E agora? (Parte I)
Estava à procura de outra coisa, no computador. E descobri isto, publicado no DNA, em 2004. Deu-me saudades e pronto. Aqui fica uma pequena parte (para quem não sabe, no DNA isto era mesmo uma pequena parte) de uma reportagem a que chamei "E Agora?"
E agora, para que é que eu sirvo?
Uma vida estúpida. Acordar de madrugada, saltar de transporte público em transporte público, o cheiro a sovaco dos outros, as discussões das velhas sobre quem merece mais o único lugar disponível, Eu tenho varizes, Eu tive uma trombose, Eu sou mais velha, Não eu é que sou. Uma vida completamente estúpida. Chegar ao escritório, despachar facturas, fazer contas e pagamentos, carimbar papeladas, preencher cheques, saltar novamente de transporte público em transporte público, resistir ao fedor a cansaço dos outros, às discussões das velhas e das novas, Eu estou grávida, Ó minha filha eu estive grávida sete vezes e não tinha que andar sentada, Quero lá saber do que fez na sua vida, vá para o diabo. Uma vida cabalmente estúpida. Entrar em casa com a gravata desapertada, atirar com os sapatos para um canto, sorver a sopa, deixar cair a cabeça, o queixo encostado ao peito, uma estrada de baba a percorrer o pescoço, a novela aos gritos na televisão, a mulher a bordar gatos a ponto de cruz.
A estupidez que pode ser uma vida inteira.
Ao fim-de-semana, coisa nenhuma. A mulher ocupada com as limpezas, o perfume dos detergentes a entranhar-se na casa, nas cortinas, nas carpetes, na roupa, a alma a tresandar a detergente, Vou sair, já volto. Um passeio pelo jardim, a respiração ofegante, os pensamentos presos no escritório, nas facturas, nas papeladas, na estupidez toda da semana toda, os pensamentos a vaguear para outros caminhos, pelos outros caminhos que a vida poderia ter tido, o que fiz e não devia ter feito, o que não fiz e podia ter feito, quem sou e quem gostaria de ter sido, pensamentos desobedientes a deslizar por territórios interditos. Pensar faz sempre mossa a quem vive uma vida estúpida.
Na segunda-feira, tudo outra vez. O despertador a berrar o estado do tempo ou as notícias ou a guinchar uma música qualquer. O pão com manteiga mergulhado no Nescafé quente, o pára-arranca do trânsito, a infinita tentação de levar desodorizantes num saco e distribui-los a torto e a direito nos transportes públicos, o imenso desejo de correr velhas e novas à chapada, O que é que me interessam as suas varizes, ralo-me lá com a sua trombose, quem é que quer, neste maldito autocarro, saber qual das velhas é a mais velha?
No escritório, a repetição maquinal dos gestos. Os cheques, as facturas, os carimbos, a papelada. O chefe de mau humor, a Lurdes com a menopausa, o Firmino de baixa outra vez. Depois, à noite, entrar em casa com a gravata desapertada, engolir a sopa ou os filetes ou os peixinhos da horta, aterrar no sofá, deixar cair a cabeça, o queixo encostado ao peito, uma estrada de baba a percorrer o pescoço, mais gatos a nascer dessa caprichosa soma de cruzes.
Uma vida insuportavelmente estúpida. Quarenta anos de uma existência assim.
Até que um dia, a pergunta. E agora? E agora que já não é preciso acordar cedo? Agora que já não é preciso acordar, de todo? Durante anos, José Saraiva sonhou com a reforma. Gostava de se imaginar dono do seu tempo, o único patrão dos seus dias. O que faria quando pudesse enfim decidir sobre a melhor forma de preencher as horas que temos? Sorria sempre com essa perspectiva. Um sorriso vitorioso, triunfante. Faria isto, faria aquilo. Transformaria sem dúvida a vida que tinha numa outra coisa. Numa coisa melhor. A estupidez inteira da sua vida inteira não era culpa sua, não podia ser culpa sua.
Durante anos sonhara com a reforma, esse tempo de recomeço. E no entanto, a única pergunta que lhe ocorre no momento é: E agora? Como contrariar o corpo, programado para despertar todos os dias às seis da manhã? O que fazer nas madrugadas sem ser saltar de transporte público em transporte público? Como desabituar o nariz ao odor nauseabundo a gente? Como viver sem a estúpida vida que era a sua?
O dia em que se veio embora do escritório, caixas de papelão com o agrafador, cinco esferográficas, duas violetas, três ou quatro dossiers, o dia em que se despediu do chefe, da Lurdes – lavada em lágrimas mais por culpa das hormonas do que pela pena de o ver partir –, o dia em que não disse adeus ao Firmino, permanentemente de baixa com uma depressão, esmagado pela estupidez de uma vida idêntica à sua. Esse dia doeu-lhe fundo no peito. E não é uma metáfora, dessas bonitas que se encontram para descrever estados de alma. A verdade é que uma moinha pertinaz lhe apertava o peito, começou devagarinho, depois parecia querer estrangulá-lo, em seguida sufocou-lhe o ar. Pensou que morria. Olha que graça, morrer justamente no dia da libertação, no dia em que podia finalmente começar a decidir sobre a melhor forma de preencher as horas que temos. Morrer logo agora que seria dono do seu tempo, o único patrão dos seus dias.
Não morreu. Atribuiu a dor a uma espécie de novo parto, a um sofrimento necessário ao renascimento, ao encerrar de uma vida rigorosamente estúpida, ao início de uma nova história que escreveria com total liberdade. E, no entanto, os dias a passar e a pergunta, a abominável pergunta a insistir, obsessiva: E agora? Para que é que eu sirvo? Não trabalho, não tenho filhos, não tenho netos, não sei e não gosto e não quero dedicar-me à casa, às limpezas, aos detergentes que se entranham dentro da gente, não posso valer a ninguém, sou um velho inútil e descartável, esqueço-me das coisas, atrapalho-me com os gestos simples, tenho medo de atravessar as ruas. E agora? Que vai ser de mim? Como ocupar os dias, as horas, o tempo que me resta?
De vez em quando, José diverte-se a jogar às cartas com outros velhos obstinados com a mesma interrogação angustiante. Mas não é sempre. Há momentos em que, a meio de um jogo, consegue a proeza de sair de si, pairando como um fantasma observador por cima da mesa onde as cartas são lançadas com bonomia. E então deprime-se. E agora? Agora é que sou mesmo um velhinho acabado, daqueles que me acostumei a olhar nos jardins, com um misto de desprezo e pena. E então levanta-se e desaparece. Por vezes despede-se, outras nem isso. Desaparece, simplesmente.
Uma vida tão estúpida. E, apesar disso, a falta que ela lhe faz. A falta que lhe faz sentir que vale alguma coisa, que tem um objectivo em cada novo acordar, que a sua existência, mesmo estúpida, tem uma utilidade para os outros. De chinelos calçados, à espera que os dias se escoem, José Saraiva só queria que alguém lhe respondesse à pergunta: E agora, para que é que eu sirvo?
E agora, para que é que eu sirvo?
Uma vida estúpida. Acordar de madrugada, saltar de transporte público em transporte público, o cheiro a sovaco dos outros, as discussões das velhas sobre quem merece mais o único lugar disponível, Eu tenho varizes, Eu tive uma trombose, Eu sou mais velha, Não eu é que sou. Uma vida completamente estúpida. Chegar ao escritório, despachar facturas, fazer contas e pagamentos, carimbar papeladas, preencher cheques, saltar novamente de transporte público em transporte público, resistir ao fedor a cansaço dos outros, às discussões das velhas e das novas, Eu estou grávida, Ó minha filha eu estive grávida sete vezes e não tinha que andar sentada, Quero lá saber do que fez na sua vida, vá para o diabo. Uma vida cabalmente estúpida. Entrar em casa com a gravata desapertada, atirar com os sapatos para um canto, sorver a sopa, deixar cair a cabeça, o queixo encostado ao peito, uma estrada de baba a percorrer o pescoço, a novela aos gritos na televisão, a mulher a bordar gatos a ponto de cruz.
A estupidez que pode ser uma vida inteira.
Ao fim-de-semana, coisa nenhuma. A mulher ocupada com as limpezas, o perfume dos detergentes a entranhar-se na casa, nas cortinas, nas carpetes, na roupa, a alma a tresandar a detergente, Vou sair, já volto. Um passeio pelo jardim, a respiração ofegante, os pensamentos presos no escritório, nas facturas, nas papeladas, na estupidez toda da semana toda, os pensamentos a vaguear para outros caminhos, pelos outros caminhos que a vida poderia ter tido, o que fiz e não devia ter feito, o que não fiz e podia ter feito, quem sou e quem gostaria de ter sido, pensamentos desobedientes a deslizar por territórios interditos. Pensar faz sempre mossa a quem vive uma vida estúpida.
Na segunda-feira, tudo outra vez. O despertador a berrar o estado do tempo ou as notícias ou a guinchar uma música qualquer. O pão com manteiga mergulhado no Nescafé quente, o pára-arranca do trânsito, a infinita tentação de levar desodorizantes num saco e distribui-los a torto e a direito nos transportes públicos, o imenso desejo de correr velhas e novas à chapada, O que é que me interessam as suas varizes, ralo-me lá com a sua trombose, quem é que quer, neste maldito autocarro, saber qual das velhas é a mais velha?
No escritório, a repetição maquinal dos gestos. Os cheques, as facturas, os carimbos, a papelada. O chefe de mau humor, a Lurdes com a menopausa, o Firmino de baixa outra vez. Depois, à noite, entrar em casa com a gravata desapertada, engolir a sopa ou os filetes ou os peixinhos da horta, aterrar no sofá, deixar cair a cabeça, o queixo encostado ao peito, uma estrada de baba a percorrer o pescoço, mais gatos a nascer dessa caprichosa soma de cruzes.
Uma vida insuportavelmente estúpida. Quarenta anos de uma existência assim.
Até que um dia, a pergunta. E agora? E agora que já não é preciso acordar cedo? Agora que já não é preciso acordar, de todo? Durante anos, José Saraiva sonhou com a reforma. Gostava de se imaginar dono do seu tempo, o único patrão dos seus dias. O que faria quando pudesse enfim decidir sobre a melhor forma de preencher as horas que temos? Sorria sempre com essa perspectiva. Um sorriso vitorioso, triunfante. Faria isto, faria aquilo. Transformaria sem dúvida a vida que tinha numa outra coisa. Numa coisa melhor. A estupidez inteira da sua vida inteira não era culpa sua, não podia ser culpa sua.
Durante anos sonhara com a reforma, esse tempo de recomeço. E no entanto, a única pergunta que lhe ocorre no momento é: E agora? Como contrariar o corpo, programado para despertar todos os dias às seis da manhã? O que fazer nas madrugadas sem ser saltar de transporte público em transporte público? Como desabituar o nariz ao odor nauseabundo a gente? Como viver sem a estúpida vida que era a sua?
O dia em que se veio embora do escritório, caixas de papelão com o agrafador, cinco esferográficas, duas violetas, três ou quatro dossiers, o dia em que se despediu do chefe, da Lurdes – lavada em lágrimas mais por culpa das hormonas do que pela pena de o ver partir –, o dia em que não disse adeus ao Firmino, permanentemente de baixa com uma depressão, esmagado pela estupidez de uma vida idêntica à sua. Esse dia doeu-lhe fundo no peito. E não é uma metáfora, dessas bonitas que se encontram para descrever estados de alma. A verdade é que uma moinha pertinaz lhe apertava o peito, começou devagarinho, depois parecia querer estrangulá-lo, em seguida sufocou-lhe o ar. Pensou que morria. Olha que graça, morrer justamente no dia da libertação, no dia em que podia finalmente começar a decidir sobre a melhor forma de preencher as horas que temos. Morrer logo agora que seria dono do seu tempo, o único patrão dos seus dias.
Não morreu. Atribuiu a dor a uma espécie de novo parto, a um sofrimento necessário ao renascimento, ao encerrar de uma vida rigorosamente estúpida, ao início de uma nova história que escreveria com total liberdade. E, no entanto, os dias a passar e a pergunta, a abominável pergunta a insistir, obsessiva: E agora? Para que é que eu sirvo? Não trabalho, não tenho filhos, não tenho netos, não sei e não gosto e não quero dedicar-me à casa, às limpezas, aos detergentes que se entranham dentro da gente, não posso valer a ninguém, sou um velho inútil e descartável, esqueço-me das coisas, atrapalho-me com os gestos simples, tenho medo de atravessar as ruas. E agora? Que vai ser de mim? Como ocupar os dias, as horas, o tempo que me resta?
De vez em quando, José diverte-se a jogar às cartas com outros velhos obstinados com a mesma interrogação angustiante. Mas não é sempre. Há momentos em que, a meio de um jogo, consegue a proeza de sair de si, pairando como um fantasma observador por cima da mesa onde as cartas são lançadas com bonomia. E então deprime-se. E agora? Agora é que sou mesmo um velhinho acabado, daqueles que me acostumei a olhar nos jardins, com um misto de desprezo e pena. E então levanta-se e desaparece. Por vezes despede-se, outras nem isso. Desaparece, simplesmente.
Uma vida tão estúpida. E, apesar disso, a falta que ela lhe faz. A falta que lhe faz sentir que vale alguma coisa, que tem um objectivo em cada novo acordar, que a sua existência, mesmo estúpida, tem uma utilidade para os outros. De chinelos calçados, à espera que os dias se escoem, José Saraiva só queria que alguém lhe respondesse à pergunta: E agora, para que é que eu sirvo?