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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Dador salvador

Depois da entrevista que fiz no Hospital Santa Maria entrei na Unidade Móvel e fui dar sangue. Foi meia-hora de descanso, não doeu nada, ri-me até às lágrimas com os enfermeiros e, no final, ainda bebi sumo de maçã e comi duas bolachinhas de manteiga. Saí a sentir-me mesmo bem. De facto, dar é receber. E hoje dei mas recebi uma satisfação incomparavelmente maior do que a minha dádiva.

P.S: Ah, é verdade: para os que me perguntam sobre a questão da minha dádiva de medula àquela pessoa supostamente compatível... não tenho notícias. Infelizmente parece que ainda não foi desta que pude salvar alguém... Mas pode ser que a senhora não tenha chegado a precisar e esteja a caminhar para uma recuperação  plena. Pode ser... Antes assim.

E se?

Sou jornalista há uns aninhos, já. Quinze, para ser mais precisa. E quis o destino, ou quis eu (acho que foi mais isso), que me dedicasse quase sempre a casos bicudos. Sempre gostei de histórias pesadas, não por ser um abutre que se alimenta da desgraça alheia, mas mais porque me fascina ver como o ser humano reage quando posto perante situações adversas, muito adversas. E fascina-me sobretudo porque quase sempre o ser humano arranja forças para se superar, para dar a volta, para vencer. Forças que nem sabia que tinha. Forças que ninguém imaginaria ter. Forças impossíveis. E eu já constatei isto centenas, milhares de vezes. Sempre com a mesma surpresa, com a mesma admiração.
Ora bem, posto isto, dizer-vos que fica difícil, muito difícil viver de forma sã quando já se viu tanta calamidade tão de perto. Passo a explicar:
- Quando estava a tentar engravidar pensei na quantidade de mulheres que conheci e que enfrentavam problemas incríveis e duradouros de infertilidade. E pensei: e se?
- Quando engravidei, temi o aborto espontâneo até ao terceiro mês, como tantas mulheres que entrevistei. E pensei: e se?
- Quando passou o primeiro trimestre, tremi. Pensei na espinha bífida, na síndrome de down, no autismo, nas inúmeras doenças raras, nas deficiências físicas. Afinal, tanto órgão em formação... e tantos casos que tinha entrevistado, tão terríveis. E pensei: e se?
- Ainda grávida, lembrei-me dos casos de perda gestacional. Tantos casais que conheci que tinham perdido os bebés às 36 semanas, às 38 semanas, às 40 semanas de gestação, quando nada o fazia prever, quando já estava pronto o quarto, a cama, as roupas, os brinquedos. E então pensei: e se?
- Ao mesmo tempo, recordei a Susana e a Carla e a Margarida. Todas elas tinham tido partos prematuros e haviam contado, entre lágrimas e soluços, os tempos passados junto à incubadora, a rezar para que os seus bebés sobrevivessem, sem sequelas, apesar de serem meio quilo de gente. E aí pensei: e se?
- Quando os meus bebés se preparavam para nascer, recordei as reportagens que fiz sobre partos complicados, que deram origem a bebés com paralisias cerebrais, mortes maternas, e outros dramas. E pensei: e se?
- Depois dos nascimentos, evoquei as histórias de mortes súbitas. Apesar de nunca ir certificar-me, durante a noite, se estavam vivos os meus bebés (sempre fiz por fugir dos meus próprios fantasmas), não deixei de ter uma espécie de grilinho a bichanar-me ao ouvido: e se?
Eu podia continuar por aqui fora. Com os raptos das crianças, com os cancros, com os acidentes. Com os AVCs, com os enfartes, com o desemprego.
É verdade que todas as pessoas têm acesso a estas histórias, seja por pessoas conhecidas, seja pelos meios de comunicação social. Mas eu entrevisto estas pessoas, que passaram por estas desgraças, e oiço-as e entro dentro das suas histórias, das suas vidas, por momentos eu vivo aquilo com elas, e sinto-o de perto.
E é por isso que nem sempre é fácil viver, simplesmente viver, com tanta informação.
Por um lado, esta minha profissão faz com que eu dê muito mais valor ao que tenho do que a maior parte das pessoas que conheço. Ao meu redor, toda a gente se queixa imenso, de merdinhas que não interessam nada. Eu também me queixo. Mas no momento seguinte estou a arrepender-me de o ter feito e a sentir-me ridícula.
Por outro lado, esta minha profissão deixa-me sempre uma angústia, em cada nova fase da vida. Porque inevitavelmente dou por mim a pensar: e se?