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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Carnaval


Estava eu em frente aos fatos dos Power Rangers (só soube que eram Power Rangers porque fui ler a etiqueta, caso contrário achava que eram só fatos a imitar - mal - astronautas ou a imitar mal outra coisa parecida) quando os meus olhos deram com a Cláudia, uma amiga dos tempos do liceu, daquelas que a nossa ingenuidade comovente faz acreditar que serão amigas para sempre. A Cláudia estava do lado de lá do charriot, com a mesma expresão de desânimo que eu. Olhámo-nos.
- Estou tão lixada - disse eu.
- Tu estás lixada? - retorquiu ela. - Então que direi eu? A minha filha Francisca quer ser o homem-aranha. Tanta princesa, tanta fada, tanta Branca de Neve. Mas não. Ela quer ser o homem-aranha.
- Pois os meus querem ser maus. Ou heróis. Tanto faz, desde que tenham fatos para andar à pancada. Já corri tudo e a única porra que encontrei foram estes Power Rangers que parecem maus astronautas. E cada um custa 45 euros.
- Odeio o Carnaval.
- Nem me digas nada.
Andámos pelo Colombo como se nos tivessemos visto há dois dias. Sem os constrangimentos naturais de anos de desencontro. Sem os silêncios desconfortáveis. Eu ajudei-a a procurar um homem-aranha para a Francisca. Ela ajudou-me a encontrar maus.
Acabou como era de prever. Ela - rica desde que a conheço - levou umas penas de 3 euros para convencer a filha a usar um fato de índio emprestado. Eu, jornalista remediada, trouxe dois fatos por 90 euros. No final, despedimo-nos como se amanhã nos fôssemos ver outra vez.

...


Hoje conheci a Ana Madragoa. Uma daquelas mães que me fazem sentir mal sempre que maldigo a vida, sempre que acho que trabalho demais, que estou cansada demais, que tenho duas pestinhas aceleradas demais. A Ana tem um filho, o Guilherme, que tem 4 anos e é um amor. Nasceu com a pior vertente da espinha bífida. Foi operado três vezes. Não mexe as pernas. Avança pela casa com a ajuda dos braços, arrastando as pernas imóveis e, para já, inúteis. A Ana é linda, bem disposta, e procura focar-se no lado positivo da vida, o que, tendo em conta as muitas histórias que me contou, é realmente e por si só, um acto heróico. De modo que hoje, depois de ter trabalhado 13 horas, cheguei a casa sorridente e olhei para a minha vida com outros olhos. Às vezes, para termos a noção do que temos, é preciso conhecer aquilo que nos podia ter tocado. Ah, já agora: a Ana faz gorros lindos como o que está na fotografia. E vende. O site dela é:

...


Ontem e hoje fui fazer "serviços". Os jornalistas têm esta mania, de dizer ao telefone, quando alguém liga a perguntar por um colega: "Ela não está. Saiu para um serviço." Para um serviço? Parece uma coisa obscena (e definitivamente mais bem paga) e nunca consigo deixar de imaginar o colega em questão em posições mirabolantes, num qualquer hotel da cidade. "Saiu para um serviço".

Bom, ontem e hoje fui fazer serviços. E, uma vez mais, compreendi que não nasci para estar fechada dentro de um escritório. Não nasci para comandar uma tropa, não porque não o saiba fazer, mas porque não gosto, porque morro devagarinho, entristeço, apago-me a cada dia. Ontem e hoje saí para a rua, vi gente, falei com gente, senti o pulsar da vida "cá fora", fiz perguntas, bisbilhotei de forma consentida, porque é essa a minha profissão, bisbilhotar, saber tudo e mais alguma coisa, conhecer. E é de perto que se conhece, é olhando nos olhos, tocando no outro, "Gosta mesmo do que faz, não é Gabriela?", e a entrevistada a sorrir com a cara toda, um sorriso que não se pode ver ao telefone, que só se pode ver e sentir e compreender ali, ao vivo, num serviço.

Ontem e hoje constatei, uma vez mais, que não sou mulher para estar a uma secretária, a conferir o trabalho dos outros. E que, de cada vez que o faço, me afasto (talvez irremediavelmente) de mim. Por isso, se me ligarem, não estranhem se atender um colega a dizer: "Ela não está. Saiu para um serviço. Não sei quando volta. Não sei sequer se volta."

Herniados venceremos


Tens qualquer coisa como cerca de duas dúzias de hérnias discais. Lombares e cervicais. E de Schmorl, ou lá o que é. A TAC revelou que a tua coluna é um hotel de hérnias. Os miúdos não sabem o que é uma hérnia, e eu sei que o teu colo não vai negar-lhes poiso por causa disso.
Hoje fui com o Martim à revisão e fiquei a saber que ele pesa, já, 15.400 kg. O outro pesa 22 quilos. Cheira-me que serei a próxima vítima das hérnias, para te poupar mais. Seremos, no fim, dois herniados felizes.

Porta-te mal agora ou arrepende-te para sempre


Hoje saí do trabalho às 16.15. E percebi que há uma grande diferença entre trabalhar até às oito ou nove da noite todos os dias e viver. Estou calma como uma amiba, acho graça às 642 vezes que eles já disseram as palavras cocó, caca, chichi, pila e rabo, caminho devagar mirando os prédios e as árvores, ainda não gritei uma única vez e já são 20.30, e convenço-me de que poderia ser feliz se os pudesse ir buscar todos os dias. Ou duas vezes por semana, vá.

Saímos dos trabalhos às 16.15 não porque nos tenha apetecido, não porque tenhamos dito aos respectivos chefes, Olha, pá, hoje apetece-me e por isso adeus e um queijo, amanhã um gajo vê-se. Não. É pena, seria digno de registo, seria coisinha para receber um louvor, mas não. A verdade é que tínhamos uma reunião marcada com a professora do Manel. Para saber como vai a integração no novo colégio, a adaptação ao primeiro ano (no meu tempo dizia-se primeira classe, mas enfim, é giro mudar as terminologias, que é para uma pessoa sentir que também teve um tempo e que esse tempo já lá vai), para saber se aprende ou se não distingue um "A" de um "L". Ela diz que sim, aprende. Sim, evolui. E sim, porta-se mal. Fala muito, vira-se para trás, não se senta direito na cadeira, brinca muito nas aulas, faz disparates, diz parvoíces, ela ralha com ele várias vezes ao dia. Ficámos muito contentes. Temos uma criança em casa. Não um tecnocrata de sucesso.

Multiplicação



















Amanhã fazes três anos. Faz três anos que eu saí para a maternidade, de mala aviada e barriga-barril prestes a explodir. Amanhã faz três anos que deixei o pai em casa com o Manel, para que ele não sentisse qualquer angústia com a tua chegada. O pai levá-lo-ia à escola, como num dia normal, e depois ia ter comigo à Cuf. Chamei um táxi e disse: "É para a Cuf Descobertas, se faz favor". O homem abriu muito os olhos, engatou a primeira mais nervosa da sua vida de taxista e exclamou, tentando mostrar calma: "Chegou a horinha, hein?" Depois desatou numa correria desenfreada pelas ruas de Lisboa, até eu lhe explicar que não havia pressa, "É uma cesariana marcada, não há contracções, não há aflições, não há sopros e gritos."
Sosseguei-o mas fiquei a pensar naquilo. Olhava a rua pela janela e pensava que isto de ter filhos que não descem tem o seu lado tranquilo mas falta-lhe a cinematografia de um pai aos ziguezagues e um carro de piscas ligados e buzina a avisar que ali vai um bebé a querer nascer. Ali, naquele táxi, ia só uma mulher a querer ter um bebé. Não um bebé a querer sair. Estranho, mas pronto.
Amanhã faz três anos que acabaste com as minhas dúvidas sobre se o amor que teria por ti seria da mesma intensidade que o amor que tinha pelo teu irmão. Quando te vi sair da minha barriga, quando te ouvi chorar soube logo. O amor pelos filhos não se divide. Multiplica-se. Amanhã faz três anos que me multipliquei outra vez. Obrigada.