Marta está sentada em cima da prancha. Tem os olhos postos no mar, dir-se-ia que o contempla. E é verdade. Só que não é com os olhos. Marta tem 14 anos e nasceu cega. "Nasci com amaurose congénita de Leber e por isso nunca vi. A vida sempre foi assim para mim." Talvez por isso ou porque os pais sempre a ensinaram a ser tão autónoma como se visse, é fácil esquecermo-nos que Marta não contempla o mar com os olhos, mas com o corpo inteiro. E ainda mais fácil se torna esse engano quando a vemos em cima da prancha, a apanhar ondas, com a destreza que os visuais creem ser só sua, numa arrogância que rima com ignorância. Marta é campeã europeia de surf adaptado e é a terceira melhor do mundo inteiro.
Ao seu lado, na praia do Castelo, há muitos cegos e outros tantos normo-visuais (que serão designados, a partir daqui, apenas por visuais) prontos a experimentar uma aula de surf. Alguns pela primeira vez, outros a repetir. Ao todo são 44 crianças e jovens que participam num campo de férias completamente diferente de todos os outros. Chama-se Camp Abilities Portugal e é uma adaptação de um modelo americano de colónias de férias para jovens com deficiência visual com apoio individual. A diferença é que o campo originalmente criado por Lauren Lieberman em 1996, em Nova Iorque, tem um monitor adulto para cada criança cega. A colónia criada pela AAMA (Associação de Actividade Motora Adaptada) em 2015 tem uma criança visual por cada criança cega. É o primeiro campo do país em que os monitores são crianças e é essa diferença que faz desta colónia um lugar mágico. Não só os miúdos cegos sentem uma maior proximidade com os seus monitores, com toda a envolvência que essa empatia promove, como os miúdos que vêem recebem ali grandes lições que levam para a vida. Dos 44 participantes, 22 são cegos, 22 são visuais. Há 11 rapazes e 11 raparigas cegos; 11 rapazes e 11 raparigas visuais. Os cegos podem repetir a experiência até ao ano em que perfaçam 18 anos. Os outros só podem ir uma vez.
Guilherme, 16 anos, é o monitor da tarde de Abulai, de 13 anos (os monitores mudam duas vezes por dia para que todos se dêem e para que ninguém fique preso a um companheiro com quem não sinta empatia ou, pelo contrário, para que não se formem relações tão intensas que não sobre espaço para novas interacções). Estão ainda na areia, a aprender os movimentos necessários antes de se fazerem ao mar. Pega-lhe na mão, cuidadosamente, e leva-o a sentir a prancha de surf. A superfície, o rebordo, o bico. Explica-lhe os movimentos, conduz o seu corpo pouco hábil levando-o deitar-se, levantar-se, dobrar os joelhos para ficar em posição de equilíbrio. Abulai responde com a cabeça que sim ou que não às perguntas que lhe são feitas. Abulai não fala. Ou melhor, fala com dificuldade mas no campo optou pelo mutismo total. Não proferiu uma única palavra. Rita Costa, presidente da AAMA e mentora do Camp Abilities Portugal, explica que não é o primeiro: "Temos aí outro miúdo que no primeiro campo não abriu a boca, no segundo campo disse umas palavras, e hoje fala pelos cotovelos. Há crianças e jovens que têm pouca interacção, pouco estímulo na vida de todos os dias, e que reagem assim, à defesa." O silêncio como uma espécie de concha protectora.
Na água, Abulai sorri. O corpo, pouco acostumado à vastidão da água, começou por estar retraído, mas foi-se soltando como num regresso a um meio familiar, seguro. Parece um contrasenso, porque o mar é tudo menos segurança e familiaridade. Mas para Abulai e para muitos cegos a sensação de liberdade do mar traz consigo paz e remanso. Abulai desliza pelas ondas até à areia com uma expressão de alegria que já ninguém lhe tira. Ao lado havia miúdos cegos que nunca tinham ido à praia. Claudina, de 15 anos, por exemplo. Depois da aula de surf, Claudina pediu se podia ir ao mar, sem prancha, "tomar banho com o corpo todo". Mamadu, 8 anos, também nunca tinha ido à praia e, ao sentir o mar nos pés, exclamou: "Ah! Mas isto é mesmo muita água! Muita água..."
Nas ondas, Marta mostra como se faz. Os que a podem ver olham-na com espanto e respeito. Os cegos ouvem os relatos sobre os feitos da companheira de campo e alguns hão-de pensar que se ela consegue eles também podem conseguir. "O surf surgiu na minha vida há dois anos. Sou de Viana do Castelo e costumava andar de skate à porta do café da minha mãe. Uns professores do Surf Clube de Viana viram-me e disseram que se sabia andar tão bem de skate podia tentar o surf. Eu, que sempre gostei de desporto, aceitei o desafio. Comecei a treinar e rapidamente fui chamada à Selecção. E foi assim que me tornei campeã." Para quem não sabe, fica a explicação: o surf adaptado é igualzinho ao surf "normal". A única diferença é que, nas provas, o treinador está com os atletas dentro de água, para ser os seus olhos (mas não lhes pode tocar). Tudo o resto é igual. "A minha mãe não consegue ver as minhas provas e fica muito aflita. Mas foram eles, foram os meus pais que me deram toda esta autonomia. Quando eu nasci e eles perceberam que eu era cega quiseram que tivesse as mesmas oportunidades que a minha irmã, que é visual. Sempre fiz tudo: equitação, natação, goalball... sou aluna de mérito e excelência na escola e a minha disciplina preferida é a Matemática. Gostava de ir para Ciências mas, assim como os meus pais me ensinaram que podia ser uma pessoa normal, também me ensinaram desde sempre que não podia fazer tudo, tudo o que quisesse. Ser médica, por exemplo, não está ao meu alcance. Os professores dizem-nos sempre que se tivermos boas notas podemos ser tudo. Nós, cegos, não podemos. Mesmo com as melhores notas. E isso é frustrante. Mas pronto, é a vida. Agora tenho de escolher, dentro da área de Ciências, algo de que goste e que seja simultaneamente possível."
Nem todos os cegos no campo de férias têm a autonomia da Marta. Há aqueles que, nascidos em famílias menos favorecidas, são menos estimulados, há os que são demasiado protegidos porque os pais têm medo do que lhes possa acontecer, há os que, além da deficiência visual, têm outros problemas de desenvolvimento. É também por isso que o autêntico "Tetris" que a equipa de 7 coordenadores faz diariamente, para conjugar pares de cegos/visuais, é tão importante. "É crucial saber 'casar' uns e outros. Um exemplo: se de manhã um visual tem pela frente um cego difícil, pouco autónomo ou mais fechado, tentamos à tarde pô-lo com um cego totalmente diferente. Para que ninguém sinta que isto é mais do que consegue aguentar. Para não ser demasiado desgastante, frustrante", explica Rita Costa.
Mas a chave de tudo está na escolha das crianças que irão ser monitoras. Alguns pais não percebem, julgam que basta querer que os filhos vão, ou que basta os próprios filhos manifestarem o desejo de frequentar o campo. É um bom princípio, sem dúvida. Mas não basta. Há uma primeira entrevista, que pode ser logo eliminatória (ou não), e um teste na piscina. "Os visuais têm de ser mesmo miúdos muito especiais. Não quer dizer que os que não ficam não sejam óptimos miúdos, cheios de qualidades. Mas para fazerem esta colónia têm de ter uma responsabilidade acima da média. Têm de ser generosos, simpáticos, descomplicados e têm de gostar muito de desporto uma vez que este campo é de desporto adaptado. Preferencialmente devem ser miúdos já com experiências várias de outros campos de férias. Os pais às vezes lidam mal com a rejeição dos filhos. Ficam ofendidos, acham que é inacreditável, quem é que eu me julgo para excluir assim miúdos que eles acham perfeitos? Tento explicar. Por vezes é apenas uma questão de maturidade, no ano seguinte muitos estão prontos. Outros nunca estarão."
Os que passam na entrevista nem sempre são bem sucedidos no teste da piscina. Os coordenadores observam o modo como os visuais se relacionam com os cegos no balneário, o modo como oferecem ajuda (ou não), como resolvem problemas que surgem, como o contacto com a intimidade. A sua e a do outro: "Na piscina, cerca de 50% de visuais são excluídos. Uns porque desistem, compreendem que aquilo não é para eles, outros porque falham no teste. Há imensos miúdos que bloqueiam, sobretudo no balneário. Tenho notado que há muitas crianças e jovens com muitas dificuldades na relação com o corpo. Não conseguem expôr-se em frente aos outros e congelam quando têm de ajudar os cegos a vestirem-se ou a despirem-se. Além disto, as actividades na piscina são exigentes, obrigam a uma proximidade e a uma interacção que, tratando-se de estranhos, é vista como intrusiva por alguns."
Vasco tem 14 anos e falhou duas vezes.