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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mulheres do Caraças #5

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 Foto: Pau Storch

 

Talvez lhe esteja no sangue. Nas células. Inscrito no ADN. Marisa não sabe. Lembra-se, porém, de ser pequena, uns 5 ou 6 anos, e de pedir lanche à avó quando chegava a casa. A avó, que lhe tinha enviado lanche na mochila, estranhava o apetite voraz da pequena. Ali havia gato. Um dia descobriu. Marisa costumava dividir o lanche com colegas que, provavelmente, não tinham sequer almoçado. E então, a partir daí, a avó começou a levar outro lanche à escola. Compreendeu que a sua menina era feita de um material distinto. Talvez lhe estivesse no sangue. Nas células. Inscrito no ADN. A avó não sabia. Do que tinha a certeza era de que havia ali um coração grande. E não há como uma avó não se orgulhar disso.

A avó Bina. Que por acaso era bisavó. Cheirava a lavanda e fazia as melhores iscas do mundo. E dava-lhe amor. Marisa viveu com ela até aos 13 anos. Numa "ilha". Quem é do Porto sabe o que é uma "ilha" e não, não é um pedaço de terra rodeado de água por todos os lados. Era um tipo de construção clandestina, que consistia numa rua com pequenas casas de um lado e do outro e, ao fundo, uma casa de banho que dava serventia a todos os "ilhéus". Sem água quente. Marisa di-lo sem vergonha, pelo contrário. "Digo-o com orgulho. No outro dia contava à minha filha, que tem 10 anos, que foi assim que vivi a minha infância. E ela perguntou-me: 'E eras feliz?' Então não era! a jogar à bola no meio dos paus da roupa? Assim como não tenho vergonha de dizer que o meu pai, quando nasceu, dormia num gavetão alto da cómoda, que era para os ratos não lhe chegarem. Isso fez de nós quem somos. Só temos é de ter orgulho!"

Marisa sempre teve o tal coração grande que a avó descobriu por intermédio dos lanches mas foi quando conheceu o Paulo Sousa Costa que a sua vida mudou. Na altura, ela trabalhava no FCP, e aquele encontro com um pai que tinha perdido um filho com uma leucemia rara e galopante mexeu-lhe com o sistema inteiro, sangue, células, ADN. "Marcou-me muito aquele homem com uma tristeza funda no olhar e, ainda assim, com uma disponibilidade enorme para ajudar os outros."

Desde então, começou a ajudá-lo nessa tarefa de ajudar os outros. Começaram por organizar eventos onde se faziam recolhas de dadores de medula, mas depressa os pedidos se estenderam a outras áreas. A solidariedade foi um bicho que se lhe colou à pele, à alma, ao corpo todo. Nunca mais parou. "Ajudar os outros também me salvou a mim. Eu trabalho no Instituto Politécnico do Porto e tenho uma função que odeio. A minha formação é Acção Social mas o que eu faço é Cobrança Coerciva de Propinas. Sou uma espécie de "Cobrador do Fraque". Eu! Sabendo que há pessoas que não pagam porque não podem, porque não conseguem. Há injustiças medonhas. Odeio o que faço e toda a gente sabe. Por isso, tudo em que me meto para ajudar os outros salva-me da minha própria vida. Quando sinto que tive um dia mau, passa-me num instante quando chego a casa de uma mãe que pediu ajuda para pagar a luz e depois vejo no frigorífico que ela tem um pacote de leite aberto e absolutamente mais nada. Sempre fui pouco de me queixar mas desde que sei destas realidades deixei-me mesmo disso."

No Instituto, já ajudou alunos, famílias, colegas de trabalho. Sempre que percebe que há alguém em apuros, Marisa move céus e terra. Chateia meio mundo. Não descansa. Não dá tréguas. Insiste. Persiste. Teima. Acaba sempre por levar a água ao seu moinho. Ainda assim, há condições mínimas para que ela se ponha em acção. "Não ajudo quem recebe o RSI (Rendimento Social de Inserção). Odeio o RSI. Acho que promove a preguiça, a falta de vontade, de inciativa. É o típico dar o peixe em vez de ensinar a pescar! Eu ajudo pessoas que trabalham ou querem trabalhar. Pessoas que estão a passar por um momento difícil. Avós a quem o tribunal entregou, de um dia para o outro, os netos porque os pais foram presos. Uma mãe que se divorciou e cuja doença da filha a obriga a faltar constantemente ao trabalho. Claro que é despedida. E depois? Como estas casos, tantos! Tantos. Pobreza envergonhada. Pessoas que ganham o ordenado mínimo e que, de repente, são surpreendidas com uma despesa maior e não têm como pagar. Aquilo vai crescendo e, de repeente, já há penhoras e o diabo. E essas não têm subsídios do Estado. Têm de se safar. As pessoas nem imaginam."

Para tornar a ajuda mais consistente, Marisa criou em 2013 o Mercado dos Santos, uma Associação de Solidariedade Social. Não tem uma estrutura, os voluntários entram e saem, mas havia a preocupação de imprimir seriedade à ajuda. É importante ter um NIB (004601900060023364155) para quem quiser ajudar com transferências, uma página de facebook onde se dá conta dos eventos solidários ou campanhas em curso, e onde são publicadas as fotografias que provam que a ajuda é entregue.

Sempre que alguém lhe diz que não tem trabalho e começa a arranjar desculpas para não aceitar todas as sugestões que Marisa traz na manga, põe logo os pontos nos is, com aquele sotaque acirradamente portuese: "Não quer trabalhar? Santa paciência, não ajudo! Eu também trabalho e não gosto!" É o pior que lhe podem fazer. Isso e pedir ajuda mas ter telemóvel topo de gama e unhas de gel. "Há muita gente sem juízo. Tento explicar à minha filha que, às vezes, o coleguinha até pode ter umas sapatilhas de marca e ter a barriga vazia. Para muitas pessoas é preferível ter um iPhone mas comer atum toda a semana. Ou ir namorar e deixar o filho internado a semana inteira sozinho. Tento educar a Mi para estas realidades. Para que cresça consciente."

E está a fazer um belíssimo trabalho. Quando foi dos incêndios que assolaram o país, no dia 15 de Outubro, Marisa arregaçou as mangas e só parou no Natal. Angariou roupas, comida, produtos de higiene, brinquedos. Andou a levar tudo para Midões, num vai-e-vem desenfreado. Arranjou cabazes de Natal para dar uma consoada digna a quem, de um momento para o outro, perdeu tudo. Dormiu mal porque fica difícil dormir bem quando se está tão por dentro destas fatalidades. A filha Mi queria ir sempre com a mãe, mesmo quando era o fim-de-semana do pai. E distribuía abraços. "Tenho a certeza de que estou a torná-la uma pessoa melhor, preocupada com o outro, e não apenas com o seu umbigo. Gosto de lhe dizer que quero que ela tenha todas as coisas melhores do mundo: casa, carro, telemóvel, computador, tudo! Mas que se não tiver pode perfeitamente ser feliz na mesma. Às vezes até mais."

E porque o universo talvez se encarregue de compensar as pessoas boas (dava mesmo jeito acreditar nisto) Marisa, que se tinha separado do pai da Mi quando ela tinha 6 anos, refez a vida com o Álvaro, em Maio de 2014. E ganhou aquilo que sempre quis ter: uma família. Em 2016, por insistência da filha, casaram. Afinal, segundo a Mi, a mãe "já não tinha idade para namorar". Sempre que se referia ao Álvaro como "o namorado da mãe" soava esquisito. "Porque é que não casam?" E casaram mesmo, na véspera de São João. Um casamento seguido de sardinhada. Um casamento por amor, um daqueles amores que vêm para ficar. "Queria muito que a Mi tivesse uma família, ainda que ela tenha o melhor pai do mundo. Mas uma família assim no sentido côncavo, do aconchego, da felicidade e da partilha, de fazermos tanta coisa juntos... isso ela ainda não tinha tido. E agora tem. E eu sinto uma felicidade tão grande por isso. Tenho tanto a agradecer ao Álvaro, por ter vindo para a minha vida, por me dar os abraços que só dei à minha avó, por me aturar nesta loucura que é a minha vida, a juntar roupas e comidas e brinquedos. Por saber que é desta maneira que sou, e por gostar de mim tal como sou."

Marisa é assim. Dura (mas um coração mole). Bruta (mas com uma sensibilidade à flor da pele). Frontal (sem mas). Talvez lhe esteja no sangue. Nas células. Inscrito no ADN. Marisa não sabe. O que sabe é que precisava encontrar um sentido para a sua vida. E este, o de se dar aos outros, foi o melhor sentido que podia ter encontrado.

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