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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mudar de vida #3: Ana Varela

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Quem diria? Quem havia de dizer? Que a bióloga havia de dar lugar à lojista, que a cientista havia de se render à fantasia, que a investigadora podia arrumar a seriedade e dedicar-se à brincadeira e ao sonho? Quem diria? Quem havia de dizer?

Mas assim é. Assim foi.

Ana Varela tem 31 anos. Fez o curso de Biologia, em Coimbra, sem grande convicção. Seguiu-se o estágio em Biologia Celular. Ela, que tinha horror a ratos, avisou: "Tudo menos ratos". Teve azar. Na primeira semana, logo ratos. Pensou "isto não vai correr bem". Mas correu. Os colegas manuseavam os animais, chamavam-na no final. Claro que, pelo meio, faziam as brincadeiras da praxe. "Podes vir, Ana!" E a Ana vinha e havia ratinhos à solta na sala e gritos que os faziam perder-se de riso.

Com o passar do tempo, Ana aprendeu a gostar do trabalho em laboratório, e havia de ser boa no que fazia porque foi proposta para Doutoramento, candidatou-se às bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e conseguiu. Escolheu um projecto para trabalhar durante 4 anos, o único do laboratório só com animais, quase nada de linhas celulares: "O projecto consistia em mimetizar uma cirurgia ao fígado, onde fazíamos um período de isquémia e reperfusão, com estratégias de redução do impacto da isquémia no fígado." Perceberam? Pronto. Falamos deste nível de conhecimento científico. 

Correu tudo muito bem e, depois de mais um ano de laboratório, a melhorar o currículo, Ana Varela conseguiu mais uma bolsa de pós-doc. Uma bolsa de três anos. Porém, ao fim de um ano, fechou a porta. Ou talvez seja melhor dizer: bateu com a porta. "O mundo da Ciência e da Investigação é muito competitivo. Há uma pressão incrível. E houve um dia em que olhei para a minha vida e pensei que não queria aquilo para mim. A vida, para mim, é mais do que o laboratório. Queria ir ao cinema, queria jantar fora, queria viajar, queria... viver!"

E assim, em Abril de 2015, saiu. Os pais apoiaram-na no momento da ruptura mas, depois, fizeram o que os pais fazem: aconselharam calma, temperança, cabeça fresca. Ana era Bióloga, estava envolvida em projectos científicos de grande complexidade, com moléculas e células à mistura, o laboratório onde estava trabalhava num projecto com a Fundação do Michael J.Fox... o que mais podem pedir uns pais? A filha tinha estudado tanto, trabalhado tanto para chegar ali. E agora largava tudo para fazer o quê?

Para viver. Não parece pouco, escrito assim. Resumido assim.

Em Outubro de 2015 nasce, então, a Lato Latinho. Uma loja de brinquedos e de artigos de festas infantis que pretende ser mais do que isso. "Um cantinho mágico onde ratinhos são príncipes e há bailarinas que são coelhos, onde lemos histórias, inventamos histórias e fazemos parte delas. Temos tido actividades para os mais pequeninos: apresentação de livros, hora do conto, conversas com cientistas... para que venham aprender e sorrir connosco! Porque não há nada melhor que brincar, sorrir...ser feliz!"

Nada a ligava ao universo infantil. Não é mãe, não tem sobrinhos, nada. Mas sentiu um apelo imenso pela fantasia, quase como se precisasse de um regresso ao imaginário, tão contrastante com o seu eu científico. A ciência trocada pela fantasia. A objectividade transformada em sonho. Já o nome "Lato Latinho" estava escrito no destino. Aliás, estava escrito na sua própria infância, pelo que fazia todo o sentido trazê-lo até este renascimento da menina por detrás da cientista. "Quando eu era pequenina não dizia os "erres". Substituía-os por "éles". E na terra onde nasci, em Valado dos Frades, toda a gente brincava com isso. Até que me ensinaram uma ladaínha, para eu aprender a dizer os "erres". Era assim: Se eu fosse um rato ratinho/ roía a tua roupa/ dava mais um saltinho/ e dava-te um beijinho na boca. Ora, eu não dizia "rato ratinho" mas sim "lato latinho". E as pessoas mais próximas começaram a tratar-me assim. Quando andava a pensar em que nome dar à loja, fui a uma loja lá da terra e a pessoa que me atendeu disse: "Então, Lato Latinho, o que vai ser?" Pronto. Fez-se luz."

Mas não há apenas esta curiosidade, do nome da infância recuperado agora que quis recuperar o seu lado infantil. Há também a questão dos ratos, a que tinha pavor, dos quais fugia no laboratório, agora transformados em reis no seu mundo de fantasia. Se isto não é um belíssimo e metafórico ajuste de contas com a vida... não sei então que será. 

Quem diria? Quem havia de dizer? Que era possível trocar as voltas ao destino de forma tão inesperadamente poética. É científico: a felicidade vale mais do que qualquer Ciência.

 

Lato Latinho: Avenida Afonso Henriques 32, Coimbra.

https://www.facebook.com/LatoLatinho/

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Fotografias: Raquel Brinca, HUG

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