Houve muita gente que se prontificou a vir dizer que esta era uma cirurgia quase tão corriqueira como tirar um dente. E eu agradeço a gentileza e sei bem que assim é. Tenho duas amigas que já removeram o órgão chatinho, a boadrasta idem, e por isso conheço a simplicidade do procedimento, bem como a rapidez da recuperação. Mas… e há sempre um mas… a pior das minhas histórias profissionais foi a da Paula Alexandra que, aos 22 anos e na sequência de uma cirurgia à vesícula em 1994, ficou com lesões cerebrais profundas, que resultaram na perda da visão e da actividade motora. A Paula era linda (e mesmo que fosse feia!), tinha casado há pouco tempo, tinha 2 gémeos com 5 anos (que hoje são uns homens - foi em 1994). Vive com os pais, sempre deitada, e o pior de tudo é vê-la a chorar, sempre que os pais, à beira da sua cama, contam a sua história. Ou seja: a Paula está imóvel e cega, mas consciente. Sabe o que lhe aconteceu. Sabe o que é a sua vida. Os seus dias são passados no nada. À espera que o tempo passe. Que a morte chegue.
Nunca mais esqueci a Paula. Por mais histórias que faça, nunca mais a esquecerei.
E, por isso, para mim esta cirurgia não podia ser olhada com a ligeireza de que todos me falavam. E para o Ricardo também não era possível, porque ele também se lembrava muito bem da história, que eu e o Nuno Fox publicámos no Diário de Notícias, em 2006.
Eram várias histórias de pequenas cirurgias que correram mal mas a parte dedicada à Paula Simões era assim:
«"Nem a terra me come." A frase não é uma frase, é um murro no estômago, uma pancada na alma. "Se eu souber que morro e que metem a minha filha num lar, garanto-lhe: nem a terra me come." A sentença pertence a Isabel Simões, 60 anos, mãe de Paula Simões, 34. Paula está deitada numa cama há 12 anos. Uma cirurgia simples à vesícula virou-lhe a vida do avesso. Paula deixou de andar, cegou e emudeceu. E assim está. Consciente e lúcida, entre quatro paredes. Há 12 anos.
Isabel Simões tem na mão um lenço. E outro e outro, que a sua dor é grande de mais para caber num único pedaço de papel: "Choro muito. Às vezes ando a limpar o pó, olho para as molduras onde está a minha Paula, bonita e cheia de alegria, e penso e grito: porquê?" A revolta da mãe não é menor que a dor do pai. O senhor César desaba num cadeirão e revela: "Estou morto ha 12 anos, minha senhora. Acabei."
Tudo aconteceu em Julho de 1994. Paula tinha pedras na vesícula e era necessário extraí-las. Uma cirurgia simples, garantiram os médicos dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC). "Estavam a começar a fazer laparoscopias em Portugal e explicaram-nos que, como eram só uns furinhos na barriga, havia muito menos riscos. E a minha filha lá foi." Um dia depois da cirurgia, deram-lhe alta e, apesar das dores, foi para casa. "As dores são normais", terão dito no hospital. Mas Paula começou a ficar amarela. E dois dias depois após a laparoscopia, regressou aos HUC com uma icterícia preocupante. Acabou por ser operada novamente. No fim da operação o médico disse: "A sua filha tinha resíduos da vesícula espalhados no abdómen mas agora já está toda limpinha." Paula acabou por entrar em coma dois dias depois. "Parecia um monstro, os olhos revirados, a babar-se. Levei um grande choque, uma grande pancada."
Uma grande pancada que era apenas o início de uma nova vida para todos. Durante 26 meses, Paula permaneceu internada no serviço de Cirurgia II dos HUC. Tinha então 22 anos, era casada, mãe de dois gémeos de 5 anos. O marido foi vê-la poucas vezes. Os filhos não compreendiam por que motivo a mãe não lhes respondia, por que razão não lhes fazia as cócegas do costume. "Foi muito duro para os meus netos. Hoje têm 17 anos. São uns bons meninos. E gostam muito da mãe, falam muito com ela… Quando eram crianças, vinham da escola e iam logo a correr para a cama da mãe, contar o que tinha acontecido e ler-lhe os deveres."
Depois de 26 meses internada, Paula Simões já não regressou a sua casa. Os pais sabiam que tinham de olhar por ela até ao fim. O marido pediu o divórcio e tentou ficar com a guarda dos filhos. Isabel Simões e César Pires Alves travaram uma batalha em tribunal: "O pai disse que queria poupar os meninos a viverem com a mãe e com tanto sofrimento. Mas nós explicámos ao juiz que eles eram a única razão de viver da Paula." E o tribunal decidiu entregar os filhos à mãe com o poder paternal do pai: "À noite dormem no pai, durante o dia vêm para aqui e ao fim-de-semana também ficam connosco."
Mas esta não foi a única luta dos pais de Paula em tribunal. Queriam responsabilidades pelo que lhe aconteceu. "O médico disse-me que são coisas que acontecem. Que tem uma filha da idade da Paula e que sentia muito pelo que se tinha passado. Eu sei que ele não fez de propósito! Mas acho que alguém devia ser responsabilizado pela desgraça que aconteceu à minha filha." Mas não foi o que aconteceu. "Perdi na primeira instância e perdi no Supremo". Os tribunais consideraram não haver um nexo de causalidade entre a primeira cirurgia e a alegada insuficiência respiratória que ocorreu após a segunda operação.
O número de queixas por alegadas deficiências na assistência tem aumentado de ano para ano, quer na Ordem dos Médicos (OM), quer na Inspecção-Geral da Saúde (IGS). São cerca de 400 reclamações anuais, quer num organismo, quer no outro. De tal forma que a OM vai disponibilizar a partir de Janeiro, um seguro de responsabilidade civil com um prémio de 45 mil euros para os médicos se defenderem em caso de negligência médica, 15 mil dos quais servirão para indemnizar o doente.
Paula não teve direito a nada. Os pais sobrevivem com pouco mais de 500 euros por mês, mas não deixam que lhe falte nada: "Não tem uma ferida, a minha menina. Gastamos muito dinheiro em cremes para a pele dela ficar bonita. Não é, Paula?" Paula sorri e responde: "É", uma das poucas palavras que consegue dizer. Mas compreende tudo. E os seus olhos enchem-se de lágrimas quando ouve a mãe dizer: "Ela sofre muito. E nós também."
Claro que são muito mais os casos de sucesso do que os de infortúnio. É evidente que sim! E foi a isso que me segurei, sempre que o medo chegou. Mas, ainda assim, acho que qualquer pessoa normal ficaria apavorada, se tivesse estado a cabeceira da cama da Paula, como eu e o Nuno Fox estivemos, naquele Novembro de 2006.