Tal como disse no post anterior, em 2006 fiz para o Diário de Notícias uma grande reportagem sobre a transexualidade. Uma reportagem que me marcou muito. Porque não fazia ideia da violência por que passa quem nasce no corpo errado.
Se tiverem paciência e vontade... aqui está ela.
As fotos, do Gonçalo F. Santos, estão muito mal representadas (são fotos do jornal, velhinho e amachucado). Desculpa, Gonçalo.
Quando o corpo e a alma se desencontram
A morte de Gisberta, transexual, alegadamente vítima da violência de um grupo de rapazes internos nas Oficinas de São José, no Porto, levantou velhas dúvidas sobre o tema da transexualidade. Houve quem insistisse em referir-se a Gisberta como homem ou travesti. O DN foi conhecer três transexuais e conta como vivem e como lutam contra a discriminação.
Lara veste-se como uma mulher, comporta-se como uma mulher, é uma mulher. O sexo biológico diz o contrário mas a alma feminina não engana
Vestiram-na de azul-bebé e chamaram-lhe José Carlos. O sexo não enganava: era um menino. Mas o filho do casal Crespo tinha pouco de menino. Aos três anos rejubilava sempre que na rua o confundiam com uma menina. Não percebia porquê. Assim como não conseguia compreender que gostasse infinitamente mais das pulseiras da irmã do que dos carrinhos do irmão.
Lara passou por muito até se entender que a sua biologia estava em contramão com a sua identidade psicológica. Na escola, gostava de jogar à macaca e achava os rapazes estúpidos. A professora primária forçava-a a brincar com os meninos e, nas reuniões com a mãe, falava de "inadaptação".
No liceu D. Pedro V, sofreu as mais variadas perseguições: "Chamavam-me mariquinhas, borboleta. Roubavam-me a mochila, os livros, encharcavam a minha roupa." Lara não era aceite, nem por raparigas nem por rapazes. "Sentia-me uma aberração." Incapaz de se enquadrar, isolou-se. Deprimiu. Como se sentia atraída por rapazes, aos 14 anos assumiu-se como homossexual. Mas os relacionamentos não corriam bem: "Os homossexuais com quem tinha relações sexuais estavam à espera de um comportamente masculino na cama. E eu era feminina. Porque era uma mulher, apesar dos genitais dizerem o contrário."
O conflito interior que Lara sofreu é relatado praticamente por todos os transexuais. Quem o diz é a psiquiatra Graça Santos, coordenadora da consulta de sexologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra. "Na maioria dos casos, a perturbação da identidade começa a afirmar-se muito cedo. Há casos - e não são tão raros quanto isso - de crianças que fantasiam que, quando crescerem, vão ser do sexo oposto."
Na adolescência, o drama avoluma-se e é quando "se desencadeia uma enorme crise de identidade". Os transexuais desenvolvem sentimentos de rejeição para com os seus genitais: "Sentem asco, repulsa. Evitam olhar-se ao espelho, não aceitam o desenvolvimento do pénis ou das glândulas mamárias, evitam tocar em qualquer um desses caracteres sexuais secundários, com os quais não sentem identificação. Muitos têm pensamentos de mutilação."
Quando Lara tinha 24 anos e ainda não era conhecida por Lara, viu um programa de televisão que mudou a sua vida: "Estava em casa e vi uma entrevista da transexual Roberta Close. Tudo o que aquela mulher dizia era o que eu sentia. E foi então que percebi." Foi a primeira vez que sentiu que encaixava num modelo. Que existiam outras pessoas como ela. E de então até hoje, nunca mais parou de tentar ajustar a biologia à alma: "Comecei a ser seguida por sexólogos do Hospital de Santa Maria. Agora já estou na fase do tratamento hormonal. Depois, segue o pedido para a Ordem dos Médicos e, se eles autorizarem, passo para as cirurgias, primeiro os implantes mamários, depois a reatribuição do sexo."
A cirurgia, porém, assusa-a. "Queria ter o sexo certo, aquele que corresponde àquilo que sou. Mas ninguém me garante que eu vá, alguma vez mais, ter um orgasmo. E isso deixa-me apreensiva, como é natural."