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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Voa, Vasco! Voa!

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Talvez tenha começado a dançar antes mesmo de caminhar com segurança. Aos dois anos era vê-lo a rodopiar pela sala, fazendo passos de ballet ao som da música ou mesmo sem som nenhum. Ninguém ligou muito. O Vasco gostava de dançar, assim como há tantas crianças que gostam de dançar e não se tornam bailarinas, de cantar e não se tornam cantoras, de pentear cabelos e não se tornam cabeleireiras.

Quando tinha 4 anos, como numa mirabolante atracção do destino, houve uma escola (Ginasiano, no Porto) que começou a dar aulas de dança no colégio onde o Vasco andava. Ele, claro, quis participar. E a dança passou a actividade extra-curricular, até ao 4º ano. Quando, no 5º ano, ingressou na escola pública, passou a fazer parte do ensino articulado, indo agora ao Ginasiano ter aulas de dança. Os professores andavam doidos com a perfeição dos pés do Vasco. Pés de bailarino, desde que nasceu, talvez porque quando se tem uma paixão assim tão grande por alguma coisa o corpo trate de vir com o correcto equipamento de série. Uma das professoras até andava com uma fotografia dos pés dele na mala, para mostrar aos colegas.

Dois anos depois sentiu algum desânimo, alguma desmotivação. E então foi experimentar uma aula numa outra escola, a Domus. É lá que dança há três anos, sob o olhar e direcção atenta dos professores Alexandre Oliveira e Sílvia Boga. "O Ginasiano era uma excelente escola. Mas às vezes as mudanças são necessárias, nem sabemos bem porquê", justifica a mãe, Bárbara Belo.

Vasco tem 14 anos, está no 9º ano, e treina todos os dias, menos ao domingo. Durante a semana, sai da escola, caminha alguns passos até à escola de dança, onde entra às 17h e de onde só sai às 21.30. Quatro horas e meia por dia, cinco dias por semana. Ao sábado, acorda às 8.30 e às 10h começam as aulas de dança. Por volta das 13.30 almoça algo ligeiro e continua os treinos até por volta das 15.30. Durante a semana acontece chegar a casa e ainda ir fazer os trabalhos ou estudar para os testes. Outras vezes acorda mais cedo para, antes mesmo de ir para a escola, poder estudar. O facto de não estar no ensino articulado nem ter estatuto de alto rendimento implica que não tenha dispensa de nenhuma disciplina, sendo que a carga é pesada. Ainda assim, Vasco é um bom aluno. Por ser exigente e perfeccionista, gostava de ter notas mais altas, mas a mãe está sempre a sublinhar que, com o tanto que faz, é quase impossível fazer melhor. 

Apesar de ser isto que mais ama na vida, nem sempre tem vontade de sair da escola e ir treinar. De resto, o provérbio "Quem corre por gosto não cansa" deve ser o mais mentiroso da história dos provérbios. É claro que cansa. No outro dia confessa que sentiu um nó na garganta ao ver um colega a sair da escola, a abraçar o seu pai e a entrar para o carro. Soube que iam passar tempo juntos, fosse de estudo, ou de brincadeira. Imaginou o rapaz a ir para casa, sossegado. E ele ainda tinha horas de trabalho pela frente. "Senti vontade de chorar, confesso. Mas depois, mal comecei a dançar passou tudo. Passa sempre tudo. Gosto tanto! É isto que quero fazer na minha vida e para ser bom tenho de trabalhar muito. É claro que às vezes me lembro de quando o meu tio me ia buscar à escola para irmos ver o mar. É claro que às vezes não apetece. Mas dura pouco."

Sobre o estigma que por vezes ainda se cola aos rapazes que fazem ballet, diz não sentir muito. "Às vezes há umas bocas e eu respondo sempre que prefiro passar horas rodeado de raparigas giras do que embrulhado à pancada, a cheirar os rabos uns dos outros. Há sempre gente tola, que gosta de misturar as coisas. Não ligo nenhuma. Mas a maioria das pessoas sempre me conheceu a dançar. Acho que já se habituaram e nem me vêem de outra maneira."

Durante o ano, há vários espectáculos e concursos e estágios. Vasco já ganhou várias bolsas. Em Paris, num concurso mundial, ficou no top 6 e foi um dos seleccionados para a final em Nova Iorque. Infelizmente, não pôde ir. O dinheiro desta família com 4 filhos não estica, e o bailarino sabe que é preciso ser criterioso na escolha dos espectáculos e dos estágios a frequentar. Também no European Ballet Grand Prix, em Viena de Áustria, conseguiu um 2º lugar que lhe permite ter duas semanas de bolsa em Berlim. Ainda mais recentemente, o bailarino foi seleccionado para o projecto Território, uma iniciativa da Companhia Nacional de Bailado, Estúdios Victor Cordon e Opart que reunirá 12 estudantes de Dança, seleccionados entre escolas de Dança nacionais, para desenvolver uma produção orientada por coreógrafos estabelecidos internacionalmente, e que tem estreia agendada para 20 de Julho, no Teatro Camões, seguida de digressão nacional. E assim tem sido a sua vida. Uma sucessão de sucessos. De voos, cada vez mais altos. 

De vez em quando, claro, magoa-se em pleno voo. Como daquela vez em que, durante um salto, arrancou um bocado da cabeça do fémur. Ou da outra, em que partiu o metatarso ao fazer piruetas. Ou da outra, em que uma dor contínua no joelho veio a revelar uma síndrome de Osgood-Schlatter. "São ossos do ofício. É impossível, com o nível de treino que temos, não haver lesões." Agora, explica a mãe, vão de 3 em 3 semanas ao osteopata e médico de Medicina Tradicional Chinesa para prevenir futuras complicações. 

Seja como for, nada o trava. Nada o desmotiva. Nada o faz esmorecer. Nem mesmo o diagnóstico de Diabetes, há um ano. "Comecei por ter muita sede, sempre muita sede. E pronto. Como o meu irmão também tem, começámos logo a perceber que seria a mesma coisa. Não foi complicado. Houve ali um período em que tive se perceber qual era a dosagem certa, mas agora encontrei: dou uma injecção à noite e depois tenho um aparelho que me diz os valores e me permite acertar, se estiver com hipoglicémia ou hiperglicémia. Está controlado. Não é nenhum bicho de sete cabeças."

Quando se pergunta ao Vasco o que quer fazer quando crescer (a pergunta preferida dos adultos), ele não hesita: Dançar. "É isto que eu gosto. É aqui que me sinto bem. Gostava de ir para a Opera, em Paris, ou para o Bolshoi, ou para o Royal. Tenho muito que trabalhar, eu sei, mas vou fazer por isso." E, olhando para o seu percurso e para o espírito de sacrifício que revela diariamente, fica difícil duvidar que não chegue longe. Muito longe. É por isso que apetece gritar, a plenos pulmões, "Voa, Vasco! Voa!"

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