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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Os quarenta

Isto de ter quarenta (e picos) tem muito que se lhe diga. Começa por ser bom. A festa que celebra a entrada nos "entas" é geralmente épica, uma pessoa sente-se especial, e depois frases como "os quarenta tão os novos trinta" reproduzidas por cada amigo até à exaustão acabam por nos (quase) convencer disso. Sentimo-nos bem fisicamente, andamos no ginásio ou esfalfamo-nos a correr, aperfeiçoamos o corpo com a desculpa da vida saudável (quando, na verdade, o que queremos combater é o degradante efeito da gravidade), temos (alguns de nós) um bom emprego (ou vários trabalhos) e ganhamos (de novo, alguns de nós) razoavelmente bem. Temos amigos com quem fazemos jantaradas divertidas e que acabam por vezes em noitadas até ser de manhã, como nos bons velhos tempos. No dia seguinte, compreendemos que aquela converseta dos "novos trinta" não há-de ser bem assim porque levamos várias horas a conseguir levantar um pé da cama e, na semana que se segue, temos o corpo todo dorido do excesso de álcool e da privação de sono. 

Aos quarenta e picos, alguns ainda têm filhos pequenos, o que ajuda a conferir a sensação de que ainda se é jovem, mas outros já vêem os filhos a aproximar-se a passos largos da maioridade, o que acentua de forma profunda as dores nas cruzes e um certo nó na garganta que se procura a todo o custo disfarçar, usando calças justas rasgadas e ténis superstar.

Mas os quarenta e picos têm mais, muito mais características únicas. É geralmente nesta altura que começamos a sentir um certo cansaço da nossa vida. Não é imediato mas vai acontecendo, devagarinho. O trabalho, por exemplo. Muitos de nós começámos a trabalhar naquilo que gostávamos. Tirámos um curso, começámos a trabalhar e durante vários anos aquilo era tão fascinante que nem parecia uma obrigação. Não trabalhávamos porque tinha de ser, trabalhávamos porque era aquilo mesmo que queríamos fazer, era uma questão de realização profissional, um desafio. Depois, com o passar dos anos, fomos subindo na carreira (alguns de nós) e mudando de emprego. De cada vez que uma dessas mudanças acontecia, voltávamos a sentir o sangue ferver nas veias e iamo-nos esquecendo da obrigatoriedade de acordar às 6:45 todos os dias, para só voltar a casa por volta das 20.30. Era giro, caraças! E ganhávamos bem e comprávamos coisas e fazíamos uma vida de gente crescida e tínhamos imensa ambição ainda. Íamos ser os donos disto tudo. 

Aos quarenta e picos, não só já sabemos que não vamos ser os donos disto tudo como nem sequer já queremos ser os donos disto tudo. Aliás, não queremos sequer continuar a brincar às empresas. Estamos fartos. Odiamos o despertador. O caminho para o trabalho. A voz do chefe. A cara dos colegas.

Antes da reunião semanal (ou diária, conforme os casos), lançamos a sorte e apostamos em números. Cinco números e duas estrelas. E sorrimos um sorriso sardónico, imaginando-nos a entrar pela reunião adentro, depositando os pés em cima da mesa perante o olhar estarrecido dos administradores, e dizendo uma ou outra alarvidade antes de sairmos porta fora para nunca mais regressarmos, agora que somos os orgulhosos vencedores de 50 milhões de euros. Depois, quando a televisão mostra a triste realidade, de outros cinco números e duas estrelas que não os nossos, perdemo-nos em sites imobiliários, suspirando por propriedades no alentejo onde poderíamos viver uma vida tranquila, rodeados de passarinhos e paz, quem sabe até criando o nosso próprio turismo rural, tão bonito e bem sucedido que seria artigo certo na NIT, no Observador, na Sábado e na Evasões. Era só vender a casa da cidade, pedir mais um empréstimo e mudar de vida. Por que não? Até nos lembramos da canção dos Humanos, "Muda de vida se tu não vives satisfeito/ muda de vida estás sempre a tempo de mudar". É então que o nosso filho adolescente entra na sala, pergunta se pode ir ao Honorato e ao cinema com os amigos, e compreendemos que estamos encurralados na vida que criámos e que não há meio de sairmos dela. 

Aos quarenta e picos, começam a adoecer pessoas importantes para nós. E a morrer. Um tem um cancro no pâncreas, o outro descobriu uma leucemia, a outra fez uma mastectomia mas ainda não sabe se tem safa. Há um colega do marido que morreu de enfarte, de repente, e a amiga da amiga apagou-se durante a noite, deixando duas filhas pequenas. A morte, que até então era uma ocorrência distante, passa a estar na ordem do dia. Aproxima-se. Ronda. Com um abutre. De repente, revemos amigos de infância num velório, damos por nós a abrir caixas de fotografias poeirentas e a chorar aquela morte que é, no fundo, também a nossa morte. Sentimos saudades daqueles tempos, ainda que racionalmente saibamos que somos hoje muito melhores do que éramos, e que temos uma vida muito mais interessante e completa do que aquela que tínhamos. Mas aquele abeiramento da morte faz-nos sentir saudades do tempo em que ela estava - ainda - muito distante.

Subitamente, compreendemos que podemos ser nós e não queremos. Começamos a fazer contas à vida. Quarenta, não tarda cinquenta, num instante sessenta. Foda-se. Não queremos. E é então que olhamos para os nossos pais e vemos como estão a envelhecer depressa. E viramo-nos na cama, duas, três, dez vezes sem conseguir pregar olhos. E se? E quando? E depois? 

Aos quarenta e picos há pais de amigos nossos que morrem. Vamos às cerimónias e trememos dos pés à cabeça porque conhecemos aquele "tio" ou "tia" desde que nos conhecemos e a sua morte é, de certo modo, a morte dos nossos pais. De repente, sentimos que passou tudo demasiado depressa. Sentimos que temos de apanhar o tempo, segurá-lo com as duas mãos e não o deixar fugir. Temos de aproveitar cada hora, cada minuto, cada segundo. Alguns de nós seremos chamados a cuidar dos nossos pais. E fá-lo-emos, de coração partido, mas com abnegação e saudade dos tempos em que eram eles a cuidar de nós. Aos quarenta e picos, tudo isto começa a acontecer, colocando-nos a vida inteira em perspectiva: nós, os nossos filhos, os nossos pais. O passado, o presente, o futuro. E é duro para caraças.

Os quarenta e picos são uma idade complexa. Talvez das mais complexas. Ainda temos vigor mas começamos a ter a consciência de que não o teremos para sempre. Ainda temos os filhos connosco mas principiamos a sentir que não tarda ganharão asas e já temos sorte se nos ligarem uma vez por dia. Ainda temos pais mas apercebemo-nos de que eles não são eternos. No fundo, sentimos a finitude das coisas de forma tangível. E a finitude é difícil de gerir.

Boa sorte, quarentões e quarentonas. Que consigamos gerir isto da melhor forma possível.

 

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