Vítor de Sousa
O meu querido sogro continua a trazer-me pastas com os meus trabalhos para o DNA. Cada sexta-feira que nos encontramos, lá vem mais uma, com a reunião de todos os trabalhos desse ano. Cada sexta-feira é um novo momento de reencontro com coisas que fiz e que trazem memórias desse tempo incrível, que infelizmente não volta.
Na semana passada trouxe-me o ano de 2003, um ano muito produtivo profissionalmente. Foi um ano tramado da minha vida, mas talvez um daqueles que me trouxe maior crescimento pessoal.
Entre os vários trabalhos desta nova pasta, estava esta entrevista ao actor Vítor de Sousa, que aqui transcrevo.
Entrevista de Sónia Morais Santos
Fotografias de Augusto Brázio
Encontrámo-nos no Teatro da Trindade, em Lisboa. Se fosse uma peça de teatro, a nossa conversa seria uma peça em dois actos. No primeiro dia sentámo-nos numas conversadeiras deliciosas, cadeiras feitas com o propósito da cavaqueira, uma virada para a outra, numa proximidade a pedir a partilha de segredos e histórias. No segundo dia, o actor falou mais sobre si e sobre a sua vida, desta vez no camarim onde se despe de si e se veste de outro.
Vítor de Sousa tem 56 anos, quase 40 dedicados à arte de representar. Para trás, uma história de solidão, de abandono e de reencontro. Um pai perdido no tempo, reencontrado numa estação de correios da baixa lisboeta, um pai a querer pedir desculpa, um filho a procurar apaziguar 56 anos de perguntas sem resposta.
Conte-me a história da sua vida.
- Nasci em Lisboa, no dia 18 de Novembro de 1946, filho de pais divorciados (divorciaram-se um ano depois de terem casado, a minha mãe tinha 18 anos e o meu pai 19, creio). Tive uma infância complicada. Sozinho, muito sozinho.
Infeliz?
- Não. Fui feliz no meio dessa solidão da minha infância. Fui um aluno aplicado, muito dedicado...
É essa a imagem que tem de si na infância? A de um aluno aplicado?
- A de um menino bem comportado, sim.
Diz-se que os meninos muito bem comportados são muitas vezes meninos tristes.
- Mas eu fiz muitos disparates! Uma vez (andava na instrução primária), saí de casa, deixei a porta entreaberta e fui para o Jardim Zoológico sozinho. O difícil foi depois ter chegado a casa e não poder falar de todos os animais que tinha visto à minha frente! Uma outra vez fui também sozinho para qualquer outro sítio e a porta fechou-se. Para não enfrentar a minha mãe, para que ela não desse pela minha falta, saltei do 3º andar esquerdo para o 3º direito, pela varanda. Não morri porque não calhou!
A sua mãe era severa?
- Não. Era até muito benevolente. Quando nos zangávamos, a pior coisa que ela fazia era tratar-me por voê. Aquilo magoava-me muito. Tratarmo-nos por você era um castigo muito grande para mim.
Fale-me da solidão da sua infância.
- A questão é que eu saía da escola ao meio-dia e passava a tarde sozinho em casa. Não queria ir para a rua jogar à bola e ao berlinde. Não gostava de andar à pancada. Preferia de longe ficar em casa, quieto. Sozinho.
A que é que brincava?
- Às missas. Disse muitas missas sozinho.
Missas?
- Achava muita graça. Tive uma educação católica, andava na catequese. Lembro-me perfeitamente de acabar as aulas da catequese e de ficar em casa da catequista à espera que a minha mãe me fosse buscar. Ainda hoje mantenho contacto com a catequista. A menina Lurdinhas.
E gostava da catequese e da missa ou eram aborrecimentos a que se sujeitava como menino obediente que era?
- Gostava, sentia que estava a aprender coisas. As histórias da Bíblia eram fascinantes! Cheguei a ser sacristão. Fiz casamentos, baptizados e funerais.
Palavra?
- E levava tudo aquilo muito a sério. Quis ser padre e tudo! Lembro-me de faltar às aulas para ir aos cemitérios tirar flores das campas que tinham muitas para pôr nas campas que não tinham nenhumas.
Isso é tão bonito!
- Fiz isto muitas vezes. Fazia-me impressão o esquecimento a que alguns mortos pareciam estar votados.
No fundo, a solidão.
- Talvez. E sobretudo o facto de uns terem muito e outros nada.
Teve então um contacto prematuro com a morte, quer nas celebrações de funerais, quer nessas idas ao cemitério. Que idade tinha?
- Uns doze anos.
Lembra-se se pensava na morte?
- Pensava na morte. Vi muitos mortos ao vivo. Houve um padre que morreu agarrado à minha mão, e eu percebi que ele se extinguiu naquele momento. Todo esse contacto com a morte fazia-me sentir que nada valia a pena porque tudo tinha um fim. Mas não era uma visão aterradora, pelo contrário. Apredi a encarar a morte com muita serenidade.
Há pouco dizia-me que quis ser padre mas não percebi se foi um daqueles sonhos inconsequentes da infância ou se chegou a ser uma intenção determinada.
- Foi um desejo intenso, uma certeza. Julgava ter encontrado a minha vocação. De resto, o arcebispo que me deu o crisma chegou a dizer-me que iriam mexer uns cordelinhos para que eu entrasse para o seminário. A verdade é que os cordelinhos eram mais uns cordelões, uma vez que só o Vaticano podia autorizar que um filho de pais divorciados ingressasse no seminário.
Não sentiu raiva que fosse algo exterior a si - neste caso, o divórcio dos seus pais - que lhe barrasse o caminho que tinha escolhido?
- Não, julgo que não senti raiva. O facto é que aquela contrariedade foi-me adormecendo. E a dada altura percebi que estaria talvez mais atraído pela encenação da liturgia, pelo espectáculo das homilias.
Percebeu isso na altura?
- Mais tarde. Pode ter sido apenas uma forma de me defender da impossibilidade de ir por ali, por aquele caminho que tinha escolhido. Mas estou convencido de que a encenação era efectivamente o que me deslumbrava mais. Estou convencido de que não teria sido um bom padre.
Viveu sempre sozinho com a sua mãe.
- SIm. E a partir de determinada altura também com a minha avó.
Fale-me da sua mãe, essa figura tão central na sua vida.
- É uma figura muito central porque foi pai, foi mãe, foi irmã, foi tudo. Tenho uma família muito reduzida, duas tias, quatro primas, e se calhar já estou a exagerar.
Isso é triste para si, essa árvore com poucos ramos?
- Habituei-me. E habituei-me até a não fazer perguntas em relação ao que não correu bem no casamento da minha mãe. Só muito mais tarde é que fui fazendo perguntas. Achei que não tinha o direito de tentar entrar nesse mundo ou de fazer a minha mãe viajar para esse mundo.
Por perceber uqe isso lhe causava dor. E o seu pai?
- Conheci-o muito mais tarde, já tinha 30 anos. Um dia ligou lá para casa um homem com uma conversa muito estranha. Quando desliguei disse à minha mãe: "Que disparate! Era um cidadão a dizer que eu tinha assistido a um acidente e que queria que me desse como testemunha... uma coisa sem pés nem cabeça, deve ser um doido que apanhou este número." A minha mãe deixou-me acabar e disse: "Se calhar foi o teu pai".
E era.
- Era o meu pai. Inventou aquela história toda porque estava a ganhar coragem para me conhecer e para me pedir desculpa por me ter abandonado.
Com a separação da sua mãe ele cortou totalmente a ligação convosco?
- Sim, foi para África, refez a vida, tornou a casar e voltou 30 ou 40 anos depois. Há até uma coisa muito engraçada (se quiser eu vendo-lhe os direitos e faz uma telenovela): ele chegou a ver-me em teatro sem saber que eu era o filho dele. Eu sou Sousa mas o meu pai era Araújo. De modo que chegou a ver-me representar sem saber.
Então e como é que se conheceram?
- Marcámos encontro à porta da estação dos correios dos Restauradores, que é um sítio muito bom para conhecer pessoas, principalmente pais. Fui com um amigo e pedi-lhe para ir à minha frente ver qual era o aspecto do meu pai: "Se for um gajo giro eu vou. Se for um borra-botas, um maltrapilho, viro costas." Mas não. O meu pai tinha muito bom ar, parecia um embaixador. E lá fui.
O que é que lhe disse? "Olá pai"?
- É estranho, não é? Não, não caímos nos braços um do outro a chorar. Cheguei e disse-lhe "Olá!"
Não está a pintar o quadro demasiado friamente?
- É claro que na altura tudo isto me emocionou muito. Passei noites sem dormir. E depois não era só o facto de eu ir conhecer o meu pai, era também o perceber que teria que contar à minha mãe. E eu temia por ela, por saber que teria com certeza um lado doloroso.
Por ser a tal viagem.
- A tal viagem que eu nunca me permiti obrigá-la a fazer. E sabia que iriam surgir as tais perguntas que até então nunca me atrevera a colocar.
Nem em menino lhe fez perguntas? Porque é natural que as crianças ponham questões. E estou a imaginar que, quando percebeu que todos os meninos têm pai e mãe, terá ficado com dúvidas sobre a sua vida. A sua mãe nunca lhe contou a história, ainda que resumidamente?
- Não. A minha mãe não falava do meu pai. Eu às vezes tentava obter mais informações pela minha avó Emília, mãe da minha mãe, mas soube pouquíssimas coisas. E a verdade é que nunca quis desenterrar esse passado.
Pela sua mãe ou por si?
- Pela minha mãe. Eu acho que, no fundo, tinha muita curiosidade em saber. Imagine que ainda hoje não faço ideia de como é que eles se conheceram.
Então e depois desse encontro na estação dos correios?