E agora? (Parte III)
Mais um dos textos dos cinco que faziam parte de uma reportagem publicada em 2004, no DNA.
(Tive um fim-de-semana horrível, com ataques de asma dos graúdos, daqueles que fazem com que os olhos quase me saltem das órbitas, de modo que não escrevo nada, antes repesco este texto antigo)
E agora, a liberdade?
Não, porra! Já disse que não saio. Já disse e repito que não vou a lugar nenhum.
Um problema no Estabelecimento Prisional de Sintra. Uma pequena multidão a juntar-se. O que é que se passa? Reclusos a coçar as cabeças incrédulas. Piadolas a nascer como cogumelos: Ó amigo, por quem és! Ficas no meu lugar e eu vou no teu. Um guarda a perguntar: O que é que se passa?
Mário (nome fictício). Homicida. Vinte anos de pena. Dois sacos pousados no chão, uma porta apenas a separá-lo do mundo todo. A mesma porta por onde entrou, vinte anos antes, a mesma porta a fechar-se atrás de si, vinte anos antes, separando-o do mundo todo, da vida toda que tinha pela frente.
Dois sacos pousados no chão. Todas as posses de um homem guardadas em dois sacos de viagem. Roupa, um álbum de fotografias, desenhos a carvão, poemas manuscritos, pouco mais. Nada além do recheio daqueles sacos. Nem uma peúga. Nem um alfinete. Nada mais nada menos que dois sacos cheios de coisas. E uma porta para a liberdade.
O que é que se passa? É aqui este companheiro que quer renovar o contrato. Gargalhadas cruéis. A incompreensão dos que têm mais do que apenas dois sacos de vida. Então, sô Mário? Então? Não seja assim, vá lá. Já viu o que é, poder sair daqui, refazer a sua vida, ter a liberdade?
Já, já tinha visto. Há vinte anos atrás sabia bem o que era ser livre. Só se sentira preso quando casara e, mesmo aí, nem por um momento se restringiu de fazer aquilo que lhe dava na real gana. A sua Conceição, coitada, chamava-lhe vadio. Tem graça. Vadio. E agora, vinte anos depois, a porta para a vadiagem aberta, o mundo todo lá fora, e ele, o vadio, imóvel, de lágrimas nos olhos: Não, porra! Já disse que não saio. Já disse e repito que não vou a lugar nenhum.
Os companheiros mais próximos já imaginavam que ia ser assim. Alguns apostaram que se suicidava antes do final da pena. Mário não tem a certeza mas acredita que houve até quem fizesse apostas a dinheiro sobre o desfecho da sua história. Mata-se. Recusa-se a sair. Enlouquece e faz reféns. Sai e limpa o sebo à primeira criatura que se cruzar no seu caminho. Quanto terá rendido o epílogo da sua história?
Há muitos casos como este. Gente para quem a prisão passa a ser a casa. Pessoas para quem a vida toda perdeu o sentido. Presos que viram desfazer-se, um a um, todos os laços que os ligavam ao mundo. Pessoas como o Mário, para quem a porta para a liberdade se transformou na porta para o abismo.
E agora? O que fazer, para lá da porta? Quem contactar? Quem procurar? Onde viver? Como subsistir? Quem se dispõe a oferecer trabalho a um ex-presidiário com 55 anos? E agora? Não, porra! Já disse que não saio. Já disse e repito que não vou a lugar nenhum.
Durante vinte anos, Mário acumulou perdas. A liberdade, primeiro. A mulher, depois. A casa. A mãe. O pai. Anos de perdas atrás de perdas. Como se, subitamente, fosse esse o único denominador comum que lhe reservasse o destino. Vinte anos de cárcere e os dedos de uma mão bastam para contar as visitas que teve. Mário descobriu da pior maneira o significado vão da amizade. E do amor.
Uma pequena multidão junta-se no átrio. O que é que se passa? É aqui o sô Mário que gosta tanto disto que se recusa a sair. Então, sô Mário? Não seja assim, vá lá. Já viu o que é, poder sair daqui, refazer a sua vida, ter a liberdade?
As coisas que as pessoas dizem. De que serve a liberdade, agora? Agora que um homem perdeu todas as raízes que o agarravam à vida para lá da porta. Agora que morreram, uns de morte outros de ausência, todos aqueles pelos quais merecia a pena sair. Agora que não há referências, não se conhecem os caminhos, as estradas, agora que nasceram prédios onde antes havia quintas, agora que há carros que não havia há vinte anos, com airbags e travões-não-sei-quê, e a Internet, e os telemóveis que tiram fotografias, e um sem número de novidades para as quais um homem como o Mário leva um atraso de vinte anos.
O vadio. O eterno vadio com medo de uma porta. Uma porta para a vadiagem, para a vida que continuou sem ele, traidora, incapaz de esperar. Uma porta para a liberdade, uma porta para o abismo da liberdade. E agora?
Não, porra! Têm que me matar. Só saio daqui morto. Esta é a minha casa. Esta é a minha família. Esta é a minha gente. Não me podem expropriar. Não podem simplesmente despejar-me daqui. Logo eu, um exemplo de bom comportamento, nunca me meti em confusões, nunca agredi ninguém, não me drogo, não desobedeço, sou um bom trabalhador. E agora, é isto? É assim que me recompensam pela regeneração?
Um nó na garganta de todos. Ao que pode chegar um homem. Os guardas, os directores, juristas, secretários, empregados de escritório. Lágrimas nos olhos de quase todos, mesmo dos que se empederniram com os anos. Então, sô Mário? Então? Não seja assim, vá lá. Não há nada que possamos fazer. A sua pena acabou, esta não é a sua casa, não se trata de expropriação, percebe?, não é uma ordem de despejo. É a liberdade, sô Mário. A liberdade.
Mário acabou por ser levado em peso para o outro lado da porta. Ele e dois sacos cheios de vida. Entre gritos e choro e desespero. A demência de um vadio domesticado. Promessas de crimes para breve, única garantia de regresso. A porta fechada, o mesmo som de há vinte anos, desta vez escutado do lado de fora. E, no entanto, a mesma angústia. E agora?
(Tive um fim-de-semana horrível, com ataques de asma dos graúdos, daqueles que fazem com que os olhos quase me saltem das órbitas, de modo que não escrevo nada, antes repesco este texto antigo)
E agora, a liberdade?
Não, porra! Já disse que não saio. Já disse e repito que não vou a lugar nenhum.
Um problema no Estabelecimento Prisional de Sintra. Uma pequena multidão a juntar-se. O que é que se passa? Reclusos a coçar as cabeças incrédulas. Piadolas a nascer como cogumelos: Ó amigo, por quem és! Ficas no meu lugar e eu vou no teu. Um guarda a perguntar: O que é que se passa?
Mário (nome fictício). Homicida. Vinte anos de pena. Dois sacos pousados no chão, uma porta apenas a separá-lo do mundo todo. A mesma porta por onde entrou, vinte anos antes, a mesma porta a fechar-se atrás de si, vinte anos antes, separando-o do mundo todo, da vida toda que tinha pela frente.
Dois sacos pousados no chão. Todas as posses de um homem guardadas em dois sacos de viagem. Roupa, um álbum de fotografias, desenhos a carvão, poemas manuscritos, pouco mais. Nada além do recheio daqueles sacos. Nem uma peúga. Nem um alfinete. Nada mais nada menos que dois sacos cheios de coisas. E uma porta para a liberdade.
O que é que se passa? É aqui este companheiro que quer renovar o contrato. Gargalhadas cruéis. A incompreensão dos que têm mais do que apenas dois sacos de vida. Então, sô Mário? Então? Não seja assim, vá lá. Já viu o que é, poder sair daqui, refazer a sua vida, ter a liberdade?
Já, já tinha visto. Há vinte anos atrás sabia bem o que era ser livre. Só se sentira preso quando casara e, mesmo aí, nem por um momento se restringiu de fazer aquilo que lhe dava na real gana. A sua Conceição, coitada, chamava-lhe vadio. Tem graça. Vadio. E agora, vinte anos depois, a porta para a vadiagem aberta, o mundo todo lá fora, e ele, o vadio, imóvel, de lágrimas nos olhos: Não, porra! Já disse que não saio. Já disse e repito que não vou a lugar nenhum.
Os companheiros mais próximos já imaginavam que ia ser assim. Alguns apostaram que se suicidava antes do final da pena. Mário não tem a certeza mas acredita que houve até quem fizesse apostas a dinheiro sobre o desfecho da sua história. Mata-se. Recusa-se a sair. Enlouquece e faz reféns. Sai e limpa o sebo à primeira criatura que se cruzar no seu caminho. Quanto terá rendido o epílogo da sua história?
Há muitos casos como este. Gente para quem a prisão passa a ser a casa. Pessoas para quem a vida toda perdeu o sentido. Presos que viram desfazer-se, um a um, todos os laços que os ligavam ao mundo. Pessoas como o Mário, para quem a porta para a liberdade se transformou na porta para o abismo.
E agora? O que fazer, para lá da porta? Quem contactar? Quem procurar? Onde viver? Como subsistir? Quem se dispõe a oferecer trabalho a um ex-presidiário com 55 anos? E agora? Não, porra! Já disse que não saio. Já disse e repito que não vou a lugar nenhum.
Durante vinte anos, Mário acumulou perdas. A liberdade, primeiro. A mulher, depois. A casa. A mãe. O pai. Anos de perdas atrás de perdas. Como se, subitamente, fosse esse o único denominador comum que lhe reservasse o destino. Vinte anos de cárcere e os dedos de uma mão bastam para contar as visitas que teve. Mário descobriu da pior maneira o significado vão da amizade. E do amor.
Uma pequena multidão junta-se no átrio. O que é que se passa? É aqui o sô Mário que gosta tanto disto que se recusa a sair. Então, sô Mário? Não seja assim, vá lá. Já viu o que é, poder sair daqui, refazer a sua vida, ter a liberdade?
As coisas que as pessoas dizem. De que serve a liberdade, agora? Agora que um homem perdeu todas as raízes que o agarravam à vida para lá da porta. Agora que morreram, uns de morte outros de ausência, todos aqueles pelos quais merecia a pena sair. Agora que não há referências, não se conhecem os caminhos, as estradas, agora que nasceram prédios onde antes havia quintas, agora que há carros que não havia há vinte anos, com airbags e travões-não-sei-quê, e a Internet, e os telemóveis que tiram fotografias, e um sem número de novidades para as quais um homem como o Mário leva um atraso de vinte anos.
O vadio. O eterno vadio com medo de uma porta. Uma porta para a vadiagem, para a vida que continuou sem ele, traidora, incapaz de esperar. Uma porta para a liberdade, uma porta para o abismo da liberdade. E agora?
Não, porra! Têm que me matar. Só saio daqui morto. Esta é a minha casa. Esta é a minha família. Esta é a minha gente. Não me podem expropriar. Não podem simplesmente despejar-me daqui. Logo eu, um exemplo de bom comportamento, nunca me meti em confusões, nunca agredi ninguém, não me drogo, não desobedeço, sou um bom trabalhador. E agora, é isto? É assim que me recompensam pela regeneração?
Um nó na garganta de todos. Ao que pode chegar um homem. Os guardas, os directores, juristas, secretários, empregados de escritório. Lágrimas nos olhos de quase todos, mesmo dos que se empederniram com os anos. Então, sô Mário? Então? Não seja assim, vá lá. Não há nada que possamos fazer. A sua pena acabou, esta não é a sua casa, não se trata de expropriação, percebe?, não é uma ordem de despejo. É a liberdade, sô Mário. A liberdade.
Mário acabou por ser levado em peso para o outro lado da porta. Ele e dois sacos cheios de vida. Entre gritos e choro e desespero. A demência de um vadio domesticado. Promessas de crimes para breve, única garantia de regresso. A porta fechada, o mesmo som de há vinte anos, desta vez escutado do lado de fora. E, no entanto, a mesma angústia. E agora?