157. Eis um número que Paulo Neto Leite nunca vai esquecer. Foi este o peso máximo que atingiu, em 2006. Três pesados dígitos que foi acumulando por inércia, por preguiça, por gostar tanto de comer. "Fui deixando andar. Sou engenheiro químico, tinha horários desregrados, muito trabalho, comia mal durante o dia e depois quando chegava a casa comia alarvemente. E depois eu adoro cozinhar, ir à praça escolher, comer, beber, conversar à mesa. Enfim, foi uma espiral. Às tantas já é indiferente se pesas 120, 130, 150. Perdes o controlo. És gordo, pronto."
Teresa, a mulher com quem casou em 1997, foi assistindo à transformação com alguma benevolência. Afinal, o casamento é para manter, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, "não diz lá nada sobre a gordura e a magreza". As filhas, nascidas em 2000 e 2002, praticamente não conheciam o pai sem ser em formato king size. Era o seu pai gigante. 1,84m de altura e 157 quilos de peso. Um super-pai.
Paulo não se sentia propriamente mal. Bom, para apertar os sapatos era um caso sério. E sim, se fosse de fim-de-semana para um destino de praia, tinha de levar uns 3 fatos de banho: "Não podia dar-me ao luxo de levar apenas um fato de banho. Se por acaso se rasgasse, o que fazia? Só se fosse a qualquer lado pedir um toldo!"
Em 2005 foi-lhe diagnosticado um tumor num testículo. Felizmente não era maligno mas foi a primeira vez que Paulo sentiu o peso pesar: "Tive muita dificuldade em sarar a costura da cirurgia. E foi então que me cansei. Decidi procurar ajuda e optei pela banda gástrica. No mês de preparação para a cirurgia é preciso ficar a dieta líquida. Emagreci 12 quilos e pensei: se calhar não faço a operação, não preciso. Mas felizmente fiz. Não ia dar para ficar a líquidos a vida toda."
Foi operado a 16 de Março de 2006 e esteve acompanhado, em todo o processo, por um cirurgião, um nutricionista e um psicólogo. Certa vez, em dia de festa de aniversário, havia na mesa o seu doce preferido: uma tarte de amêndoa por encetar, com uma fatia larga já partida, a olhar para ele. "Esperei que todos saíssem, sentei-me à frente da tarte e pensei: se não conseguir ficar aqui 15 minutos sem lhe tocar não vou conseguir levar isto para a frente". E ali ficou. A olhar fixamente para o objecto do seu desejo. Passados 15 minutos, levantou-se. "Acho que se tivesse ficado lá 16 minutos em vez de 15 tinha-me atirado à tarte! Foi uma violência!"
No final de 2006 já pesava 116 quilos. Por razões profissionais, foi com a família viver para São Paulo, Brasil. Entre comer fora, experimentar comidas novas, adaptar-se às novas rotinas... chegou aos 125 quilos. "Senti-me a derrapar. E não quis. Não, não vou deixar isto acontecer! E então comecei a correr. Lembro-me que fiz a primeira prova de 5km, no Brasil, em 2011. Achei que ia morrer. Passei o resto do dia deitado, a pôr gelo nas pernas."
A família voltou do Brasil em 2013 e Paulo, que continuava a correr, começou a fazer provas de 10km e em 2014 fez a Meia Maratona dos Descobrimentos. Pesava 103 quilos. Continuou a correr e a emagrecer até chegar aos 95, 96 quilos. Estava no bom caminho.
"Há, porém, um momento que creio ter marcado a minha vida para sempre. Em Agosto de 2015, volto de férias, e quando me peso percebo que tenho 99, 9 quilos. Ou seja, já estava disparado outra vez. Praticamente nos 3 dígitos de novo. Passei-me. Foi o chamado 'life changing event'. Saí disparado para o computador, à procura de uma prova onde me inscrever, para me motivar a treinar. Encontrei o Triatlo de Cascais. E disse: é isto!"
Mal sabia ele que estava, de facto, a operar a mudança da sua vida.
Paulo Neto Leite não nadava há 20 anos. Comprou touca, óculos, inscreveu-se numa piscina. No fim dos primeiros 25 metros, achou que ia morrer. Faltava 1 mês para o super sprint do Triatlo de Cascais, que incluía nadar 300 metros, ou seja, 12 piscinas. Contratou um professor. Treinou a corrida e a bicicleta. E terminou a prova com uma alegria que se lhe agarrou ao corpo e à alma. A família foi toda mobilizada e estava lá, a gritar por ele como se aquele fosse o desafio da sua vida. E era. Era o primeiro de uma existência novinha em folha.
Quinze dias depois, em Setembro de 2015, fez o triatlo em Lisboa.
E nunca mais parou..
Tornou-se membro da equipa de triatlo do Estoril-Praia. Passou a treinar todos os dias, sem descanso, sendo que em alguns destes dias treina duas vezes, duas modalidades diferentes. Com uma "agravante": mora na Marisol (margem Sul), treina no Estoril, trabalha no Aeroporto de Lisboa. Um triângulo que o obriga a uma ginástica suplementar: a de encaixar tudo na sua vida, sem esquecer a mulher e as duas filhas, parte fundamental de si e do sucesso da sua luta contra o peso: "O meu emagrecimento é um projecto de família. Estamos todos nisto. Costumo dizer que não mereço a mulher que tenho. Não só aturou o gordo como agora atura toda a minha louca rotina desportiva. Mas ela sabe que é importante para mim. E eu também procuro compensá-la... ainda na terça-feira fomos jantar fora e bebemos uma garrafa de vinho os dois. Também não sou Xiita!"
Não é, mas quase. Pelo menos tem uma disciplina quase radical. Acorda todos os dias às 5:15h da manhã. Às segundas, quartas e sextas faz natação e à noite bicicleta, em casa, nos rolos. Às terças e quintas corre. Algures na semana faz treino de reforço muscular e ao fim-de-semana tem os treinos longos ou as provas. Para conseguir esta super-gestão, tornou-se ainda mais organizado do que já era. Na véspera prepara tudo - e só quem faz triatlo sabe que há tanto para preparar (touca, óculos, fato de banho, chinelos, toalha, barbatanas, palas para as mãos; ténis, roupa de correr; calções reforçados para a bicicleta, sapatos de bicicleta, capacete, luvas, acessórios diversos, gadgets devidamente carregados, comidas, suplementos).
O seu rigor e a alteração que operou na sua vida fizeram com que hoje seja até um atleta patrocinado. "Não é incrível? A N10 Bike Shop patrocina-me. A mim! O tipo que pesava 157 quilos! Às vezes até eu fico incrédulo com tudo isto."
Paulo tem 46 anos, mede 1,84m e pesa agora 90kg. Tem o objectivo de chegar aos 83 mas não se percebe bem porquê. Está irreconhecível. É outro homem. Outro corpo, outra cara, outra alma.
A sua relação com a comida será sempre uma relação complicada. Continua a gostar de cozinhar, ir à praça escolher, comer, beber, conversar à mesa. E sabe que tem uma adição, tal como se fosse álcool, droga ou jogo. É porventua mais tortuosa, porque nesses casos um dos segredos para a cura é nunca mais repetir. No seu caso, é imperioso que continue a conviver diariamente com o objecto da sua adição, por uma questão óbvia de sobrevivência. Só é preciso saber dosear. E graças ao acompanhamento de uma nutricionista e da sua força de vontade notável, tem conseguido fazê-lo. Mas sabe que a luta é para sempre. Se porventura engorda, a fotografia de fundo do seu computador passa logo a ser uma do tempo em que era obeso. Só para não que não haja dúvidas.
A vida mudou em muitas coisas. Na verdade, quando se lhe pergunta o que sentia antes não sabe dizer. Mas sabe dizer o que sente agora: "Perdi uma pessoa inteira, em peso. Perdi a minha mulher e mais um bocado. Até faço a comparação. É como se tivesse deixado de andar todo o dia com ela ao colo. Vestia o 3XL. Nunca ninguém me oferecia roupa. Sabiam lá que número oferecer! No outro dia fui comprar umas calças para treinar e tive de trazer o M, porque o L estava largo. Fiquei incrédulo! Durmo melhor, respiro melhor, brinco com outra energia com as minhas filhas. Posso ir para a praia só com uns calções na mala porque se acontecer alguma coisa... é só ir à loja mais próxima. E tudo isto tendo encontrado algo que me apaixona! Sou realmente um apaixonado pelo triatlo! Não é monótono, é intenso... entusiasma-me mesmo muito. E sim, sinto-me imensamente especial de cada vez que acabo."
O seu caso também entusiasma muita gente. Tem contagiado muitos a perder peso, outros tantos a meterem-se no triatlo. Escrevem-lhe pessoas de todo o mundo. O mais distante vive na Índia. Inspirado pelo seu caso, também deixou de ser obeso e já fez o primeiro triatlo. Numa palestra motivacional para a qual foi convidado, levou para o palco 15 garrafões de 5 litros. O equivalente ao seu peso perdido.
Paulo vai fazer o primeiro Half-Ironman em Setúbal, no dia 9 de Abril (1900m a nadar, 90km de bicicleta, 21km a correr). Repetirá a proeza em Lisboa, no dia 7 de Maio. E de novo em Cascais, a 3 de Setembro.
Para o ano, será a vez de se atirar a um Ironman (3800m a nadar, 180km de bicicleta, 42km a correr).
O sonho é ir ao Ironman do Havai, que foi, de resto, o berço desta prova e para o qual é preciso tempos mínimos (muito apertados). O modo como ele fala do sonho revela que é quase certo que vai tornar-se realidade: "Eu hei-de fazer o Ironman do Havai. Tenho a certeza disso. Não é uma questão de acreditar. É uma questão de saber. Eu vou lá chegar!"
Olhando para a sua transformação... não fica qualquer espécie de dúvida.
Fotos: Raquel Brinca, HUG