Somos o Esquecimento que Seremos (Hector Abad Faciolince)
Hoje tive um almoço com uma pessoa com quem nunca almocei, que conheço há 22 anos sem na verdade conhecer no sentido de conversar e privar, e no entanto conhecendo desde bebé (que peguei ao colo) e cujo crescimento fui acompanhando por interposta pessoa, que o amava com a visceralidade - e orgulho e deslumbramento - com que os pais amam os filhos. E percebi que há ali tanto de genética como de construção pessoal, há ali uma herança de humor, inteligência e capacidade para conversar, mas há também tudo o que não se herda, mas antes se edifica por mérito próprio.
Levei para esse almoço o livro que estou a ler (já podia tê-lo terminado há semanas mas ando a ler devagarinho a ver se o termino o mais tarde possível) porque queria ler-lhe uma passagem que significou muito para mim e porque pensei nele quando a li.
Quando tirei o livro da mala, ele olhou para mim e disse que estava a ler um livro do mesmo autor e, passado um bocado percebeu que, afinal, era o mesmíssimo livro, só que com uma capa diferente.
Não queríamos acreditar. Arrepiámo-nos ambos, ficámos realmente incrédulos, entre tantos livros para ler e estamos os dois mergulhados no mesmo. Fico a pensar se é apenas coincidência estarmos os dois a ler o mesmo livro, o livro de um filho sobre a morte do pai. Leio-lhe a passagem, que ele ainda não leu, e reflectimos sobre ela, ainda impressionados pelo acaso que não podemos jurar ser mesmo um acaso.
No final do almoço, peço a conta. O empregado abeira-se com o terminal do multibanco, olha para o livro e pergunta:
- Está a ler esse livro? Muito bonito. Muito bonito mesmo.
E ficamos os dois, de novo, congelados naquele momento.
Talvez seja uma mera casualidade. Ou então, se quisermos acreditar, talvez seja mais do que isso.
(na verdade, o nome do livro de Faciolince vem do lindíssimo poema de Jorge Luís Borges)