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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

O que fazer quando tudo arde?

hélio madeiras.jpg

Foto: Hélio Madeiras (bombeiro)

 

Sempre que uma calamidade como esta acontece, tento não embarcar naqueles julgamentos rápidos e naquelas histerias propulsionadas pelas redes sociais onde desfilam frases como "demitam-se", "caia o governo", "era metê-los lá a todos", "se fosse com a família deles é que eu queria ver", "deviam era morrer todos queimados", "a culpa é desta corja", entre outros.

Não o faço por ser particularmente boa pessoa, por ter caído num pote de sensatez, ou por estar a concorrer para santa, mas porque acho sempre que há um tempo para tudo, e porque me incomodam estas frases feitas, este populismo demagógico e alucinado. É fácil criticar, apontar o dedo, vociferar impropérios. Mas, quando se vê o que eu vi durante mais de 500km, que foi incêndios a cada 5 km (mais coisa menos coisa), percebe-se que, no passado domingo, não havia dispositivo capaz de fazer frente à monstruosidade do que aconteceu. Não havia mesmo. 

Mas...

Ao mesmo tempo que procuro não ser arrastada por esta onda de ódio crescente (e compreensível, dado o horror a que assistimos, quatro meses depois de Pedrógão), leio comentadores, analistas, oiço quem está mais informado que eu. Quem teve acesso a dossiers, a relatórios, a dados concretos. E ontem (só ontem) percebi que ninguém achou esperto ter prolongado a fase Charlie por mais um tempo, uma vez que o verão decidiu prolongar-se até agora. Ou seja: cumpriu-se o calendário e fecharam-se os 236 postos de vigia de incêndios com 944 operacionais. Também cumprindo o calendário, dispensaram-se milhares de bombeiros, autotanques e meios aéreos. Apesar dos avisos do IPMA. 

Mais. Paulo Fernandes, um dos 12 peritos que participou na elaboração do relatório sobre Pedrógão Grande (da Comissão Técnica Independente), disse ao Expresso que a faixa ocidental de Portugal mostrava riscos de incêndio muito elevados, num “contexto metereológico mais grave do que o de Pedrógão Grande".

Também não fica claro o que raio foi feito desde Pedrógão. Passaram quatro meses, que foram meses de muito calor, e fica a sensação de que nada se fez. É verdade que as reformas de fundo da floresta não podiam ter sido feitas, é verdade que há medidas que levarão muito tempo a serem implementadas mas... nada? E o SIRESP? Porventura foi melhorado? É que só oiço relatos das falhas de comunicações. Aldeias e povoações inteiras isoladas do mundo, a serem consumidas pelas chamas, sem ninguém que lhes pudesse valer. Eu, no meio da A1, estive várias vezes sem rede. Por várias vezes tentei ligar e o telefone pura e simplesmente não dava nada. O que seria no meio do caos?

 

Outra coisa. 

Quando estava na A1, numa fila de trânsito imensa, sabendo que a saída para Lisboa estava cortada e que estavam a encaminhar os carros para a A25, senti um pânicozinho a invadir-me. Relembro que havia um intenso cheiro a fumo, que havia um céu negro à nossa frente, carros de bombeiros por todo o lado, sirenes a toda a hora. E houve ali um momento em que eu pensei: "Tu queres ver que nos vão deixar morrer aqui?" Depois, respirei fundo, dei uma chapada mental a mim própria e respondi: "És parva? Então mas agora iam deixar morrer as pessoas na A1??? Uma das principais vias do país?" Acalmei-me com este pensamento. E depois segui para a A25, que depois se transforma em A17.

 

E é aqui que a porca torce o rabo (mais uma vez).

É que, quando cheguei a certa parte da A17, vejo as labaredas mesmo ao meu lado, a chegarem à estrada. Os bombeiros andavam por lá, mas aquilo estava a ficar muito feio. Eram labaredas enormes, que impunham respeito, e quando o Ricardo ligou para saber como estava, eu disse "vão cortar a A17 em minutos, de certeza! Isto está a ficar muito feio, passei na hora certa!"

Mal sabia eu que... não. A A17 viria a ser cortada, sim, mas muuuuito tempo depois. Um amigo meu, João Pico, que passou uma hora depois de mim, fez um vídeo que se tornou viral. Quando ele passou, a A17 estava assim:

 

Como? Como é que se deixam passar carros numa autoestrada que está neste estado??? Como??

Eu, que tinha lá passado uma hora antes e que disse que a iam cortar em minutos, não consigo perceber como é que, uma hora depois ainda não a tinham cortado e como é que deixaram que estas pessoas passassem com a autoestrada neste estado. Afinal, quando temi pela vida na A1 não estava a ser idiota. Sim, eles podiam mesmo ter-nos deixado ali morrer. Numa autoestrada. Porque a descoordenação era total. 

Ao ver este vídeo - e já o vi dezenas de vezes - penso: se eu tivesse demorado um pouco mais na minha entrevista em Vouzela, se eu tivesse ficado um pouco mais na estação de serviço de Estarreja, eu ia apanhar este inferno. E, sinceramente, não sei se teria tido o sangue frio de seguir em frente. Teria? Ou ficaria de tal modo em pânico, sem saber o que aí vinha, que parava o carro e tentava fugir a pé, para trás? Se o fizesse, morreria de certeza (as temperaturas altíssimas e o cheiro a fumo não deviam dar-me escapatória). Ou faria uma tresloucada inversão de marcha, seguindo em contramão, como aquela grávida que acabou por perder a vida, quando foi em contramão na autoestrada para fugir de um cenário semelhante e embateu de frente num outro carro? O que faria eu, se tivesse passado por este inferno, uma hora depois da hora a que passei? E se um pneu rebentasse, com o calor? De cada vez que vejo e de cada vez que penso, a mesma angústia. 

As pessoas que passaram pela A17 a esta hora, tiveram muita sorte. Por acaso ninguém se atrapalhou e deixou o carro ir abaixo, por acaso ninguém parou, causando um acidente, por acaso nenhum pneu explodiu. Porque se alguma destas coisas tem acontecido (ou uma sequência delas), a A17 era hoje a N236 de Pedrógão (tristemente conhecida como Estrada da Morte).

Assim, e depois de ver o discurso de António Costa, tenho alguma dificuldade em acreditar que isto não volte a acontecer (aliás, é ele mesmo quem diz que sim, pode voltar a acontecer). Amanhã, daqui a 15 dias, para o ano. E é inquietante - sendo eufemística - perceber que não há quem nos proteja, nem quem se responsabilize por coisa alguma. Nem sequer quem faça um simples (mas reconfortante) pedido de desculpa por tudo isto. 

 

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