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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mulheres do caraças #3

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Diana tem 36 anos e está grávida de seis meses. 

Martim, 12 anos, é o seu primeiro filho. Diana sempre quis ser mãe, antes de querer ser outra coisa qualquer. Quando engravidou de Martim, aos 23 anos, foi olhada de lado na vila pequena onde vivia. Não estava casada, ninguém esperava, foi um diz-que-disse. Quando o par se separou, ainda antes de Martim nascer, o falatório cresceu ainda mais. Diana não quis nem saber. A relação tinha chegado ao fim pacificamente e o pai do filho sempre foi - e continua - a ser um pai presente. Nem tudo pode ser sempre como nos contos de fadas. De resto, raramente é.

Os anos foram passando e Diana sempre a sonhar ser mãe novamente. "Nunca quis ter só um filho". Mas sem relações sérias ou estáveis ou importantes, o sonho foi sendo adiado. Porém, a ideia de ser mãe sozinha começou a ganhar cada vez mais terreno. E, no ano passado, ao fazer 36 anos, sentiu que ou era agora ou já não era mais.

Avisou a família que ia ser mãe sozinha. Ninguém se chocou, até porque o tema já não era novo. A mãe, a avó e a irmã apoiaram sempre, mesmo que talvez até tenham pensado que aquilo era estranho. Ou talvez nem sequer tenham pensado isso, a julgar pelo comentário da avó, com 80 anos: "Ó filha, fazes muito bem! Não é preciso cá homens! Se consegues ter um filho assim, melhor!"

A lei da Procriação Medicamente Assistida para todas as mulheres ainda não tinha sido aprovada em Portugal e, por isso, Diana foi a Vigo (Espanha). Em Abril de 2016 teve a primeira consulta. Depois das análises feitas, fez a primeira inseminação artificial no mês seguinte. Não deu certo.

Em Junho, voltou. E no início de Julho fez a segunda inseminação, que acabou por também não resultar.

Entretanto, foi aprovada a lei em Portugal, mas faltava ainda a regulamentação. Diana ficou na dúvida se havia de fazer por cá ou voltar a Espanha mas, pelo sim pelo não, tentou uma consulta no Porto. "Foi completamente diferente. Fui recebida como uma ave rara. Perguntaram o meu estado civil, disse que era solteira. A seguir perguntaram o nome do meu marido. 'Acabei de lhe dizer que sou solteira'. A funcionária ficou baralhada: 'Então e o que ponho aqui no campo do nome do marido?'. Ponha o que quiser. Não tenho marido, logo não tenho um nome para lhe dar."

O médico não foi melhor. Que era preciso repetir todos os exames, todas as análises, como se tudo o que tinha sido feito em Vigo não tivesse valor. Que, de qualquer modo, era preciso esperar pela regulamentação. E que era a primeira vez. E que. E que. E que. "Não! Nunca mais cá volto! Telefonei para Vigo e tive consulta no final de Outubro. No dia 12 de Novembro foi feita a 3ª inseminação." Correu bem. E no final de Novembro, Diana soube que estava grávida. 

Para a pequena vila foi um bicho de sete cabeças. Como assim grávida? E o pai? Como assim, não há pai? Como assim, Espanha? Como assim, inseminação artificial? O que é que deu na cabeça da rapariga? Este mundo está do avesso.

Diana encolheu os ombros, indiferente. A vida é sua, as decisões também. O filho Martim estava feliz com a vinda de um bebé, absolutamente tranquilo, sem confusões, feitas muito mais pelas cabeças dos adultos do que pela dos miúdos.

Depois do rastreio bioquímico do primeiro trimestre, fez a ecografia. O médico, com a sensibilidade de um tractor

Ouvi de tudo, mais uma vez. Agora com mais segurança e maior indiferença aos comentários dos outros. A idade também traz coisas boas.

No rastreio bioquímico do 1º trimestre, sozinha no hospital, depois de uma ecografia demorada e silenciosa, chegou o primeiro veredicto. "Probabilidade de 1 para 6 de o bebé ter trissomia 21. Confesso que não foi um choque. O médico que me acompanhava disse para me preparar porque, por vezes, a idade dava aso a resultados elevados que depois acabavam por não se confirmar. E eu fui-me preparando sim, mas para a confirmação em si. Acho que há coisas que se sentem e já tinha falado dessa possibilidade com a família e os amigos mais próximos. E comecei a ler blogs de pais de crianças com trissomia 21 e a trocar mensagens com alguns. O que me diziam era sempre que não era o fim do mundo. Era difícil, claro, mas não o fim do mundo. E diziam-no sempre com leveza, com alegria."

 

Diana esperou pela biópsia. Tentou duas vezes e das duas vezes não foi possível fazê-la em segurança. Marcou o dia para a amniocentese, que só ia fazer para despistar outro tipo de malformação, incompatível com a vida. Mas enquanto esperava fez o Harmony, que daria mais cedo um resultado. "Quando o resultado chegou era inequívoco: esperava uma menina com 99,9% de possibilidade de ter trissomia 21. Nem valia a pena fazer a amniocentese. Fiquei tranquila. Já estava preparada. Vou ter uma filha, com um cromossoma a mais. E, apesar dos medos naturais e das preocupações, fiquei feliz. Estou muito feliz!"

Escrito assim, deste modo, parece meio impossível, artificial, uma felicidade como que construída. Quem pode ficar assim feliz por ir ter um filho diferente? Conhecendo-se a Diana, a sua serenidade, o modo pragmático e plácido com que encara a vida, perdem-se as dúvidas. É possível. "Fui ver fóruns onde se falava do assunto e havia mães com probabilidades muito baixas de terem um filho com trissomia 21 que choravam dias e noites sem parar. Eu nunca chorei. Às tantas até me sentia estranha por não chorar. Mas acho isto tem que ver com um caminho que tem de ser feito, de compreensão e de aceitação. Eu fui interiorizando. Primeiro a possibilidade teórica. Depois a possibilidade mais aumentada. Por fim, a concretização. E foi natural. Além disso, fui-me informando, percebendo que não é um drama. Que hoje há muitas terapias, estudos, toda uma estimulação precoce que pode ser feita. E fiquei tranquila. Quando alguém tem um filho dito normal mas depois, por alguma doença ou acidente, fica com uma diferença os pais também não o deixam de amar. Eu ainda não tinha a minha filha nos braços mas já amava. Com cromossoma a mais ou não. Que fique claro: não censuro quem não consiga lidar com isto e decida interromper a gravidez. As pessoas são todas diferentes e terrível é a pessoa não abortar com a sensação que o devia ter feito. É uma decisão tão pessoal que não dá para opinar. Cada um tem de saber, dentro de si, o que fazer. Mas para mim foi evidente."

A mãe de Diana teve mais dificuldade em digerir o assunto. Chorou as lágrimas que a filha não conseguiu verter, angustiou-se, revoltou-se, fez a si própria a pergunta que Diana nunca fez "Porquê?" Mas a filha tratou de a levar pelo mesmo caminho que havia percorrido, com a serenidade que a caracteriza. Mostrou-lhe os sites certos, os blogs, deu-lhe a ler a informação que a tinha ajudado a fazer o luto da idealização que todos fazemos de um filho. Porque sejamos francos: ninguém, quando espera um bebé, deseja profundamente que ele tenha trissomia 21. Não é algo que se ambicione, que se pretenda, que se almeje. Mas pode ser algo com o qual se vive em paz. E com felicidade. Pelo menos é o que garante Diana, e o que garantem outros pais que se viram na mesma situação. Um filho será sempre um filho, independentemente dos cromossomas.

Depois das consultas online, Diana foi conhecer um dos maiores especialistas (se não o maior) no assunto em Portugal. Miguel Palha, pediatra do desenvolvimento e criador do centro Diferenças, foi a Aveiro e ela marcou uma consulta com ele. A tranquilidade, que já era bastante, aumentou ainda mais. Miguel Palha desdramatizou o possível drama que ainda pudesse subsistir. Explicou que tipos de terapia existem, que tipo de estimulação será necessário fazer, que medidas tomar, que escola escolher. "O que quero é estar preparada. Para o pior e para o melhor. Para o melhor estamos sempre preparados. Para o pior estou a preparar-me também.

Para a pequena vila será, seguramente, um bicho de sete cabeças. Como assim, trissomia 21? Como assim, não quis interromper? Como assim? E o irmão? E agora? Que desgraça. Quem sabe se não será castigo por ter decidido ter o filho assim, sem um pai, sem ser como manda a natureza. Este mundo está do avesso.

Há uns meses, Diana começou um blogue. Chamou-lhe "No Reino 21" porque, desde que sabe que transporta consigo um cromossoma a mais, que se sente numa espécie de reino único: "A forma como todos os pais de crianças com trissomia têm falado comigo é tão especial que parece um reino diferente, mágico. Nunca noto que sejam pessoas tristes, infelizes, frustradas. Pelo contrário. São pessoas que souberam dar a volta a algo que parecia mais complicado do na realidade acabou por ser. É o meu novo reino. A minha filha chega em Agosto e será a rainha deste meu reino. Temos ambas muito para aprender, mas já a amo como amo o Martim, ou seja, com todas as forças com que uma mãe ama os seus filhos."

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 Com o filho Martim

 

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A vida deu-lhe degraus e ela tenciona subi-los

 

 

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