Eu devo merecer. De certeza. A minha mãezinha bem me dizia, sempre que eu lhe dava cabo da cabeça: "Quando tiveres um filho vais ver!" E, lá está, eu agora vejo, ah se vejo, só não precisava era de ver tanto, canário! Ontem de manhã o Martim caiu. Estava desde domingo em casa da minha mãe, para desfrutar da piscina e do sol e da vida ao ar livre, maravilha. Mas ontem, a segurar a trela da cadela Coca, foi puxado e voou arrastado pelo chão. Diz que berrou bem alto. Vieram pessoas acudir. E desde então nunca mais andou. Eram dez da matina, a desgraçada da minha mãe carregou-o ao colo cerca de várias centenas de metros, estafada, que "aquilo" ainda são 16 quilos de gente. Uma hora depois, a minha mãe ligou-me: "Estou um bocado preocupada porque ele recusa-se a andar. Não quer ir para a piscina, não quer ir regar o jardim, não brinca com o irmão, está para aqui sentado, com as pernas encolhidas..."
Fomos lá e tentámos de tudo. Nada. Viemos para Lisboa e tornámos a tentar de tudo: "Anda jogar à bola". Não posso. "Vamos andar de bicicleta?" Não posso. Esticámos-lhe as pernas, gritou, guinchou como se o matássemos. Partimos para a ameaça: "Bem, sendo assim tens de ir para o hospital." Não quero! "Então anda". Não posso.
Às oito da noite começámos a sentir um certo nervoso miudinho. E lá fomos ao sítio do costume. No hospital, fez raio-x, foi o cabo dos trabalhos para lhe esticar as pernas. A médica olhou a fotografia aos ossos e encolheu os ombros: "Está tudo bem, ele deve estar retraído porque lhe doem as feridas... Mas não tem nada".
Em casa, continuou na mesma. Imóvel. Sem brincar. Choramingando dores e tristeza de não poder andar. As pernas hirtas, dobradas. O pai, à noite, desabafou o seu receio: "E se lhe aconteceu alguma coisa na medula?" Dormimos mal e porcamente. Durante a noite fomos lá esticar-lhe as pernas - e esticaram. Passei-lhe a unha na planta do pé, reagiu. Porra!, disse eu. São muitos anos a ver o Serviço de Urgência, o Hospital Central, a Anatomia de Grey e o Dr. House para já saber que se houvesse drama com a medula ele não mexia nem sentia nada. Calma! Isto vai lá.
Hoje de manhã foi o inferno lá em casa. O puto aos gritos, eu aos gritos, o pai aos gritos. E ele nada, de pernas dobradas, a deixar-se cair no chão, como se estivesse deficiente. Só pensava: "E agora? Se ele decidiu deixar de andar como é que se faz? O que é que a gente faz?" Ao fim de vários gritos, lá começou a pôr um pé no chão e a arrastar a outra perna. A sério. Eu devo merecer. O que é certo é que todas as minhas ideias de que daria uma boa psicóloga foram pelo cano. Jamais teria paciência para aturar estas merdas. Perdão pela linguagem. Mas hoje estou desfeita.