E agora? (Parte II)
E agora, de que lado me deito?
Foi há dois meses. O perfume dela ainda se sente pela casa. O seu sorriso permanece inalterado na moldura em cima da mesa-de-cabeceira, à direita da cama. Tem piada, isso.
António não sabe dizer por que razão não removeu ainda da mesa-de-cabeceira aquele sorriso. Ou talvez saiba. Subitamente, o silêncio. As palavras murchas dentro da boca, a voz seca na garganta. Talvez saiba. Acostumou-se a tê-la ali, ao seu lado, dentro e fora da cama, dentro e fora de casa, na carteira, no escritório, sorrisos imóveis em molduras, o seu riso fresco espalhado pelos dias. Talvez lhe seja ainda demasiado penoso retirá-la da moldura, já que deixou de a ter fora dela. A existência daquele sorriso na sua vida resume-se agora a uma moldura numa mesa-de-cabeceira, do lado direito da cama.
Casaram há dez anos. Uma festa inesquecível, dois álbuns de fotografias com sorrisos que pareciam eternos. António folheia-os sem dizer nada. Não há nada para dizer. «A tia Lurdes...», balbucia por fim, como se pedisse desculpa à tia Lurdes e aos outros e a si mesmo pelo falhanço. A culpa. Sempre a culpa. Desde que as coisas começaram a correr mal que António tentou descobri-la, achar-lhe o rasto. Onde é que falhei? O que podia ter feito e não fiz? Hoje já quase conseguiu libertar-se dela. Não se resguarda na postura da vítima abandonada, mas cessou as buscas obstinadas por uma culpa sua que justificasse o resto.
A Luísa. Sempre alegre, sempre cuidadosa com tudo, a casa, os filhos, as jarras onde as flores pareciam nascer. E, de repente, a Luísa triste, a Luísa calada, a Luísa absorta em pensamentos. «Estás estranha». A Luísa a desculpar-se com o trabalho, a olhar o telemóvel, a escrever mensagens. A Luísa a descurar a casa, impaciente com os filhos, a Luísa a deixar apodrecer as flores dentro das jarras. «Está aqui um cheiro esquisito, Luísa. O que será?». As flores podres, a água podre, o cheiro a podre a invadir assoalhadas.
E depois, aquela noite. Os miúdos já dormiam, as bocas dos dois mastigavam o jantar que ela não cozinhou (há muito que deixara de ter prazer em preparar os jantares de outrora), o silêncio era aliviado pela televisão que palrava coisas que nenhum dos dois ouvia. Foi nessa noite que ela lhe disse: «António, temos de falar». Lembra-se de ter sentido um aperto no peito, de pensar que não sobreviveria. Não precisava de a ouvir dizer mais nada. Sabia. Tinha visto acontecer vezes sem conta nos filmes. Quando uma mulher diz «Temos de falar» já se sabe.
Deixou de haver flores dentro das jarras. Uma camada de pó branco cobre os móveis, as jarras, as molduras onde permanecem, imperturbáveis, os sorrisos. O dela, o dela ao lado do dele, o dela ao lado do dos miúdos. Os miúdos. A falta do barulho deles, dos legos espalhados pela sala, da canseira que era ouvi-los, vesti-los, aturá-los. As camas por desfazer, os brinquedos estranhamente arrumados, uma perturbante quietude. O vazio.
António costumava dizer que jamais suportaria uma traição. Sempre detestara sentir-se enganado, não tolerava que fizessem dele parvo. E agora, agora que ela dizia num tom solene «Temos de falar», pensou tapar-lhe a boca, dizer-lhe «Não, não digas nada, esquecemos tudo, começamos de novo». Levantou-se da mesa, foi à cozinha respirar fundo, ganhar forças, voltou e ouviu-a repetir, «Ouviste, António? Temos de falar». E foi então que fez o inimaginável, tapou-lhe a boca, disse-lhe «Não, não digas nada, esquecemos tudo, começamos de novo».
Luísa. A sua Luísa. Sempre tão doce, tão frágil, tão infinitamente dedicada. A sua Luísa de repente fria, de repente imperturbável, de repente inflexível. «Não, António, pára com isso. Precisamos de falar. Precisas de saber». Tinha conhecido outra pessoa, estavam apaixonados, – apaixonados? – iam viver juntos – viver juntos? Palavras incompreensíveis, sentimentos contraditórios, raiva, ódio, tristeza, amor. Como se pode amar alguém que vagou espaço para outra pessoa? Como se pode amar e odiar a mesma mulher? Querer abraçá-la e desejar que desapareça?
E agora? Como sobreviver a isto?
Lembra-se de ter ficado imóvel, as mãos a tapar os ouvidos, a sala a rodopiar, ela à espera de uma reacção dele. «Diz alguma coisa». O que queres que diga? Boa viagem? Que sejam felizes?
A Luísa. As crianças. As molduras a exibir sorrisos. O dela, o dela ao lado do dele, o dela ao lado do dos miúdos. Os álbuns com as fotografias do casamento, supostamente o dia mais feliz das suas vidas. O nascimento dos filhos, os dois a soprar para que os filhos nascessem, os dois de mão dada, os dois a rir e a chorar, os dois num abraço de partilha, de conquista, os dois fundidos no mesmo abraço, os dois transformados em três, os dois transformados em quatro. E agora?
Não é só o perfume. Não são só os sorrisos emoldurados como se nada fosse. Luísa mantém-se naquela casa, pequenos vestígios dela «esquecidos» em cada divisão. António desculpa-se com o tempo. «Ainda não tive tempo de dar uma volta a isto». Depois sorri. Como se percebesse a fragilidade dos seus argumentos. Uma camisola, um rímel, o champô para cabelos pintados.
Naquele instante, pensamentos desordenados insistiam em atropelar-se. O que faria sem ela? Quem seria o fulano? E os miúdos? Quando veria os miúdos? Quem ficaria com a casa? E com o quadro da Maluda? E o cão? Como se teriam conhecido? E o computador? Como dizer às crianças? Como dizer aos seus pais? Que qualidades teria o outro para que ela se tivesse apaixonado a ponto de largar tudo? Como tolerar que um outro homem vivesse com os seus filhos? Lhes desse a mão. Lhes lesse histórias à noite. Os levasse ao colégio. Como resistir à ideia de outro homem a fazer amor com a sua mulher? A sorrir nos retratos. A sorrir na mesa-de-cabeceira, à esquerda da cama, numa moldura idêntica àquela onde ela também sorriria, à direita da cama. Um equilíbrio. Uma felicidade. Uma dor pungente.
Foi há dois meses. Ela a viver noutra casa, as crianças a viverem noutra casa, as jarras sem flores, a falsidade dos sorrisos nas molduras onde pousa o pó. Tudo parece ainda impossível, irreal, patético. O silêncio onde antes havia vozes, o vazio onde antes havia tudo. António procura colar pedaços de si que julga definitivamente quebrados. Vive dia após dia como um autómato programado apenas para viver. Chora e não sente vergonha de dizer que chora. Odeia e não teme a força da palavra. Ama ainda e detesta-se por isso. A falta que ela lhe faz. À noite, quando se deita, dirige-se sempre para o lado esquerdo da cama. Enquanto dorme, chega-se ainda para o lado esquerdo. Como se o direito não estivesse livre. Vago. Frio. À noite, quando lhe dá o sono, prefere adormecer no sofá. Só para não ter que perguntar a si próprio: E agora? Para que lado é que me deito?
Foi há dois meses. O perfume dela ainda se sente pela casa. O seu sorriso permanece inalterado na moldura em cima da mesa-de-cabeceira, à direita da cama. Tem piada, isso.
António não sabe dizer por que razão não removeu ainda da mesa-de-cabeceira aquele sorriso. Ou talvez saiba. Subitamente, o silêncio. As palavras murchas dentro da boca, a voz seca na garganta. Talvez saiba. Acostumou-se a tê-la ali, ao seu lado, dentro e fora da cama, dentro e fora de casa, na carteira, no escritório, sorrisos imóveis em molduras, o seu riso fresco espalhado pelos dias. Talvez lhe seja ainda demasiado penoso retirá-la da moldura, já que deixou de a ter fora dela. A existência daquele sorriso na sua vida resume-se agora a uma moldura numa mesa-de-cabeceira, do lado direito da cama.
Casaram há dez anos. Uma festa inesquecível, dois álbuns de fotografias com sorrisos que pareciam eternos. António folheia-os sem dizer nada. Não há nada para dizer. «A tia Lurdes...», balbucia por fim, como se pedisse desculpa à tia Lurdes e aos outros e a si mesmo pelo falhanço. A culpa. Sempre a culpa. Desde que as coisas começaram a correr mal que António tentou descobri-la, achar-lhe o rasto. Onde é que falhei? O que podia ter feito e não fiz? Hoje já quase conseguiu libertar-se dela. Não se resguarda na postura da vítima abandonada, mas cessou as buscas obstinadas por uma culpa sua que justificasse o resto.
A Luísa. Sempre alegre, sempre cuidadosa com tudo, a casa, os filhos, as jarras onde as flores pareciam nascer. E, de repente, a Luísa triste, a Luísa calada, a Luísa absorta em pensamentos. «Estás estranha». A Luísa a desculpar-se com o trabalho, a olhar o telemóvel, a escrever mensagens. A Luísa a descurar a casa, impaciente com os filhos, a Luísa a deixar apodrecer as flores dentro das jarras. «Está aqui um cheiro esquisito, Luísa. O que será?». As flores podres, a água podre, o cheiro a podre a invadir assoalhadas.
E depois, aquela noite. Os miúdos já dormiam, as bocas dos dois mastigavam o jantar que ela não cozinhou (há muito que deixara de ter prazer em preparar os jantares de outrora), o silêncio era aliviado pela televisão que palrava coisas que nenhum dos dois ouvia. Foi nessa noite que ela lhe disse: «António, temos de falar». Lembra-se de ter sentido um aperto no peito, de pensar que não sobreviveria. Não precisava de a ouvir dizer mais nada. Sabia. Tinha visto acontecer vezes sem conta nos filmes. Quando uma mulher diz «Temos de falar» já se sabe.
Deixou de haver flores dentro das jarras. Uma camada de pó branco cobre os móveis, as jarras, as molduras onde permanecem, imperturbáveis, os sorrisos. O dela, o dela ao lado do dele, o dela ao lado do dos miúdos. Os miúdos. A falta do barulho deles, dos legos espalhados pela sala, da canseira que era ouvi-los, vesti-los, aturá-los. As camas por desfazer, os brinquedos estranhamente arrumados, uma perturbante quietude. O vazio.
António costumava dizer que jamais suportaria uma traição. Sempre detestara sentir-se enganado, não tolerava que fizessem dele parvo. E agora, agora que ela dizia num tom solene «Temos de falar», pensou tapar-lhe a boca, dizer-lhe «Não, não digas nada, esquecemos tudo, começamos de novo». Levantou-se da mesa, foi à cozinha respirar fundo, ganhar forças, voltou e ouviu-a repetir, «Ouviste, António? Temos de falar». E foi então que fez o inimaginável, tapou-lhe a boca, disse-lhe «Não, não digas nada, esquecemos tudo, começamos de novo».
Luísa. A sua Luísa. Sempre tão doce, tão frágil, tão infinitamente dedicada. A sua Luísa de repente fria, de repente imperturbável, de repente inflexível. «Não, António, pára com isso. Precisamos de falar. Precisas de saber». Tinha conhecido outra pessoa, estavam apaixonados, – apaixonados? – iam viver juntos – viver juntos? Palavras incompreensíveis, sentimentos contraditórios, raiva, ódio, tristeza, amor. Como se pode amar alguém que vagou espaço para outra pessoa? Como se pode amar e odiar a mesma mulher? Querer abraçá-la e desejar que desapareça?
E agora? Como sobreviver a isto?
Lembra-se de ter ficado imóvel, as mãos a tapar os ouvidos, a sala a rodopiar, ela à espera de uma reacção dele. «Diz alguma coisa». O que queres que diga? Boa viagem? Que sejam felizes?
A Luísa. As crianças. As molduras a exibir sorrisos. O dela, o dela ao lado do dele, o dela ao lado do dos miúdos. Os álbuns com as fotografias do casamento, supostamente o dia mais feliz das suas vidas. O nascimento dos filhos, os dois a soprar para que os filhos nascessem, os dois de mão dada, os dois a rir e a chorar, os dois num abraço de partilha, de conquista, os dois fundidos no mesmo abraço, os dois transformados em três, os dois transformados em quatro. E agora?
Não é só o perfume. Não são só os sorrisos emoldurados como se nada fosse. Luísa mantém-se naquela casa, pequenos vestígios dela «esquecidos» em cada divisão. António desculpa-se com o tempo. «Ainda não tive tempo de dar uma volta a isto». Depois sorri. Como se percebesse a fragilidade dos seus argumentos. Uma camisola, um rímel, o champô para cabelos pintados.
Naquele instante, pensamentos desordenados insistiam em atropelar-se. O que faria sem ela? Quem seria o fulano? E os miúdos? Quando veria os miúdos? Quem ficaria com a casa? E com o quadro da Maluda? E o cão? Como se teriam conhecido? E o computador? Como dizer às crianças? Como dizer aos seus pais? Que qualidades teria o outro para que ela se tivesse apaixonado a ponto de largar tudo? Como tolerar que um outro homem vivesse com os seus filhos? Lhes desse a mão. Lhes lesse histórias à noite. Os levasse ao colégio. Como resistir à ideia de outro homem a fazer amor com a sua mulher? A sorrir nos retratos. A sorrir na mesa-de-cabeceira, à esquerda da cama, numa moldura idêntica àquela onde ela também sorriria, à direita da cama. Um equilíbrio. Uma felicidade. Uma dor pungente.
Foi há dois meses. Ela a viver noutra casa, as crianças a viverem noutra casa, as jarras sem flores, a falsidade dos sorrisos nas molduras onde pousa o pó. Tudo parece ainda impossível, irreal, patético. O silêncio onde antes havia vozes, o vazio onde antes havia tudo. António procura colar pedaços de si que julga definitivamente quebrados. Vive dia após dia como um autómato programado apenas para viver. Chora e não sente vergonha de dizer que chora. Odeia e não teme a força da palavra. Ama ainda e detesta-se por isso. A falta que ela lhe faz. À noite, quando se deita, dirige-se sempre para o lado esquerdo da cama. Enquanto dorme, chega-se ainda para o lado esquerdo. Como se o direito não estivesse livre. Vago. Frio. À noite, quando lhe dá o sono, prefere adormecer no sofá. Só para não ter que perguntar a si próprio: E agora? Para que lado é que me deito?