comovente sobre a vida das mulheres no Irão, que começa antes da revolução de 1979 e atravessa a República Islâmica até aos nossos dias.

A Marta está a ler o livro de um dos laureados com o Prémio Nobel da Literatura deste ano: Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, de Olga Tokarczuk. A Marta está a gostar e está cheia de sorte porque foi este um dos livros escolhidos como leitura "obrigatória" do mês de Novembro. Numa remota aldeia polaca, uma professora reformada divide os seus dias a traduzir poesia e a observar os sinais da astrologia. Prefere os animais às pessoas. Mas a pacatez dos seus dias é interrompida quando começam a aparecer mortos vários membros do clube de caça local. E é então que a professora reformada decide investigar e descobre algo que deixará a comunidade aterrada. Fiquei curiosa (e vou poder satisfazer a minha curiosidade muito em breve).

A Cláudia veio pela primeira vez, tal como a Andreia, e leu imensos livros no último ano. Aconselha muito o livro Deixo-te para Não te Perder, de Taylor Jenkins Reid, que é um romance sobre casamento, laços familiares, amor, ruptura, interesse individual e colectivo. Um casal decide afastar-se durante um ano, na esperança de voltar a sentir a paixão perdida. A Cláudia também gostou muito de Ontem à Noite, de Catherine O' Connell (Uma mulher vai casar e reúne as amigas para uma despedida de solteira mas... as coisas correm horrivelmente mal. Uma delas morre e a noite, que era para ser inesquecível, torna-se um pesadelo).

A Cristina leu (pela segunda vez) o livro Quem Quer Ser Bilionário?, de Vikas Swarup. Lembrava-se de ter gostado infinitamente mais do livro do que do filme e, agora, decidiu relê-lo e, já agora, ver assim na diagonal de novo o filme, para confirmar que sim, o livro é muito melhor do que o filme, porque o livro conta a história de Ram, que ganha efectivamente um concurso, mas em que cada capítulo explica a razão pela qual ele sabia cada resposta a cada pergunta que lhe é feita. Segundo a Cristina, é mesmo um livro imperdível (e eu, que vi o filme, tenho mesmo de o ler). A propósito do que o Ricardo falou de Ken Follett, ela confirmou o génio do escritor, também pela trilogia O Século, que considerou muito boa. E, ainda a reboque doLivro do Destino, que a Susana trouxe, disse que também leu e gostou, e que também leu outro da mesma autora (Parinoush Saniee): O Silêncio da Minha Voz.

A querida Inês, que tem um lugarzinho muito especial no meu coração porque é muito novinha, entrou este ano na faculdade, e aparece sempre que pode, com aquele brilho no olhar, para nos contar o que leu. Desta vez, não conseguiu ler nada mais que os livros da faculdade e, ainda assim, lá foi ela ouvir-nos, se não é a dedicação e entusiasmo em pessoa, benza-a Deus!

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, foi o que a Isabel Oliveira nos trouxe. Gostou muito e confessa que, apesar de ser mulher, de não ser militar, e de não viver num deserto, se sentiu identificada com Drogo, um militar que é enviado para uma remota fortaleza num deserto. Drogo pensa que vai apenas por pouco tempo mas ali fica anos e décadas, aguardando a invasão tártara que nunca chega. A necessidade humana de dar sentido à vida e o desejo de imortalidade através da glória são o tema sobre o qual circulam as alegorias desta obra. O Deserto dos Tártaros é considerado uma das obras-primas do século XX. Sobre o seu autor Jorge Luís Borges disse: "Há nomes que as gerações vindouras não se resignarão a esquecer. Um deles é Dino Buzzati." Sobre o livro, Isabel comentou: "É um livro mesmo bom para maduronas em crise". A Isabel nunca me falha. :) Além desta masterpiece, a Isabel também leu coisas mais prosaicas, como um livro de culinária chamado Super Bowls - Simples e Saudável, de Bérengère Abraham, e que revela o segredo para ter, numa só taça, uma refeição simples, completa, saudável e nutritiva. E ainda conseguiu trazer-nos uma sugestão espiritual, com o livro Uma Beleza Que nos Pertence, de José Tolentino de Mendonça. Isabel, que é ateia, ficou presa da primeira à última página, por estes aforismos, ensinamentos para o dia a dia, perguntas que inquietam ou deixam a reflectir, sempre na permanente procura da felicidade. Ah, e agora está a ler À Espera de Godot, de Samuel Beckett, e está a achar um suplício. Ah ah ah.

A Elisabete leu A Zona de Desconforto, de Jonathan Franzen, mas confessou ter gostado muito mais do Liberdade, do mesmo autor. A Zona de Desconforto é a memória íntima que Franzen guarda do seu crescimento dentro de uma pele hipersensível, de "uma pessoa pequena e fundamentalmente ridícula", passando por uma adolescência estranhamente feliz, até se transformar num adulto de paixões fortes e inconvenientes. A nossa Bete também leu O Senhor Monstro, de Dan Wells, que é um thriller cheio de humor negro. 

A Célia, que era um dos mais fiéis e assíduos membros do clube de leitura e que, por coisas da vida, não aparecia havia meses, deu finalmente o ar da sua graça (e se está com bom ar!) e trouxe-nos os livros À Beira do Colapso, de B.A. Paris, que achou um bocado previsível (mas atenção que ela papa thrillers como o camaleão papa moscas, de maneira que já é diplomada nisto de descobrir ao fim de cinco minutos quem matou quem) e leu também O Equador, de Miguel Sousa Tavares, de que gostou muito. 

A Joana Madeira leu o 4º livro da saga Millennium, A Rapariga Apanhada na Teia de Aranha, já não escrito por Stieg Larsson (o autor morreu depois de entregar a sua trilogia de mega sucesso mundial, sem nunca ter chegado a conhecer o êxito retumbante que teve), mas escrito pelo seu sucessor, David Lagercrantz. Neste thriller carregado de adrenalina, a genial hacker Lisbeth Salander e o jornalista Mikael Blomkvist enfrentam uma nova e perigosa ameaça que os leva mais uma vez a unir as suas forças. Uma noite, Blomkvist recebe um telefonema de uma fonte confiável declarando ter informação vital para os Estados Unidos. A fonte tinha estado em contacto com uma jovem mulher, uma super-hacker que se parecia com alguém que Blomkvit conhecia muito bem. As consequências são surpreendentes. Blomkvist, a precisar urgentemente de um furo jornalístico para a Millennium, pede ajuda a Lisbeth, que, como habitualmente, tem a sua agenda própria.
Eu li Pequenos Fogos em Todo o Lado, de Celeste Ng, mas não vou dizer o que achei porque para a semana vou ao Porto falar sobre ele também. 

A seguir jantámos e continuámos as conversas, as partilhas. Somos mesmo felizes neste clube de leitura que é, como a Ana Maria Inácio percebeu tão bem quando fez aqueles marcadores para nos oferecer, uma casa. 

Algumas coisas maravilhosas

Como tive oportunidade de aqui contar, fui ver a peça "Todas as Coisas Maravilhosas", interpretada divinamente pelo Ivo Canelas, e saí de lá com muita vontade de colocar um rolo de papel pendurado algures para que todos nós, lá em casa, possamos ir elencando as nossas pequenas, médias e grandes coisas maravilhosas.

Para que não leu e não sabe do que trata a peça, explico: é a história de um miúdo que, sendo confrontado com a depressão e tentativa de suicídio da mãe, começa a escrever uma lista de todas as coisas maravilhosas que fazem com que a vida valha a pena. Uma lista que começa a escrever em criança, com as coisas simples a serem elencadas, e que continua a ser escrita pela sua vida fora, e onde são incluídas coisas simples e outras mais complexas até quase ao infinito, porque se pensarmos bem há tanto que nos pode fazer felizes.

A peça marcou-me de tal modo que nunca mais tirei isto da cabeça. E, pensando na quantidade de pessoas que andam tristes, muitas mesmo a sofrer de depressão, lembrei-me: e se fizésemos todos uma lista? Não todos, porque há sempre quem não goste, quem não queira, mas os que quiserem fazer este exercício. 

Assim, deixo a sugestão: quem quiser envie-me uma pequena lista de coisas maravilhosas. Pode ser tão simples como um pastel de Belém ou tão complexo como sentir na barriga um bebé que levou muito tempo a chegar. Pode ser tudo. Coisas pequeninas, quase insignificantes, ou coisas grandes, grandiosas mesmo. Mandem para sonia.morais.santos@gmail.com. E farei uns quadradinhos parecidos com este que fiz para mim, com aquilo que me veio à cabeça assim de repente (e que poderia ser muito mais estendido, naturalmente), com o nome de cada pessoa que elencou a sua lista. 

Agradecer e festejar isto de estar vivo. Não me ocorre melhor forma de celebrar o meu aniversário (que está aí mesmo à porta).

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Malditas enxaquecas

Calhou que na distribuição genética tenha puxado mais ao pai em quase tudo, mas também... à madrasta. Brincadeira, bem sei que não posso sacar genética da madrasta (é melhor esclarecer isto, com a fama que as bloggers têm ainda supunham que eu acreditava verdadeiramente nesta possibilidade), mas gosto de o dizer porque, de facto, nem mãe nem pai, nem avós, a verdade é que parece não haver registo familiar de enxaquecas. A única pessoa que conheci que sofria horrores desse mal era, efectivamente, a minha madrasta. Recordo dias e dias dela deitada na cama, sem poder ouvir um alfinete cair ao chão, toda envolta em penumbra, com um lenço amarrado à testa, tão amarrado que quando o tirava tinha impressas na pele e na carne as marcas da pressão do tecido. Lembro-me de lhe fazer massagens, lembro-me como ia a correr para a casa de banho vomitar, e como isto acontecia ora sem explicação ora por culpa de um queijo, de um vinho, de um excesso qualquer, quase como um castigo certeiro para uma culpa assumida.

Nunca tive dores de cabeça até há uns anos. Não consigo recordar se coincidiu com alguma coisa má ou especialmente stressante na minha vida (deve ter coincidido), mas lembro-me de ir a um neurologista porque - claro - achei que tinha um tumor. Fiz ressonância ou TAC, não me lembro, e não. Não tinha. Na altura o médico falou em enxaquecas, receitou-me o Maxalt, que era eficaz mas proporcionava uma moca deveras atroz, começava por sentir um frio nas omoplatas que se espalhava para a zona das meninges e depois toda eu ficava geladinha e dormente mas sem dor.

Entretanto a coisa passou e... há 3 anos as malditas dores de cabeça voltaram. Voltei a acreditar que poderia ser um tumor e acabei num médico de Medicina Interna que olhou para mim, conversou um bocado, e perante a história que lhe contei (tinha acabado de morrer um grande amigo e outro tinha acabado de ser diagnosticado com a mesmíssima doença do primeiro), progonosticou: "Isso são dores de cabeça de tensão, quase de certeza. Mas, vá, vamos descartar o tumor." Descartámos. E a verdade é que as minhas dores apanham os ombros, o pescoço, a zona das omoplatas e é um sofrimento do catano que se intensifica sempre que alguém próximo adoece ou morre ou o c... 

Hoje é o quarto dia. Os dois primeiros dias foram beras, comigo a engolir o Zilpen, que é o meu salvador (nada mais que Tramadol, pumba!), sem dó nem piedade. Hoje sinto que a maldita está cá, sinto-a ainda que não tenha dor. Não é fácil explicar mas sinto que não estou inteiramente eu, há aqui uma latência nos ombros, no pescoço e na tola, que é como se a bandida dissesse "Não penses que me fui, estou aquiiiiiii". 

Hoje há Clube de Leitura e não vou poder beber vinho a acompanhar as leituras, o que é uma tristeza. Felizmente não é tumor, é nisso que penso sempre que amarro o cinto do robe à cabeça. Nisso e em como é esquisito sair à madrasta.

 

Quando encontras um ex no caminho

Hoje quando estava a levar a Mada à escola (excepcionalmente de mota porque hoje o Mateus tinha com quem ficar em casa e porque ela confessou estar muito cansada para pedalar - claro que a hipocondríaca em mim ficou logo alerta para o cansaço dela, mas a racional em mim explicou à hipocondríaca que a vida que a miúda leva é, de facto, cansativa), parei numa passadeira para deixar passar o peão que se aproximou com o seu cão. Foi então que vi tratar-se de um ex-namorado. Ele sorriu, agradeceu e atravessou, mas é quase impossível que me tenha reconhecido através do meu capacete fechado que só deixa os olhos à vista. Já eu fiquei a vê-lo passar e inevitavelmente a recordar a relação breve que tivemos, há uma vida. Constatei que manteve o bom aspecto, magro, o sorriso bonito, bem vestido. Reparei no cabelo todo branco, que não lhe ficava nada mal, e reconheci a passada calma e o ar impecavelmente arrumado que inviabilizaria qualquer relação duradoura com uma pessoa como eu. Sorri dentro da concha do meu capacete e virei à direita, para a escola da Madalena. Que vida teria sido a minha, se tivéssemos continuado juntos?, ocorreu-me. Tornei a sorrir. É um exercício divertido e, ao mesmo tempo, inquietante. Que teria sido a nossa vida, a de cada um de nós, se um "se" não se tivesse metido pelo caminho? (reparem na profusão de "ses" que esta frase contém). Seríamos os mesmos? Ou outros? A essência manter-se-ia ou poderia diferir totalmente? Despedi-me da Mada com um abraço possivelmente mais apertado que nos outros dias. Afinal, ela podia não ser, não estar, não ter chegado a existir. Tudo se um "se" mudasse toda a história. Ainda bem que não mudou. 

Dias bons

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Na semana passada fui finalmente conhecer o Vila Galé Sintra. Já tinha recebido alguns convites para ir lá passar um fim-de-semana mas ainda não tinha conseguido, de maneira que foi desta que arranjei forma de lá ir dar uma espreitadela. Peguei numa amiga (não ao colo, apesar dela pesar tão pouco que até podia) e fomos passar uma manhã diferente. Marquei uma massagem para cada uma no SPA e lá fomos. Ela entrou primeiro, eu fiquei na salinha de repouso a beber um chá, já de roupão imaculadamente branco, e com o meu livrinho por companhia. Depois, trocámos. Já devidamente massajadas (se fosse milionária fazia uma massagem por dia - estou sempre toda torcida, embrulhada, cheia de contraturas, tenho enxaquecas de tensão cada vez mais frequentes), fomos para a piscina interior. Toda ela rodeada de janelas de chão ao tecto, com vista para a serra de Sintra, assim mesmo um abuso de vistaça. Olhem lá se não é de ficar de queixo caído.

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Depois disto tudo... ainda fomos almoçar no restaurante do hotel, com a mesma vista e a mesma luz. Estava tudo divino e ainda tivemos a sorte (ou o azar, dependendo se a perspectiva é a da gula ou a das ancas) de nos trazerem uma sobremesa de cada para que pudéssemos experimentar tudo. Ficámos até toda a gente já ter ido embora, porque é à mesa que as conversas se desenrolam melhor.

De maneira que agora tenho mesmo de arranjar um fim-de-semana jeitoso para levar lá os miúdos. 

Obrigada, Vila Galé. Vocês nunca me decepcionam (a começar pelo poiso que me dão no Porto para realizar o Clube de Leitura do meu coração). 

 

*A Cocó na Fralda esteve no Vila Galé Sintra a convite do Grupo Vila Galé

É já na quarta!

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A causa merece tanto que todos vão ao concerto. Tanto! 

O valor dos bilhetes vai para a construção da casa "Porto Seguro", um espaço projectado pela Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL) para que doentes hemato-oncológicos deslocados e com carências económicas (e respectivas famílias) possam ficar alojados numa casa, onde poderão receber todo o apoio de que necessitam durante o período de tratamentos.

Quem vai actuar? Ana Bacalhau, Tim, Sofia Escobar, Paulo de Carvalho, Gisela Hoão, Carlão e a Orquestra Promenade!

Quarta-feira, às 21:15, no Campo Pequeno, em Lisboa.

Vamos daí?

 

Todas as coisas maravilhosas

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Fomos ver na sexta-feira. Que coisa maravilhosa. O texto, de Duncan Macmillan é simplesmente uma delícia. A ideia é uma ternura. Uma criança de 7 anos começa a escrever uma lista de todas as coisas maravilhosas que o mundo tem, como forma de tentar que a mãe, deprimida e suicida, volte a gostar de viver. A lista é belíssima e contém quer as maravilhas simples para uma criança de 7 anos, quer as mais elaboradas, de um jovem e de um adulto, porque a mãe continua doente e o filho cresce e continua a escrever a lista. 

A adaptação de Ivo Canelas é espantosa. Comovente, intensa, violenta, divertida, triste. Avassaladora. Que actor do catatau!

Saí de lá com uma profunda vontade de criar a lista cá em casa, para que a possamos ir escrevendo, a 6 mãos. 

O presidente e os "influencers"

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Há dois anos fui uma das convidadas pelo então presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, para ir a Bruxelas reunir e pensar em estratégias para que os jovens não vivessem tão alheados da Europa. Fui eu e uma série de pessoas de toda a Europa com um papel activo nas redes sociais (acho "influenciador" uma designação mesmo infeliz). No ano passado, voltei a ser convidada para ir ao Parlamento Europeu (eu e outros bloggers, instagramers e youtubers de todos os países da Europa) e vim de lá com a certeza de que queria dar o meu humilde contributo para relembrar a importância do voto, a importância da Europa, a importância de nos importarmos (passe a redundância). Foi assim que mandei imprimir uma janela onde se lia "Desta Vez eu Voto" e andei meses a chatear várias figuras públicas para que me dessem 1 minuto do seu tempo e aceitassem gravar um vídeo em que fizessem o seu apelo ao voto, e onde pudessem dizer por que razão consideravam que a Europa ainda faz sentido (apesar da crise que inequivocamente vive). Fiz dezenas de vídeos que valeram o que valeram. Possivelmente nada. Mas pelo menos senti que fiz alguma coisa. Que tentei passar uma mensagem. Fi-lo obviamente sem receber nada em troca. Porque senti que era meu dever, enquanto cidadã.

Há cerca de um mês, fui de novo convidada, desta vez pelo gabinete do Parlamento Europeu em Portugal, porque me queriam agradecer o contributo (como se não fosse, na verdade, a minha "obrigação"), e tive então oportunidade de reunir com alguns deputados europeus que queriam saber se os voluntários teriam ideias para divulgar o que se faz na Europa, não apenas em vésperas de eleições, mas durante o mandato. E eu tenho ideias e quero - e vou! - pô-las em prática. Se conseguir explicar - trocado por miúdos - o que fazem os nossos deputados na Europa e quem são (de forma mais profunda) e como é que as medidas adoptadas interferem, na prática, na vida de todos nós, se conseguir explicar isto a uma pessoa que seja, e essa pessoa for votar, consciente da importância de uma cidadania activa... então já valeu a pena. 

Ora bem. Há uns dias fui - juntamente com outras pessoas com redes sociais activas - convidada pelo Presidente da República Portuguesa para ir a Belém. E, claro, caiu o Carmo e a Trindade. Foi o gozo, o achincalhamento, o Deus nos acuda. Portugal no seu melhor, sempre a levar-se tão a sério... Que raio, o Presidente a conversar com "essa gente"?

Ora, vamos lá ver uma coisa: todos os líderes políticos levaram as mãos à cabeça com o número da abstenção em mais umas eleições. Falou-se em calamidade. Em flagelo. "É preciso reflectir". "É preciso agir". "É urgente tirar ilações". Sim senhora. Todas as eleições a mesma coisa. "É preciso reflectir". "É preciso agir". "É urgente tirar ilações". O que é que já se fez? Rigorosamente nada. Mas quando um presidente pensa em soluções, que podem eventualmente passar por comunicar com quem tem um papel activo nas redes sociais (e milhares de seguidores que podem, eventualmente, sentir uma maior proximidade ao tema se o tema lhes for posto por aqueles que sentem também como mais próximos), é o fim do mundo em cuecas.

Se me identifico com muitas das pessoas que estavam naquele encontro? Não. Não por ser melhor que ninguém, simplesmente porque falamos de coisas distintas, temos interesses diferentes, formas díspares de ver a vida. O que é que eu tenho em comum com uma Sea3po, por exemplo? Talvez quase nada. A começar pelo facto de ela ter 800 mil seguidores no Youtube e eu nem sequer saber o que raio é esse número de seguidores. E é porque ela fala para miúdos e testa produtos bizarros e faz vídeos malucos que eu vou desprezar o facto de ter conseguido um canal com este número de pessoas que gostam dela e de ver o que faz? É por ela ter cabelo azul e dizer "bué" um sem número de vezes nos seus vídeos que vou desvalorizar o facto de haver mais de 800 mil almas que gostam do que ela faz, a respeitam, consideram como válido o que ela diz?

Se me identifico com algumas das pessoas que lá estavam? Sim. Porque temos idades e preocupações e paixões semelhantes. Éramos um grupo heterogéneo (estavam actores, humoristas, uma fadista, radialistas, bloggers, instagramers, etc) e estivemos a conversar com o presidente da República, tal como ele faz com muitas outras pessoas, de áreas distintas. Mas, ui, com "influencers" é que não, cruzes credo, Deus te livre e guarde. 

Li algumas pérolas estes últimos dias. Nomeadamente que o presidente transformou o Palácio de Belém numa casa de Barbies. Ah, que bom. Bom, para começar, creio que tenho pouco de Barbie. Acho que o Diogo Faro, o Salvador Martinha, o Pedro Teixeira da Mota ou o Carlos Coutinho Vilhena (só para dar alguns exemplos) também se parecem pouco com a Barbie. Isto das Barbies é porquê? Porque eram sobretudo mulheres e a maioria ligada à moda e beleza? Giro. E sempre refrescante, não é? Atirar o mulherio para categorias pouco dignificantes, que é onde o mulherio deve permanecer. É por serem sobretudo mulheres, muitas preocupadas com maquilhagem e roupa, que um idiota tem o direito de lhes/nos chamar a todos de Barbies? Creio que não, assim como o texto que ele escreveu não me dá o direito de lhe chamar idiota, porque talvez tudo não passe de um momento pouco inspirado, de um mau dia, de um mau momento. Espero que lhe passe. 

Assim como espero que passe a indignação a um sem número de pessoas, que se preocupam imenso com a abstenção e com o total desinteresse dos cidadãos pela vida política, mas que fica à beira da trombose na altura em que alguém põe a cabeça a pensar e conclui que, espera lá, esta gente das redes sociais mobiliza milhares e milhares de pessoas, e se fôssemos ouvir o que têm para dizer? E se conseguíssemos - de algum modo - passar a mensagem através dos seus canais? É que, claramente, a mensagem não está a passar através dos canais tradicionais, não sei se já repararam. A classe política não consegue cativar, os media aparentemente também não, e  a intelligentsia lusa, com toda a sua proa e circunstância, idem. Em calhando, tentávamos de outra maneira. Pode não resultar? Pode. Pode ser um fiasco? Ah, pois pode. Pode não valer de nada? Sim, senhor. Mas... ninguém poderá dizer que não se tentou qualquer coisa. Se até em Bruxelas já o fazem... 

Enfim. Portugal continua a levar-se demasiado a sério. Somos todos muito sérios e nos assuntos sérios não cabem as pessoas normais. As "Barbies". Pois. Se calhar é por causa desta linha de pensamento que as pessoas normais não querem saber. Acham tudo tão distante, tão "sério", tão hermético e indecifrável, que já desistiram. Deixam lá para "eles" os assuntos que são de todos. E é pena. Digo eu. Mas eu, bem entendido, não passo de uma Barbie. Ou, melhor ainda, de um cocó (piadola fácil e previsível que podem usar quando quiserem atacar estes argumentos. De nada).

 

Conta-me #12

- Tô?

- Alô...

- Alô... que voz é essa?

- Oh.

- Então? Estás a assustar-me. Alguma coisa grave?

- Não... o costume.

- Ah... sério? Outra vez?

- Yep.

- Oh, merda. Como é que estás?

- Mal. 

- Oh, querida... eu continuo a achar que é uma fase... que é stress. Que não tem nada a ver contigo, convosco.

- (soluços)

- Ooooh, não chores... a sério. Já viste bem o stress em que ele anda? Com aquilo da empresa, a história toda do pai, os irmãos... não é fácil. 

- Eu sei.

- Tu sabes mas continuas a inventar outras razões.

- Não é isso, Sofia... não é inventar. Sei lá. E se existem mesmo outras razões? E se estamos a tapar o sol com a peneira? E se simplesmente já não sente desejo, e se já não me vê desse modo?

- Ana. Ana. Tu acreditas mesmo nisso? Assim, de um momento para o outro?

- Não é bem de um momento para o outro! Já lá vão 6 meses disto!

- Seis meses? Já? 

- Já! Vês?

- Calma. Mas nestes seis meses nunca...

- Nunca! Ele simplesmente não consegue. Até começamos bem mas depois... puff. Achas mesmo que pode ser só stress? Não pode, Sofia. Ele tem outra pessoa, de certeza.

- Lá estás tu. Já falámos sobre isto. Já te perguntei isto. Há mais algum indício, sem ser esta... esta incapacidade dele... há mais algum indício de que possa ter outra pessoa? Viste o telemóvel dele?

- Oh. Tu sabes que eu não faria isso. Mas a verdade...

- A verdade?

- A verdade é que até já isso me passou pela cabeça. Vasculhar as coisas dele para descobrir quem será a puta.

- Ana. Não há ninguém. Sou menina para apostar. 

- Cuidado com o que apostares...

- Vá, talvez não aposte nenhum órgão, nenhum membro... 

- (risos)

- Mas aposto... 100€.

- Ah ah ah. Cem euros? Epá, até percebo que não queiras apostar um rim, mas... cem euros também me parece pouca confiança! 

- (gargalhadas) Pronto, 500€, vá! Filhinha, a vida não está fácil. Sabes como é que isto anda.

- Pois é, desculpa. Com isto tudo nem te perguntei como é que estás, como é que estão as coisas?

- Esquece. Não vamos falar nisso, que na merda já tu estás.

- Está assim tão mau?

- Pfff... esta semana, se entraram três pessoas na loja foi muito.

- E compraram alguma coisa, ao menos?

- Nada. Reviraram isto tudo, vestem, despem... e adeuzinho, muito boa tarde.

- Que cena. Isso deve dar cabo da cabeça, estar aí o dia inteiro e não entrar ninguém.

- Cala-te, mulher. É de cortar os pulsos. Vá, mas isso agora não interessa. Estávamos a falar de ti.

- De mim, não. Da pila do meu marido que está morta. Bom, pelo menos para mim.

- E lá vem ela outra vez! Está adormecida, não há-de estar morta! E não é só para ti.

- Achas que também fica mole com a outra?

- Aaaaaaaai! Chata mais a outra! Qual outra??? Olha, tu sabes que eu tenho um sexto sentido para estas coisas e não acredito mesmo que o Pedro tenha outra. Coitadinho... olha que ele também se deve sentir muito mal. Como é que ele fica, quando aquilo não... coiso?

- Fica mal. A suar e não sei quê. Diz que fica nervoso e que quanto mais vezes falha mais nervoso fica. E desta última vez, que foi ontem, até chorou.

- Ai, pá, que horror. Já viste?

- E eu? Já imaginaste? Eu ali toda armada em sensualona, a fazer carinhas e gemidos e a subir e a descer... ontem, vesti um kit todo sexy, um mesmo de porquita que ele gosta imenso, ou gostava, já nem sei, e nada! Nada! E eu ali às voltas e a pensar: "não te enerves, Ana, não desistas, faz de conta que és uma terapeuta, uma médica, qualquer coisa, estás a tentar ajudá-lo, concentra-te, ele vai chegar lá, ele vai conseguir, macacos te mordam, Ana Maria, se ele não vai conseguir!" E... não conseguiu!!!! E eu vestida de puta, ali deitada ao lado dele, a sentir-me ridícula naquela roupa, completamente humilhada, sem pinga de sensualidade, sem pinga de decência, a puxar os cobertores para ele não me ver mais naquela figura (ou para eu própria não me ver mais naquela figura). Opá... ninguém merece. (choro) Não desejo isto ao meu pior inimigo, Sof! Ao meu pior inimigo!

- Ai, mulher, realmente. (silêncio) Que cena... E irem ao médico? Já lhe falaste nisso?

- Eu não! É como te digo: tenho para mim que o problema sou eu. Se não fosse - olha que agora é que lembraste bem! - tu não achas que se não fosse eu o problema ele não era o primeiro a dizer que tinha de ir ao médico? Mas não... ele não diz nada. Diz que está cansado, que está nervoso. Está bem, abelha. Não sei quanto tempo mais vou conseguir aguentar isto, Sofia. Juro que não sei. (soluços)

- Oh, querida... vou ter contigo. Pode ser? Fecho a loja - assim como assim também ninguém aparece - e vou já para aí. Hoje é dia do turno dele, não é?

- (fungando) É. 

- Pronto. Levo o jantar e ficamos aí as duas, a conversar. Vamos pensar numa maneira de dar a volta a isto. Não gosto nada de te sentir assim, tão triste. Já aí passo, ok?

- Ok.

- Vá, beijinho. Até já.

- Até já. Obrigada.

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*Conta-me é uma rubrica do blogue Cocó na Fralda com contos escritos pela autora (podem ver todos na pasta na parte superior do blogue, que diz "Conta-me")

Medo

"Temos muitos medos. De quê? Temos medo que nos magoem, temos medo da humilhação. Temos medo de falhar e temos medo do sucesso. Temos medo da solidão e temos medo das relações. Temos medo de ouvir o que os nossos corações nos dizem. Temos medo de ser infelizes e de ser demasiado felizes. Temos medo de não ter a aprovação dos nossos pais e temos medo de nos aceitarmos como somos realmente. Temos medo da doença e da sorte. Temos medo da nossa inveja e da abastança. Temos medo de alimentar esperança de conquistar coisas que depois podemos não conseguir. Temos medo da mudança e temos medo de não mudar. Temos medo que alguma coisa má aconteça aos nossos filhos, aos nossos empregos. Temos medo de não ter controlo e temos medo do nosso próprio poder. Temos medo de quão breve é a nossa vida e do tempo infinito em que vamos estar mortos. Temos medo de que, depois de morrer, não tenhamos sido relevantes. Temos medo de ser responsáveis pelas nossas próprias vidas. Por vezes leva tempo até assumirmos os nossos medos. Especiamente perante nós próprios."

Lori Gottlieb, "Maybe You Should Talk to Someone".

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