De psicóloga a maquilhadora. Um caminho cheio de curvas, cruzamentos, entroncamentos.
As memórias mais antigas que tem de si são a desenhar. Lápis de cor, canetas, pincéis. No papel ficava o que via ou o que lhe passava pela imaginação. Por isso, quando começaram as incontornáveis perguntas das tias "então e o que é que a menina quer ser quando for grande?" a resposta pendia sempre para as artes: pintora, arquitecta, ilustradora. Artista, pronto. Artista de papel e lápis, artista de deixar correr a tinta ao sabor da criatividade.
Durante o secundário, foi sempre pondo um pé em tudo o que eram experiências artísticas. A escola abriu um grupo de artes circenses e ela aprendeu a fazer malabarismo. Mas também havia teatro, capoeira, percursão. "Conheci então um malabarista que trabalhava como palhaço enquanto fazia a sua licenciatura em Engenharia do Ambiente. Um dia o André perguntou-me se eu era capaz de fazer na cara aquilo que fazia no papel. Eu disse que sim. E em pouco tempo estava a ser solicitada para fazer pinturas faciais em festas infantis, algo que conciliei sempre, desde os 17 anos até ao fim do percurso académico."
E o percurso académico? Artes, só podia. Mas não, porque a vida também é feita de surpresas. No final do 12º ano, surgiu a dúvida. Um excelente professor de Psicologia lançou a semente. "E agora? O que me imagino a fazer no resto da minha vida?" O meio artístico parecia-lhe escorregadio, instável, inseguro. Psicologia talvez lhe abrisse portas mais certas. Esperou pelo último dia para se inscrever. Com média de 15 valores, entrou em Design Gráfico e Psicologia. Optou pela Psicologia.
Parece estranho, mas não é assim tanto. Afinal, as Artes não estão assim tão distantes da Psicologia. Em Artes, tudo o que é produzido tem sempre que ver com o artista, com quem ele é, com o que viveu, com o que apreendeu do que viveu. Com a sua personalidade, com a sua alma. Ora, o que pode ser mais próximo com isso do que a Psicologia, que nos mostra quem somos, que nos permite alcançar e compreender os nossos medos, as nossas emoções, os nossos sentimentos?
Ana Tulha viveu apaixonadamente a licenciatura. Quando surgiu o estágio curricular ficou num sítio muito conceituado: "Fiquei com os comportamentos desviantes numa clínica de desintoxicação, uma comunidade terapêutica de alcoólicos, toxicodependentes e utentes com as mais diversas perturbações mentais, com cerca de 100 pessoas em regime de internamento, alguns em internamento compulsivo." Ana ficou com os adolescentes e acabou a adorar esse semestre em que lá trabalhou. Tanto que acabou por ter a melhor nota de estágio: 18 valores.
Quando o curso terminou, esteve cerca de 6 meses à procura de trabalho. Enquanto não aparecia, ia fazendo o que nunca deixou de fazer: pinturas faciais. Depois, foi trabalhar naquilo que era o seu sonho: comportamentos desviantes. "Adorava o filme do Silêncio dos Inocentes. Acho que queria ser a Clarice", ri Ana, ao relembrar. Mas depois veio a vida real. E lidar com o mal acabou a fazer-lhe mossa. "Fui fazer avaliação psicológica em contexto forense. É uma área interessantíssima, basta ver o espólio literário e cinematográfico que há sobre o assunto. Mas trabalhar com estas pessoas não é fácil. Trabalhava directamente com o Ministério Público e colaborava em casos de divórcios complicados, análise de competências parentais e suspeitas de abusos sexuais. Estive um ano a trabalhar com vítimas e agressores. A analisar perfis psicológicos, a elaborar relatórios que iriam constituir meio de prova. Ou seja, que iriam interferir com a vida das pessoas."
Ana tem dificuldade em dizer mas nem precisa. Sente-se em cada frase que a sensibilidade que a caracteriza chocava com aquela realidade feia. Ela, que sempre se ligou ao belo, era agora confrontada com o feio, com o pior do que o ser humano é capaz. "Tive a oportunidade de estar numa área tão apetecível e não quero parecer mal agradecida. Eu tinha estofo para aquilo mas optei por trazer para casa outro tipo de vivência. Se quer saber a verdade, acho que ainda não me perdoei por ter virado as costas àquilo. Eu era profiler, que é incrível. Mas acho que preferi viver rodeada de coisas boas."
Depois desse trabalho (pelo qual era paga com sucessivos atrasos), fez uma pós-graduação em Psicologia Forense e quando saiu recebeu o convite para voltar a trabalhar na comunidade terapeutica onde tinha feito o estágio. Esteve lá quase dois anos. Ao mesmo tempo, fez um mestrado que terminou com 16 valores. Saiu da comunidade terapêutica por uma reestruturação que lhe deu funções em que não se revia. Dedicou-se à formação. Mas o trabalho era escasso, não era a tempo inteiro. Ana sentia-se desmerecida. Tinha o chamado currículo de peso, com 9 páginas, estudo e experiência. Tinha tudo o que era preciso para trabalhar na sua área. Tudo menos trabalho. E dinheiro, porque os pagamentos eram feitos a perder de vista. Começou a entristecer. A definhar. Levou um ano entre perceber que não estava bem e tomar uma decisão que mudasse o estado das coisas.
Um dia, abriu o jornal à procura de qualquer coisa. Viu que a área de estética parecia ter muita saída: "Tinha uma amiga a fazer um curso numa escola de estética e eu fui fazer também. Durou um ano e meio. Gostei muito."
Para a família foi um baque. Como assim a primeira pessoa a licenciar-se na família era agora esteticista? Como assim o curso de Psicologia não serviu para ter emprego? Como assim arranjar pés dos outros, com um canudo na mão? "Nunca vou esquecer a cara que a minha avó fez. Foi um balde de água fria. 'Ó filha, mas tu vais limpar unhas?' Os meus pais creio que perceberam que eu tinha de arranjar soluções. E também não quiseram mostrar desilusão."
Na mesma semana em que começou o curso de Cosmetologia foi chamada para uma entrevista para um Instituto de Ensino Superior, para dar formação na área da saúde. Estava com tão pouca fé que foi à entrevista vestida como não iria, sequer, ao encontro para esta conversa. Uma t-shirt com um urso panda e umas leggings. Ficou. No curso e no instituto. Tinha aulas e dava aulas, ao mesmo tempo. Trabalhava de manhã e ia para a escola à tarde. No fundo, fazia o malabarismo que nunca deixou de fazer - oscilando entre mundos distintos: o sério e o divertido; o institucional e o informal; o pesado e o leve. "Comecei a mentalizar-me de que se calhar nao tenho de ter uma coisa só, um caminho apenas. Posso ter dois caminhos, aparentemente antagónicos, mas que se conjugam na minha vida. Foi quando comecei a aceitar este circo que começou a minha recuperação, o meu crescimento pessoal."
Terminado o curso de estética, começou a trabalhar numa clínica muito conhecida. De manhã dava aulas de Psicologia da Saúde, à tarde ia para o centro de estética fazer tratamentos de beleza. Sentiu na pele o que é ser tratada como uma "mera" esteticista. Sentiu os olhares de superioridade. Ela que até já tinha sido uma profiler, como a Clarice, do Silêncio dos Inocentes.
Diziam-lhe que era óptima terapeuta, mas péssima comercial. A ideia na clínica era que cada funcionária vendesse o maior numero de produtos aos clientes. E não quer mais isto, mais aquilo, mais o outro? Ana Tulha não o fazia, por respeito aos clientes, por falta de jeito, talvez. E foi convidada a sair.
Mas desta vez, e já aceitando "o circo" que a vida lhe foi oferecendo, não se foi abaixo. E percebeu que a área das Artes, que sempre foi a sua primeira escolha mas da qual tinha fugido por considerar insegura e instável, era afinal a área que sempre lhe tinha fornecido a rede que a amparava das quedas que os empregos "sérios" a obrigavam a dar. E pronto. Com a aceitação veio o resto. A imperativa necessidade de gerir o caos da vida de freelancer obrigou-a a ser muito organizada e a saber planear cada passo. O investimento em formação mais específica levou-a até às pessoas certas e trouxe trabalho, muito mais trabalho. E dinheiro – muito mais do que alguma vez tinha ganho enquanto profissional com 9 páginas de cúrriculo. Ana começou a ter convites para fazer trabalhos em caracterização e efeitos especiais, continuando a fazer formação na área. Aprendeu e evoluiu muito. Faz maquilhagem de todo o tipo, mas sobretudo artística. É freelancer, trabalha em eventos, festas temáticas, espectáculos. "Hoje faço pessoas felizes, de uma forma mais rápida do que quando trabalhava em Psicologia. Ok, pode ser uma felicidade mais fugaz. Sim, é uma felicidade que não é profunda. Mas é agora. É já. E a vida é agora. É já."
Algumas fotos dos seus trabalhos: